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Aspectos penais dos crimes de concussão, obstrução à justiça e prevaricação

Agenda 04/05/2020 às 16:37

Discorre sobre elementares desses tipos penais e faz algumas reflexões sobre a incidência ou não desses tipos, no caso envolvendo o Presidente da República e o ex-Ministro Moro.

ALGUNS ASPECTOS PENAIS RELEVANTES DOS CRIMES DE CONCUSSÃO, OBSTRUÇÃO À JUSTIÇA E PREVARICAÇÃO

 

 

I- INTRODUÇÃO

 

 

Os três crimes aqui abordados ganharam contornos de relevância jurídica e política diante do fato recente envolvendo a saída do ex-ministro Sérgio Moro e de suas declarações apontando uma suposta interferência do Presidente da República na Polícia Federal. O objetivo desse artigo é fazer uma análise estritamente jurídica, de alguns aspectos que aparentemente estão sendo olvidados tanto por pessoas que não detém conhecimento jurídico, como por entrevistados que sendo operadores do direito não abordaram pontos que serão aqui suscitados.

 

Portanto, buscar-se-á uma análise imparcial dos tipos penais que, embora possam ser aplicados ao caso concreto recente já referido, pode servir de paradigma para inúmeros outros casos. Em síntese, far-se-á uma análise jurídica desapegada de qualquer paixão política, mas alertando operadores do direito e interessados no tema sobre aspectos essenciais dos tipos penais em apreço.

 

A peça do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que requisita a instauração de inquérito policial para apurar fatos que vieram à tona em pronunciamento do ex-ministro Sérgio Moro ao pedir exoneração do cargo de Ministro da Justiça, elenca os seguintes crimes: falsidade ideológica (art. 299 do CP), coação no curso do processo (art. 344 do CP), advocacia administrativa (art. 321 do CP), prevaricação (art. 319 do CP), obstrução da justiça (art. 1, §2º, da Lei 12.850/2013), corrupção passiva privilegiada (art. 317, §2º, do CP) ou mesmo denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal), além de crimes contra a honra (arts. 138 a 140 do CP).

 

Como se verifica, a maioria dos crimes que se apura são direcionados ao Presidente e outros ao ex-ministro (arts. 339 e 138 a 140, todos do CP) e eventualmente o crime do art. 319 do CP. Não é objetivo do presente subscritor analisar todos os tipos penais elencados na peça, mas apenas dois dos crimes listados e a concussão que, embora não elencado pelo Procurador-Geral, foi ventilado por alguns parlamentares e repercutido na imprensa, como podendo ter sido praticado por Moro ao condicionar sua nomeação para o cargo de Ministro da Justiça ao recebimento de pensão para esposa, caso viesse a morrer no exercício do cargo. A escolha de escrever sobre esses tipos penais, como já foi afirmado, deve-se ao fato de ter percebido que nem mesmo os operadores do direto consultados pelos meios de comunicação o fizeram a contento.

 

Feitas essas ponderações iniciais, analisar-se-á separadamente aspectos penais relevantes de cada um dos três tipos penais retratados.

 

II- CONCUSSÃO

 

 

O crime de concussão está previsto no Código Penal, “in verbis”:

 

  Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:

 

O ex-ministro Sérgio Moro afirmou publicamente em pronunciamento transmitido pelos meios de comunicação que a única exigência que fez ao Presidente da República para assumir o cargo de Ministro da Justiça foi a de uma pensão para sua família, caso viesse a ser morto em razão do exercício do seu cargo na pasta do Ministério da Justiça. Em razão disso, a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, apresentou notícia-crime ao STF contra Moro pelo crime de concussão. Indaga-se: esse fato pode caracterizar o crime de concussão? A resposta sem sombra de dúvida é não. Dois aspectos devem aqui ser observados, sendo o último deles que será abordado o mais relevante. Primeiro, a suposta vantagem aqui exigida, só ocorreria se um evento futuro e incerto acontecesse, qual seja, a morte do Ministro Moro em razão de seu trabalho no exercício do cargo. E por fim, o cerne principal é que o tipo penal traz como elementar na sua parte final que a vantagem seja indevida (grifo do subscritor). Sobre esse ponto, discorrer-se-á mais detalhadamente.

 

Ora, o que se entende por vantagem indevida? É a vantagem ilegal, ilícita, ou seja, não amparada pelo Direito. É o caso por exemplo, do servidor público em razão de sua função exigir propina, como o guarda que exige dinheiro para não multar. Acontece que, no caso concreto, a exigência de vantagem para família pelo ex-ministro não seria indevida, já que ele pretendia que fosse concedida pensão para sua família de forma legal, isto é, com base em lei. A pensão aqui concedida, não só seria legal, como seria justa.

