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Autonomia constitucional dos entes federativos e a lógica da competência tributária

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4. A lógica de distribuição de competência tributária

A temática da competência tributária e da repartição das receitas oriundas de sua prática é um tema de vital importância para a estrutura e para a harmonia entre os entes da Federação. E não foi sem boa preocupação que o constituinte originário distribuiu as competências tributárias na melhor forma visível à época de sua elaboração.

É possível identificar alguns critérios adotados pela constituinte que definiram a distribuição de competências. Leandro Paulsen observou três critérios em especial, podendo inclusive existir ocasião na qual uma competência tenha sido deliberada para um ente com a aplicação de mais de um critério, são eles: critério da atividade estatal, critério da base econômica, e critério da finalidade.

O critério da atividade estatal reflete o caráter contraprestacional de alguns tributos, notoriamente, das taxas e das contribuições de melhoria (tributos vinculados). Percebe-se aqui a função direta da tributação em decorrência de algum fazer do Estado, característica marcante dos tipos de tributos mencionados, tornando esse critério de competência autoexplicativo.

Quando qualquer um dos entes realizarem seu poder de polícia ou quando uma pessoa utilizar, de serviços públicos específicos e divisíveis, está autorizado o ente para a cobrança da taxa (art. 77, do CTN). Da mesma forma, qualquer um dos entes que realizar uma obra pública da qual resultar valorização imobiliária poderá realizar a cobrança da contribuição de melhoria (art. 81, do CTN).

O segundo critério elencado é o da base econômica no atual ordenamento jurídico-constitucional, segundo o qual a Constituição da República deferiu competência tributária aos entes da federação baseando-se em riquezas específicas, ou bases econômicas específicas. Tal critério pode ser observado nos impostos, presentes nos artigos 153, 155, e 156 do Texto Magno, bem como as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico podem ter sua instituição segundo determinadas bases econômicas.

No tocante aos impostos, a União ficou encarregada de tributar certas riquezas, como, por exemplo, a importação, a exportação e operações sobre a industrialização de produtos. Já os Estados-membros ficaram com a liberdade de tributar a propriedade de veículos automotores, a circulação de mercadorias, etc. Os Municípios, por sua vez, ficaram incumbidos de tributar a propriedade imóvel urbana, a prestação de serviços de qualquer natureza e transmissão de bens imóveis inter vivos, desde que não seja por doação ou herança (essa parcela de competência está com os Estados, via ITCMD).

É possível enxergar o mesmo critério quanto às contribuições sociais. Encontram-se destacadas na Lei Fundamental em seu art. 195, inc. I a IV, algumas bases econômicas passíveis de tributação por parte de qualquer um dos entes federativos.

O terceiro critério de competência tributária usado na Constituição foi o da finalidade, usando desse critério o texto constitucional indica áreas que legitimam a instituição de tributos para o seu custeio e sua efetiva cobrança. Esse critério é adotado principalmente nos tipos de tributo denominados contribuições (gerais) e empréstimos compulsórios (art. 149, da CF).

Nesse critério o tributo possui caráter instrumental, ou seja, o tributo serve como um instrumento para a realização de alguma política pública ou projeto do governo. Andrei Pitten Velloso comenta que o legislador não está autorizado a buscar toda e qualquer finalidade através das contribuições especiais, porque no sistema constitucional vigente no Brasil não existe uma competência genérica para instituição de tributos nesse molde, mas o que existe na verdade são competências específicas.

Nota-se que os tributos determinados pela Carta Magna com a adoção desse critério criam uma situação de necessidade de um duplo controle: o primeiro para garantir que a lei instituidora do tributo esteja de acordo com a finalidade pensada pelo texto constitucional; e posteriormente um segundo controle para que seja assegurado que, instituída a lei em questão e efetuada a cobrança do tributo, seus recursos sejam destinados, mais uma vez, para cumprir a finalidade preestabelecida na ordem constitucional e na norma infraconstitucional.

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5. CONSEQUêNCIAS DO MODELO DE FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO

Em 2016, segundo dados da Receita Federal do Brasil, a carga tributária representou 32,38% do Produto Interno Bruto do país, totalizando mais de dois bilhões de reais. É evidente que o campo da tributação representa ponto vital para o funcionamento da República e manutenção do funcionamento de todos os entes da Federação.

A temática do federalismo fiscal é um ponto diretamente ligado à questão entre federação, competências e repartição de receitas tributárias. Federalismo fiscal é uma fatia do federalismo que se preocupa com a consolidação da melhor forma de distribuição de competências e receitas entres o governo central e os governos regionais e locais. O constituinte procurou atender a essa necessidade à época maneira, como entende Nathalie de Paula Carvalho:

A Constituição de 1988 concedeu autonomia de recursos para todos os entes federados, que podem exercê-la diretamente, através da instituição direta de seus próprios tributos ou através de um sistema de “fundos”, através dos quais um ente federativo recebe e transfere as receitas a outro. Assim, cada ente federativo tem asseguradas as seguintes fontes de recursos fiscais: a competência para instituir e cobrar os tributos que a Constituição lhe confere e as receitas transferidas pelo sistema de Federalismo Participativo através da repartição direta do produto dos tributos arrecadados por um ente e transferidos e da repartição indireta, pelo sistema de fundos de participação. 

