3. Fundamentos da Competência Tributária
O poder de tributar, fruto do ius imperium do Estado, foi outorgado pela Constituição Federal, sendo que devido à união indissolúvel dos entes federativos consagrada no texto da lei maior, foi necessário fragmentar esse poder entre os entes da federação, para preservação de suas autonomias.
Essa divisão do poder de tributar foi o que resultou na criação de competências tributárias pela Constituição. Além de designar os tributos existentes no ordenamento jurídico nacional, ela estabeleceu o tipo de trabalho legislativo que seria apto a tratar em cada espécie tributária.
Um exemplo desse mandamento constitucional está presente no art. 148, em que foi dada a possibilidade de instituição de empréstimos compulsórios, de competência da União, mediante lei complementar, para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência ou no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional. Por essa razão, parte da doutrina entende que o art. 15, inc. III, do Código Tributário Nacional encontra-se revogado.
É possível verificar essa característica da competência tributária na Constituição de 1988 quando ao designar a competência dessa espécie de tributo para a União, também determina que o instrumento legislativo hábil para tal desiderato é a lei complementar (difere da lei ordinária pelo quórum de aprovação – art. 69).
Importante destacar que em momento algum a Constituição criou tributo de fato, na verdade ela apenas dá a possibilidade de que quando desejar, utilizando de sua autonomia, o ente federativo imbuído da competência tributária crie o tributo em questão, mediante instrumento legislativo apropriado, regra geral a lei ordinária.
Tem-se, então, que a competência tributária é uma parcela desse poder de tributar do Estado Federal. Vittorio Cassone, citando os ensinamentos de Geraldo Ataliba, bem define a situação da repartição das competências constitucionais tributárias no Brasil:
“No Brasil, temos uma tríplice repartição do Poder Público e uma curiosa participação, que se dá em cada caso. União, Estados e Municípios têm seu Poder Legislativo, seu Poder Executivo; cada um tem uma parcela do poder, mas nenhum tem o poder tributário. Só o poder constituinte tem poder tributário e dele se utilizou, distribuindo as competências tributárias pela União, Estados e Municípios.
Daí, fica fácil definir competência: é a parcela de poder tributário, que a Constituição dá às pessoas políticas. (...)”
Ao mesmo tempo em que a Lei Fundamental distribuiu a competência tributaria para os entes, também criou restrições para eles, seja para proteção do contribuinte, também chamado de sujeito passivo na relação jurídico-tributária, seja para a manutenção da estabilidade da Federação. Tais limitações estão presentes primordialmente entre os artigos 150 a 152, consagrando seção denominada “Das Limitações do Poder de Tributar”.
O Código Tributário Nacional (Lei Federal nº 5.172/1966) é o diploma de normas gerais sobre Direito Tributário, originalmente lei ordinária, recepcionado pela Constituição Federal de 1988 como lei complementar, por força de seu art. 146, inc. III.
A competência tributária é mencionada no CTN em seu art. 6º como “a atribuição constitucional de competência tributária compreende a competência legislativa plena, ressalvadas as limitações contidas na Constituição Federal, nas Constituições dos Estados e nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios, e observado o disposto nesta Lei.”
Dele é possível retirar o entendimento de que somente a Constituição define competência tributária. Ademais, a competência legislativa plena citada no artigo corresponde ao art. 24, I da Carta Magna: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; (...)”. Em outras palavras, competência legislativa plena corresponde à competência legislativa concorrente.
Por se tratar de competência concorrente, a Constituição da República criou uma sistemática única em relação aos outros tipos de competência, em seu art. 24, §§ 1º ao 4º. Resumidamente, cabe à União estabelecer normas gerais; suplementadas pelos Estados-membros; na falta de normas gerais elaborada pela União, os Estados podem exercer a competência legislativa plena, criando normas gerais e específicas; e se sobrevier norma geral federal, suspende-se a eficácia da lei estadual, naquilo que lhe for contrário.
Os municípios não ficam de fora dessa competência legislativa concorrente. Apesar de não serem mencionados no art. 24, o art. 30, inc. II, prescreve que eles suplementarão a legislação federal e a estadual no que couber.
Existe inclusive jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à competência legislativa plena, vejamos:
EMENTA: RECURSO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMPETENCIA. (...). IMPOSTO SOBRE PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES. DISCIPLINA. Mostra-se constitucional a disciplina do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores mediante norma local. Deixando a União de editar normas gerais, exerce a unidade da federação a competência legislativa plena. §3º do artigo 24, do corpo permanente da Carta de 1988 -, sendo que, com a entrada em vigor do sistema tributário nacional, abriu-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, a via de edição de leis necessárias à respectiva aplicação - §3º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988.
Por fim, observando rapidamente, já que o pacto federativo é de vital importância pra o sustento do país, inclusive com o constituinte originário abolindo desde a criação da lei maior a possibilidade de secessão, a divisão de competências mostra-se inevitável.
Kiyoshi Harada ensina que pelo fato da ausência de hierarquia entre as entidades da federação fez que o Texto Magno estabelecesse a repartição de competência legislativa de cada uma, delimitando o campo de atuação de cada uma delas, notadamente em matéria tributária, a qual mereceu uma atenção especial devido a tipicidade da Federação Brasileira, onde o contribuinte é súdito, simultaneamente, de três governos distintos.
Esse capítulo pretende analisar as principais características que norteiam o poder denominado de competência tributária, para tornar possível a observação da repartição de competências dos entes estatais de modo geral, contrastada com o modelo de federalismo no Brasil.