 

Afinal, se Moro viesse a falecer em razão de sua atuação no combate à corrupção, como por exemplo, pelo enfrentamento ao crime organizado, como o PCC, não seria justo que o relevante trabalho e esforço nessa área em prol do país que teria lhe custado a vida, fosse ao menos recompensada por uma pensão para sua família não ficar desamparada? Acredita-se que, qualquer pessoa sensata concordaria que sim.

 

Destarte, agiu de forma acertada o Procurador-Geral da República em não listar esse crime no rol dos investigados, pois, se o fato é atípico, por ausência de uma elementar do tipo penal (vantagem indevida), não há fato ilícito a ser apurado. Aqui repita-se, a conduta do ex-ministro sequer merece censura no campo ético ou moral, quanto mais no âmbito criminal.

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III- OBSTRUÇÃO À JUSTIÇA

 

 

O crime de obstrução à justiça está previsto na Lei 12850/13 que trata da organização criminosa, especificamente no seu art. 2º, §1º, que assim dispõe, “in verbis”:

 

Nas mesmas penas incorre quem impede, ou, de qualquer forma, embaraça a investigação da infração penal que envolva a Organização Criminosa.

 

Os dois núcleos verbais que são utilizados aqui, são impedir e embaraçar. Impedir é interromper a investigação, enquanto embaraçar é dificultar, obstar criar dificuldades para a investigação.

 

Primeira questão importante a ser observada é se esse crime é formal ou material, pois, esse entendimento repercutirá na análise da prática ou não do delito em testilha. O crime é considerado formal quando a norma jurídica embora preveja o resultado não exige a sua produção para a consumação do delito, ao passo que o crime é material quando sua consumação ocorre com a obtenção do resultado previsto na norma. Dar-se-á alguns exemplos, no afã de deixar bem clara essa questão, antes de se debruçar sobre o tipo penal aqui tratado.

 

O crime de homicídio é um crime material, que está descrito no art. 121 do Código Penal, como matar alguém. Ora, para que o crime de homicídio possa se consumar faz-se mister que o evento morte previsto na norma aconteça. Da mesma forma, o crime de furto previsto no art. 155 do CP é material, pois exige para sua consumação que a subtração de coisa alheia que está descrita na norma aconteça.

 

Nos crimes formais, como já dito, diferentemente, prescinde que o resultado ocorra, tendo o legislador se contentado com a conduta para a consumação do delito, independentemente da produção do resultado. É o que ocorre por exemplo, no crime de ameaça previsto no art. 147 do CP, que se refere a ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico de causar-lhe mal injusto e grave. O crime de ameaça portanto, consumar-se-á com o ato sério de ameaça, e não pela produção do resultado previsto norma na expressão “mal injusto e grave”. Pelo contrário, se o mal injusto e grave ocorrer, estar-se-á diante de outro crime, como lesão corporal ou homicídio.

 

Outro exemplo de crime formal é o de extorsão, previsto no art. 158 do CP, que se refere a constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. Aqui o resultado pretendido pelo agente que realiza o constrangimento que é a indevida vantagem econômica não precisa se produzir para a consumação do delito. Em que pese, parte minoritária da doutrina e jurisprudência considerar esse crime material, a posição majoritária é a correta, no sentido de tratar-se de crime formal, cuja evidência parece óbvia quando se analisa a expressão “com o intuito de”, ou seja, o legislador se contentou com a intenção, não exigindo a produção do resultado.

 

Pois bem, feitas essas explicações, indaga-se o crime de obstrução à justiça é formal ou material? Há autores que consideram como material esse crime, na modalidade impedir, mas, formal na modalidade embaraçar. Esse é o entendimento de Rogério Sanches Cunha1, na sua obra em coautoria de Comentários à Lei 12.850/13, posição a qual não se endossa. Na percepção desse subscritor, não há dúvida que tanto na modalidade impedir como na de embaraçar o crime é material. Quando o legislador deseja que a consumação ocorra antecipadamente, ou seja, antes da produção do resultado, utiliza expressões como com o intuito de, ou com a finalidade de, etc. Quando o legislador deseja que o crime seja material, que é a maioria dos casos, utiliza o verbo no infinitivo, “matar, subtrair,” etc., sem qualquer menção a mera intenção.

