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Poder normativo primário dos Conselhos Nacionais do Ministério Público e de Justiça:

a gênese de um equívoco

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Agenda 30/03/2006 às 00:00

5. O Poder Normativo dos Conselhos à luz dos Princípios Gerais de Direito Sancionador.

Na medida em que o art. 130-A, § 2º, III, da Constituição da República dispôs que o Conselho Nacional do Ministério Público tem o poder de aplicar sanções disciplinares aos membros e aos servidores do Ministério Público da União e dos Estados, põe-se a questão de saber se a sua materialização no plano fático está condicionada à existência de uma norma que previamente defina a infração disciplinar e comine a respectiva sanção.

Em outras palavras, pode o Conselho aplicar a sanção de aposentadoria compulsória apesar de a Lei Orgânica da Instituição controlada, como se dá com o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, não a contemplar?

O art. 81 do Regimento Interno do Conselho, [16] aprovado em 8 de agosto de 2005, em sendo interpretado em sua literalidade, permitirá que o órgão aplique as sanções disciplinares previstas na Constituição da República ainda que a lei orgânica da Instituição controlada não as tenha contemplado, deixando de definir os ilícitos administrativos que sujeitariam o agente à sua incidência. Tal conclusão parece clara na medida que a norma regimental faz remissão, única e exclusiva, ao procedimento ditado pela lei de regência, indicativo da "desnecessidade" de definição legal da conduta que sujeitará o agente às sanções enunciadas no texto constitucional. Em abono desse entendimento, ainda merece ser lembrado o inciso I do art. 19 do Regimento, [17] que, sem fazer remissão à legislação de regência de cada Instituição, dispõe sobre a competência do Plenário para a aplicação das sanções referidas no texto constitucional.

Esse entendimento, que encontra total amparo no "poder normativo primário" que o Supremo Tribunal Federal atribuiu ao Conselho Nacional de Justiça e, por via reflexa, ao Conselho Nacional do Ministério Público, não nos parece juridicamente sustentável.

Apreciando os procedimentos disciplinares instaurados "contra membros ou órgãos do Ministério Público da União ou dos Estados, inclusive contra seus serviços auxiliares", caso entenda conveniente fazê-lo anteriormente à sua ultimação no plano interno, poderá o Conselho "determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa". Note-se que, especificamente em relação às sanções, a parte inicial da norma atua como elemento limitativo da última. As únicas sanções da alçada do Conselho que podem dissociar o agente do respectivo órgão são as três primeiras: a remoção, embora mantenha o agente na carreira, resulta na sua alocação em órgão diverso; a disponibilidade faz com que o agente assuma o status de inativo, mas mantenha o vínculo com a carreira, do que resulta a possibilidade de aproveitamento futuro; e a aposentadoria, com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço, transfere o agente para a inatividade e o afasta da carreira, impedindo o reaproveitamento. Assim, as demais sanções administrativas que podem se subsumir ao preceito (v.g.: advertência, suspensão etc.) não alcançam a de perda do cargo, quer em relação aos servidores, quer em relação aos membros do Ministério Público não-vitalícios, pois, como se sabe, os vitalícios somente perdem o cargo mediante decisão judicial transitada em julgado. A preocupação do poder reformador em enumerar as sanções que afastam o agente do respectivo órgão indica, claramente, que as demais sanções administrativas ali referidas devem produzir efeitos outros que não esse.

O que merece maior reflexão é a definição do exato alcance do inciso III do parágrafo 2º do art. 130-A: trata-se de norma que tão-somente define a atribuição e os limites do poder disciplinar do Conselho ou dispõe, de forma ampla e genérica, sobre as próprias sanções disciplinares passíveis de serem aplicadas? Embora a literalidade da norma possa induzir a conclusão diversa, cremos que a primeira proposição é a correta.

A definição da autoridade responsável pela aplicação de determinada sanção não significa possa ser ela aplicada sem a prévia individualização das infrações administrativas e, consoante o escalonamento dos distintos graus de lesividade, das sanções a que cada qual corresponde. Trata-se de um imperativo de segurança jurídica.

Como observa Alejandro Nieto, cuja lição merece ser transcrita, "el mandato de tificación tiene dos vertientes: porque no sólo la infracción sino también la sanción ha de estar debidamente prevista en la norma que, mediando reserva legal, ha de tener rango de ley. Con remisión o sin ella, una vez realizada la tipificación de las infracciones, las normas han de atribuirlas unas sanciones determinadas, estableciendo la correlación entre unas y otras. Operación que se realiza a través de dos distintas técnicas: En unos casos, lo menos, se atribuye directa e individualmente una sanción a cada infración. Pero, por lo comun, la ley procede de una manera muy distinta, genérica y no concreta, operando no con infracciones y sanciones individuales sino con grupos de una y otras, que permiten evitar el prolijo detallismo de una atribuición individual: un lujo que sólo se pueden permitir las leyes penales por gracia del reducido repertorio de sus ilícitos; pero que resulta imposible cuando se tienen que manejar docenas de miles de infracciones (y, para mayor dificultad, muchas de ellas tipificadas por remisión)". [18] Adiante, acrescenta que, "una vez clasificadas las infracciones, la Ley atribuye seguidamente a cada escalón de ellas un paquete de sanciones, que suele ser flexible, de manera que la Administración, a la vista de las circunstancias de cada caso, señala la sanción concreta dentro del abanico legalmente previsto", [19] concluindo que "la correspondencia, legalmente establecida, entre infracciones y sanciones es imprescindible, de tal manera que, si se ha tipificado correctamente la infracción pero no se le ha atribuído correspondiente sanción, no puede imponerse una sanción concreta". [20] Por identidade de razões, não se pode aplicar uma sanção sem a prévia definição da infração que ensejará a sua incidência.