 Os pontos acerca da temática da competência tributária já foi expressa anteriormente, é necessário, então, analisar as consequências dessa estrutura federalista adotada pela Constituição do Brasil de 1988 no campo tributário.

Apesar de ser estruturado precipuamente como um federalismo de cooperação, a federação brasileira sofre com a chamada guerra fiscal. Ela ocorre tanto no âmbito estadual quanto no municipal quando algum desses entes federativos proporciona isenções especiais, incentivos fiscais gerais ou até renúncia de receitas, em prol de atrair empresários para que eles tragam seus empreendimentos para o território do ente em questão. Apesar de parecerem vantajosos para quem pratica as ações listadas acima, entre outras, a verdade é que toda a estrutura da federação acaba abalada no longo prazo.

Um dos impostos mais problemáticos observado sob a ótica da guerra fiscal é o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios. Presente no art. 156, inc. III, da Constituição, o ISS teve tratamento especial, com o texto constitucional delegando a definição das normas gerais desse tributo para lei complementar federal, atualmente a Lei Complementar nº 116/2003, tendo cada Município o dever de criar sua lei ordinária responsável pela instituição local do imposto.

A Constituição teve a intenção de uniformizar o ISS pela lei complementar, como entende Regina Helena Costa:

Outro aspecto relevante é o traduzido na preocupação constitucional com a uniformidade da disciplina do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN. Com efeito, considerando-se a existência de mais de 5.500 Municípios no País, a Lei Maior, a par de dedicar diversas normas a respeito, cuidou de atribuir à lei complementar o regramento de alguns aspectos dessa imposição fiscal, restringindo, assim, a liberdade do legislador municipal.

Mesmo com essa medida diferente do que ocorre com a maioria dos outros impostos, a lei complementar não foi suficiente para diminuir os impactos da guerra fiscal.

Um dos pontos mais controversos acerca do ISSQN, mesmo com a existência de uma norma complementar federal, é o local da prestação de serviços, que se divide em: município do estabelecimento do prestador, município do estabelecimento do tomador ou o município da prestação, onde ocorre o fato gerador do imposto.

Eduardo Sabbag aponta que essa questão é uma celeuma clássica, a qual não foi resolvida nem pelo legislador constituinte, nem pela LC nº 116/2003, a qual não apresentou soluções eficazes ao intricado problema do “local da prestação de serviços”. O autor aponta ainda que o art. 3º, caput, trouxe a regra geral sobre o sujeito ativo do ISS, porém, foram destacados 22 incisos (atualmente 20, devido ao veto), admitindo exceções ao caput.

Outra questão envolvendo esse imposto se dá no conflito existente em relação ao ICMS, apesar de a Constituição deixar claro essa diferença e supostamente evitando qualquer disputa, ao dispor que os municípios tributariam “serviços de qualquer natureza não compreendidos no art. 155, II”, ou seja, não compreendidos na competência estadual do ICMS.

José Eduardo Soares de Melo e Leandro Paulsen explicam que essa intersecção pode ocorrer, pois, de fato, a realidade mostra diversas ocasiões em que poderia ocorrer conflito tributário se apenas fossem utilizados conceitos de natureza econômica (ao invés dos imprescindíveis conceitos jurídicos), quais sejam, por exemplo: o fornecimento de concreto para uma obra de construção civil constitui um material de auxílio na construção civil, enquanto o concreto vendido nas lojas é tratado como mercadoria; ou o remédio ministrado ao paciente de um hospital não se qualifica como mercadoria, mas como outro auxiliar na prestação do serviço medicinal.

Outra questão que circunda o Imposto sobre Serviços é a taxatividade ou não da sua lista anexa de serviços, que traz fatos geradores variados, os quais devem ser tributados com o referido imposto. Essa lista de serviços foi estabelecida na lei complementar federal responsável por normatizar o ISS, e fica a cargo dos Municípios e do Distrito Federal podem optar, no ato de editarem suas leis ordinárias próprias, por tributar todos os serviços da lista ou apenas uma parcela deles.

Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça editou o seguinte enunciado: súmula nº 424 - É legítima a incidência de ISS sobre os serviços bancários congêneres da lista anexa ao Decreto-lei. 406/68 e à Lei Complementar 56/87.

Em uma interpretação literal da Lista de Serviços, é possível considerá-la como taxativa, não podendo fugir de seus termos nenhuma consideração ampliativa. Porém, após algumas mudanças de jurisprudência, Kiyoshi Harada aponta um acolhimento da tese que a lista trata-se de uma lista taxativa por parte do Supremo Tribunal Federal. Entretanto essa taxatividade não impede a interpretação de cada um dos itens da lista de forma a conceder maior ou menor alcance, atingindo serviços que, caso não sejam individualizados, devam ser considerados abrangidos pela norma.