 

Ora, no crime de obstrução à justiça, o legislador está dizendo que o crime ocorre com o ato de impedir ou embaraçar a investigação. Exige-se portanto, a produção de um desses resultados – impedir ou embaraçar. Se ele desejasse antecipar a consumação, teria dito com o intuito de impedir, ou com a finalidade de embaraçar, e não, usado o verbo no infinitivo embaraçar sem qualquer ressalva. Firmado o convencimento que o crime de obstrução à justiça é material, far-se-á considerações sobre o caso concreto.

 

Pois bem, ainda que o Presidente desejasse interferir na administração da polícia federal, só poderia fazê-lo quando seus subordinados concordassem em ceder a seus pedidos. Assim, mesmo numa análise perfunctória, já que não se tem acesso a dados da investigação que, inclusive, apenas iniciou-se, pode-se inferir e intuir que eventuais afirmações do Presidente dirigidas ao então ministro Moro, revelando seu desejo de trocar o Diretor Geral da Polícia Federal não eram aptos a produzir o resultado previsto na norma de impedir ou embaraçar investigação, constituindo atos preparatórios não puníveis e não inicio da execução. Explicar-se-á melhor esses conceitos, para arrematar com a conclusão sobre o caso concreto em apreço.

 

É noção básica do direito penal que, a tentativa só ocorre com o início da execução do delito, não se confundindo com atos preparatórios que não são puníveis no âmbito criminal. Exemplo: alguém pensa em matar (ato volitivo interno), depois compra a arma que pretende cometer o crime, depois saca a arma para atirar na vítima, e finalmente desfecha um ou vários disparos com a intenção de matar, mas erra o alvo. Nesse caso, o início da execução só ocorreu com a última conduta, qual seja, desferir os disparos na vítima, cujo resultado não adveio por circunstância alheias a vontade do agente, mas que em tese teria sido capaz de produzir o resultado. Há portanto, tentativa apenas quando deu início a execução, sendo os atos anteriores (pensar em matar, comprar a arma e sacar a arma, meros atos preparatórios que não seriam puníveis como tentativa de homicídio).

 

Voltando ao caso concreto, o ato de solicitar a troca do Diretor Geral da Polícia Federal com o intuito de futuramente solicitar dele que impedisse uma investigação X, ou a embaraçasse, é um ato preparatório, e não início de execução. Se por outro lado, houvesse a troca do Diretor Geral da Polícia Federal e o Presidente solicitasse que ele impedisse ou embaraçasse a investigação X, e ele se recusasse, aí sim haveria tentativa de obstrução à justiça. Noutras palavras, o momento temporal pelo qual se dá o início da execução, é quando o ato por si só, é capaz de produzir o resultado. Da mesma forma que, a compra da arma com a intenção de matar alguém é mero ato preparatório, a troca do Diretor Geral da Polícia Federal seria ato preparatório, e apenas quando viesse efetivamente a solicitar do novo Diretor que interviesse numa investigação é que caracterizaria o crime na modalidade consumada se efetivamente houvesse um interferência na investigação, ou tentado se houvesse a recusa.

 

Assim, embora atos preparatórios da execução de um delito sejam repreensíveis no campo ético e da moralidade, não são puníveis no campo penal, que deve ser a ultima “ratio”, ou seja, o direito penal só deve ser acionado em último caso quando os demais ramos do direito já tiverem falhados. Seria em tese possível que esses atos preparatórios fossem levados em consideração para eventual enquadramento em crime de responsabilidade que se reveste de caráter político (art. 85, II e V, da CF), mas não como crime comum, uma vez que, frise-se, atos preparatórios são impuníveis.

 

Não obstante, se entenda que a simples tentativa de trocar o Diretor Geral da PF seja ato preparatório não punível, há que se fazer a ressalva que com o aprofundamento da investigação policial, novos fatos podem ser revelados e que eventualmente possam caracterizar o crime de obstrução à justiça, como por exemplo, ligação telefônica direta para o delegado que conduz determinada investigação buscando impedir ou embaraçar atos investigatórios. Portanto, ainda que “prima facie” não se vislumbre a prática desse crime pelo Presidente pelo que se tem conhecimento até o momento, não se pode descartar essa possibilidade se a investigação revelar outros fatos ainda não conhecidos, razão pela qual, agiu bem o Procurador-Geral da República em determinar a instauração de inquérito policial para investigar os fatos.