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O Conselho, apesar de estar autorizado a aplicar as sanções referidas no inciso III do parágrafo 2º do art. 130-A, somente poderá fazê-lo com estrita adequação às normas disciplinares reguladoras de cada Ministério Público, sendo cogente a observância da tipologia legal e das respectivas sanções cominadas. Tomando-se como referencial os paradigmas da perfeição e da imperfeição, pode-se afirmar que referido preceito, a um só tempo, consubstancia uma norma de competência ou de organização perfeita e uma norma disciplinar imperfeita, pois contempla o preceito secundário sem tangenciar o primário, vale dizer, o padrão de conduta cuja violação justificará a incidência daquele.

Entendimento diverso, além de violar o princípio da segurança jurídica, também afrontaria os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal, consagrados, respectivamente, nos arts. 1º e 5º, LV, da Constituição da República, isto sem olvidar o princípio mor do nullun crimen..., contemplado no art. 5º, XXXIX e inerente a qualquer Estado que se diz "de Direito".


Epílogo.

Invocando a velha máxima de Maquiavel, tudo leva a crer que a nobreza dos fins almejados pelo Conselho Nacional de Justiça com a edição da Resolução nº 7 tenha levado o Supremo Tribunal Federal ao reconhecimento da legitimidade do meio escolhido. Espera-se, no entanto, que a temática ainda seja objeto de maior reflexão, evitando que uma relevante parcela dos agentes públicos fique à margem do manto protetivo do princípio da legalidade.


Notas

01 Art. 103-B, § 4º, I, da CR/1988.

02 Art. 130-A, § 2º, I, da CR/1988.

03 Art. 52, VII, VIII e IX e art. 155, § 2º, V, a e b da CR/1988.

04 Art. 62 da CR/1988.

05 Art. 96, I, a, da CR/1988.

06 Arts. 73 e 75 da CR/1988.

07 Art. 84, VI, da CR/1988.

08 Art. 105, parágrafo único, II, da CR/1988.

09 Art. 111-A, § 2º, II, da CR/1988.

10 "La legalidad de la Administración no es así una simple exigencia a ella misma, que pudiese derivar de su condición de organización burocratica y racionalizada: es también, antes que eso, una técnica de garantizar la libertad" (Eduardo Garcia de Enterria, Curso de Derecho Administrativo, vol. II, p. 48).

11 "A Constituição como Norma" (RDP 78/09).

12 "O Direito Administrativo e o Princípio da Legalidade" (RDA 56/47).

13 Na lição de Forsthoff (Traité de Droit Administratif Allemand, p. 226), ele deve ser observado não somente pelos cidadãos, como também pelas autoridades públicas, quer estejam situadas acima ou abaixo da autoridade que editou o regulamento. Mesmo esta autoridade encontra-se limitada por ele. Ela pode ab-rogá-lo ou modificá-lo, mas, enquanto o regulamento estiver em vigor, ela deve aplicá-lo. Seria equivocado, segundo o Mestre germânico, querer deduzir por um raciocínio a majore ad minus que a autoridade que pode editar o regulamento pode tomar as decisões particulares que o contrariem, concluindo que esse raciocínio não é possível senão quando se trate de modalidades de ação qualitativamente idênticas. O poder de assentar as normas gerais e o poder de agir em um caso particular não são da mesma natureza, o que afasta essa possibilidade.

14 Ob. cit., p. 55.

15 Hauriou (Précis de droit administratif et de droit public, 12ª ed., pp. 562/563) assinalava serem dois os elementos materiais do regulamento: 1º- a característica de manifestação da vontade administrativa; e 2ª - a característica de regra geral.

16 "Art. 81. O processo disciplinar instaurado contra membro do Ministério Público obedecerá, no que couber, ao procedimento ditado na Lei Complementar n.º 75/93, na Lei n.º 8.625/93 e na legislação estadual editada com amparo no art. 128, § 5.º, da Constituição, conforme o caso, inclusive no que concerne à aplicação, pelo Conselho, das penas disciplinares respectivas e das elencadas no inciso III do § 2.º do art. 130-A da Constituição Federal, aplicando-se, no que não for incompatível, a Lei nº 8.112/90 e Lei nº 9.784/99".

17 "Art. 19. Ao Plenário do Conselho compete o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais dos seus membros, cabendo-lhe, além das atribuições fixadas no artigo 130-A, § 2.º, da Constituição, e das que lhe forem conferidas pela Lei, o seguinte: I – julgar os processos disciplinares regularmente instaurados, assegurada ampla defesa, determinando a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas (...)."

18 Derecho Administrativo Sancionador, 3ª ed., Madrid: Editorial Tecnos, 2002, p. 310.

19 Op. cit., p. 311.

20 Op. cit., p. 312.

Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. Poder normativo primário dos Conselhos Nacionais do Ministério Público e de Justiça:: a gênese de um equívoco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1002, 30 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8172. Acesso em: 23 dez. 2024.

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