Existem variados outros aspectos que afetam a tributação na federação brasileira criando desestabilidade entre tributos, como pode ocorrer entre o ISSQN e o ICMS. Outras que ocorrem com tributos de forma isolada, mas múltiplos entes com as mesmas competências digladiando pelo direito de efetuar a cobrança, além disso, existem situações nas quais o correto é que ocorra a aplicação de dois impostos ao mesmo tempo.

Referido conflito deu origem, por exemplo, à súmula vinculante nº 31: É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis" e às súmulas 163 e 274 do STJ: “o fornecimento de mercadorias com a simultânea prestação de serviços em bares, restaurantes e estabelecimentos similares constitui fato gerador do ICMS a incidir sobre o valor total da operação” e “o ISS incide sobre o valor dos serviços de assistência médica, incluindo-se neles as refeições, os medicamentos e as diárias hospitalares.”


CONCLUSãO

Esse estudo sobre a autonomia constitucional e a lógica da competência tributária na Federação brasileira, necessariamente, teve como ponto de partida uma análise sobre as formas de Estado existentes no mundo contemporâneo. Delas podemos tirar diversos entendimentos, um deles é a adequada decisão de se ter escolhido a forma federativa de Estado, em vez das outras opções conhecidas atualmente, o Estado Unitário e a Confederação.

Já poderíamos chegar a essa conclusão pelo fato de que somente uma união forte como um pacto federativo possui o condão de manter unificado vasto território, rico em suas diferenças socioeconômicas.

A Constituição de 1988 desde sua elaboração já se preocupava com esse ponto, impondo princípios como o da uniformidade geográfica, o princípio da isonomia, e pela instituição de diversas imunidades, notoriamente para a discussão ora proposta, como a imunidade reciproca entre os entes estatais.

A dinâmica e extensão das relações da República com outros Estados, traduzida sobre o olhar da soberania do Estado brasileiro, bem como as relações internas, sob o manto da autonomia constitucional demonstra a necessidade de se procurar o equilíbrio entre os entes federativos, e demonstra principalmente o papel que a tributação exerce sobre esse equilíbrio.

Tema central oferecido nesse texto, a competência tributaria demonstra-se complexa, e núcleo da análise proposta. Para isso revisitar seus fundamentos é de grande valia. Entender a extensão dos diferentes tipos de competência conferidos aos entes federativos prova que o modelo atual está longe de ser uniforme.

Outra pertinente observação se dá nas divergências entre a competência e a capacidade tributaria ativa, ambas com diferentes características e funções. A indelegabilidade de uma frente à delegabilidada da outra, por exemplo, mostram que não se trata todo o sistema de competências tributarias com rigidez pétrea.

Percebe-se que a função fiscal dos Estados está presente em todos os entes federativos, e ela não se dá sem motivo. Existe na carta republicana repartições de competências não apenas tributárias, mas também legislativas e administrativas, e ambas, para alcançar sua máxima realização possuem um custo, suportado parcialmente pela efetivação das normas tributárias e das competências constitucionais.

Além dela, outro instrumento vital para o funcionamento da federação é a repartição das receitas tributárias de alguns impostos e contribuição, ocorrendo ora de forma direta e ora de forma indireta. Essas parcelas de receita estão protegidas pelo texto constitucional da retenção inconstitucional, evitando que o ente tributariamente competente deixe de efetuar o repasse. Inócua seria a norma caso não houvesse garantia da repartição. Ademais, a repartição ocorre apenas do ente federativo maior para o menor, e nunca o contrário, outra medida de estabilização do federalismo fiscal brasileiro.

Entretanto, o ideal seria que não houvesse essa repartição de receitas tributárias do ente maior para o ente menor. Melhor seria se o ente menor arrecadasse diretamente todas essas receitas tributárias que lhe são repassadas, o que atenderia muito mais os princípios constitucionais da eficiência e da autonomia dos entes federativos, já que o ente local é o maior realizador de serviços públicos e está muito mais próximo da população.

Por fim, pode-se chegar à conclusão de que esse modelo de federalismo fiscal encontra-se longe da perfeição, porquanto existam diversas ocasiões em que são observadas eventos da chamada guerra fiscal.

A tributação compõe parcela vital do produto interno bruto brasileiro, e a busca por um modelo mais próximo do ideal deve ser um dos objetivos buscados pelo legislador, com contribuição da doutrina e da jurisprudência.

Sobre os autores
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.

Thiago Alessandro Tormena

Especialista em Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno Abdalla; TORMENA, Thiago Alessandro. Autonomia constitucional dos entes federativos e a lógica da competência tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6970, 1 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82100. Acesso em: 17 nov. 2024.

Mais informações

O texto foi elaborado tendo em vista as complexas implicações que a forma de Estado adotada, no caso a Federal, traz para a divisão das competências tributárias, além de estabelecer algumas observações acerca de situações que são consideradas peculiares sob o ponto de vista doutrinário.

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