 

IV- PREVARICAÇÃO

 

 

O crime de prevaricação está previsto no art. 319 do CP, com a seguinte redação:

 

Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

 

Alguns comentários foram feitos sobre esse crime, alegando que se o ex-ministro Moro tomou conhecimento da prática de crime pelo Presidente e não informou imediatamente às autoridades públicas teria incorrido nesse delito. Aqui se faz uma distinção entre qualquer pessoa do povo que pode informar à autoridade policial à pratica de um crime nos termos do art. 5º, §3º, do CPP, do agente público que teria o dever de informar.

 

Acontece que, duas questões merecem análise nesse caso. Se ficar compreendido que o Presidente não cometeu o crime de obstrução à justiça, Moro também não teria incorrido em prevaricação por ter deixado de informar às autoridades públicas (delegado, MPF ou juiz) uma suposta interferência futura na PF que não caracterizaria crime. Ademais, ainda que entenda o Procurador-Geral da República que houve o crime de obstrução à justiça por parte do Presidente e que Moro não informou às autoridades públicas imediatamente, há que se analisar o motivo dessa omissão. Se por exemplo, o ex-Ministro entendeu que determinado pedido do Presidente para trocar o Diretor Geral não caracterizaria delito, nem na sua forma tentada, e por isso não comunicou o fato, não haveria o crime por ausência do dolo específico.

 

De fato, o tipo penal em apreço exige o dolo específico, ou seja, a vontade de praticar o crime visando uma finalidade específica. É o que se extrai da expressão contida na parte final desse tipo penal “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Assim, se a ausência de comunicação da atitude do Presidente se deu em razão da compreensão de que não houve crime (consumado ou tentado), não haveria o dolo específico de satisfazer interesse ou sentimento pessoal, diferentemente se o fez com o único intuito de se manter no cargo.

 

Como disse, na ótica do presente subscritor, ao menos “prima facie”, não houve esse crime por parte do ex- Ministro Moro, porque também não houve o delito de obstrução à justiça por parte do Presidente, portanto, não havia nenhum delito a ser comunicado. Caso se entenda de forma diversa, que o Presidente praticou o crime de tentativa de obstrução à justiça, ainda ter-se-ia que analisar a existência ou não do dolo específico por parte de Moro.

 

 

V- CONCLUSÃO

 

 

Como se sabe, no direito penal é muito importante a análise de todas as elementares do tipo penal, já que a ausência de uma delas, causa a atipicidade absoluta (o fato é totalmente atípico) ou relativa (o fato pode caracterizar outro delito, mas não aquele cuja elementar não foi preenchida). Assim, é importante que a análise seja feita com imparcialidade e muito cuidado para evitar injustiças. O direito não pode ser analisado pela paixão política, nem por uma noção de Justiça que não encontre amparo legal, sobretudo, no direito penal, que está regido pelo princípio da legalidade insculpido no art. 1º, do Código Penal, cuja importância é realçada por estar em jogo bem jurídicos de alta relevância tanto para sociedade como para o investigado ou réu.

 

As considerações aqui feitas, embora tenha citado um caso concreto, objetiva apenas confrontá-lo com conceitos jurídicos essenciais e que não podem ser olvidados, sob pena de se cometer injustiças irreparáveis. Em última análise, o que se objetiva é forçar os operadores do direito a se debruçarem sobre pontos cruciais para o desfecho do “imbroglio” jurídico, de sorte que a lei seja aplicada na sua exata medida.

 

 

 

 

Yordan Moreira Delgado é Procurador da República em João Pessoa – PB

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos – RJ

Lecionou Direito Penal na FDC RJ e Penal e Processo Penal no Unipê - PB

 

 

 

 

1Cunha, Rogério Sanches; Pinto, Ronaldo Batista; Souza, Renee do ó. Comentários à Lei 12.850/13. 5ª Ed. Salvador: Jus Podivm, 2020. p. 22.

Sobre o autor
Yordan Moreira Delgado

Procurador da República e professor universitário. O autor, além de ter enorme experiência profissional na área penal, por ter exercido durante mais de cinco anos o cargo de Promotor de Justiça do Estado da Paraíba, e por estar há quase uma década como membro do Ministério Público Federal, sempre foi um apaixonado pelo estudo do direito penal e processual penal, tanto que exerceu a catédra de direito penal (parte geral, especial e leis penais extravagantes) na Faculdade de Direito de Campos – RJ, onde também defendeu dissertação de mestrado nessa área, e atualmente leciona Penal no Centro Universitário de João Pessoa (Unipê) – PB. Já lecionou também na Escola Superior do Ministério Público da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Tem diversos artigos publicados na área penal e processual penal, além da obra já mencionada.

Informações sobre o texto

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