3.1 Características da competência tributaria e da capacidade tributaria ativa
A competência tributária possui diversas características ou princípios que a delimitam com os contornos feitos pela Federação brasileira. A primeira trata-se da indelegabilidade da competência tributaria, a qual, respaldada pelo principio da estrita legalidade tributária, impede que um ente federado delegue a competência pela atividade legislativa de instituir um tributo em abstrato.
Outra característica, similar à anterior, é o fato de a competência tributária ser intransferível entre os entes federativos, e se justifica pela natureza de autonomia e harmonia na federação.
Além disso, a competência tributaria é inalterável pelo legislador ordinário, pois se a Constituição Federal deu liberdade a um ente federativo para instituir um tributo para um caso especifico e discriminado por seu texto, não poderia um desses entes subverter o texto constitucional a seu bel prazer.
Claudio Carneiro desmistifica essa característica, explicando que a norma de competência tributária, porquanto tenha amparo constitucional, não pode ter sua dimensão ampliada, porém pode restringi-las, pois um ente não tem obrigação literal da Constituição para exercer sua competência tributaria em toda sua amplitude, ou ainda, o ente estatal pode exercê-la em menor grau, sob pena de impossibilitar, por exemplo, uma eventual outorga de isenções.
Outrossim, conforme decidiu o STF no ARE 743.480, “não existe reserva de iniciativa ao chefe do Poder Executivo para propor leis que implicam redução ou extinção de tributos, e a consequente diminuição de receitas orçamentárias.” Ou seja, parlamentares também detém legitimidade para apresentar projetos de lei sobre o tema.
Oportunamente, cabe salientar que a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar Federal nº 101/2000), em seu art. 11, estatuir que “constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”, sob pena de ser vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que não observe essa norma, no que se refere aos impostos.
Como último ponto a ser adicionado sobre os seus princípios, a competência tributária ter como característica a irrenunciabilidade, segundo a qual o ente federativo está proibido de renunciar ou de alguma forma perder essa competência constitucional tributaria, como visto no art. 8º do Código Tributário Nacional: “o não-exercício da competência tributária não a defere a pessoa jurídica de direito público diversa daquela a que a Constituição a tenha atribuído.” De certa forma, poderia denominar esse ponto como imprescritibilidade da competência tributária.
Passado a observar dessas características, importante realizar a análise do fato de a competência tributaria, em si, mesmo sendo indelegável, não traduzir uma obrigação do ente estatal de editar a lei, efetuar a fiscalização e a cobrança. Enquanto a competência legislativa de criar tributos pertence somente aos entes, outras atividades administrativas relacionadas a esses tributos podem ser delegadas. Neste instante importante diferenciar a competência tributaria da capacidade tributária ativa.
Para ilustrar a diferença entre competência tributária e capacidade tributaria ativa, Vittorio Cassone citando ensinamentos de Geraldo Ataliba exemplifica dizendo que caso uma lei federal cria um tributo e não diz, de forma expressa em seu texto, quem é o sujeito ativo, essa pessoa é naturalmente a União. Já se uma lei estadual cria um tributo e não diz, expressamente, quem é o sujeito ativo, implicitamente está dizendo que é o Estado-membro que editou tal lei. E a mesma coisa para o Município. Quando a lei quiser atribuir a capacidade tributária ativa à outra pessoa, precisará dizer, expressamente: sujeito ativo é o INPS, é o SESC, é o SENAI, é o INCRA, é o DER. A lei terá, portanto, que dizer, expressamente, quando queira dar a capacidade tributária a quem não seja pessoa política, da qual ela, lei, é emanada.
É claro que, o fato de não houver uma delegação não exclui o conceito de capacidade tributária ativa, mas muda o modo em que ela se apresentará. Quando o próprio ente federativo titular da competência tributária exerce a atividade administrativa relacionada, trata-se da forma direta. Já na forma indireta, demonstra-se a delegação da capacidade a uma pessoa diferente. Essa segunda forma, inclusive, subdivide-se em outras duas, nas palavras de Claudio Carneiro:
a) Parafiscalidade – ocorre quando um terceiro exercer a capacidade tributária ativa por delegação e ao mesmo tempo dispensa dos recursos arrecadados. A parafiscalidade é uma sistemática de ordem financeira concernente À descentralização da arrecadação das receitas públicas. São receitas chamadas de paralelas ao orçamento fiscal do Estado, em que o produto da receita vai para os cofres de alguém que, embora não sendo o fisco, está ao lado do Fisco com o objetivo de colaboração.
b) Retenção na fonte – a retenção na fonte é também chamada por alguns autores de sujeição ativa auxiliar. Nela, um terceiro que arrecada não tem a disponibilidade do valor retiro, sob pena de apropriação indébita, ou seja, não pode ficar com valor arrecadado, tendo que repassá-lo ao Fisco. São as chamadas fontes pagadoras, que fazem a retenção na fonte. Contudo, esse entendimento não é pacífico. Há quem sustente que a retenção na fonte nada mais é do que o cumprimento de uma obrigação acessória, ou seja, uma obrigação instrumental imposta a um terceiro vinculado ao fato gerador. A pessoa que faz a retenção assume um papel de mero agente arrecadador (...)
Ademais, e possível verificar algumas características essenciais que diferenciam a capacidade tributária ativa da competência tributária. A maioria delas pode ser retirada diretamente do art. 7º do Codex Tributário Nacional.
Eduardo Sabbag cita que, no Brasil, essa situação de parafiscalidade é comum a certas autarquias (entidades corporativas, como o CREA, CRC, CRM, CRECI, etc.), as quais recebem da União o encargo de fiscalização envolvendo uma classe profissional e, especificamente, de exigir tributo – no caso, a contribuição profissional ou corporativa, instaurada no art. 149 da Constituição Federal – dos profissionais vinculados àquelas entidades profissionais, também chamadas entidades de classe.
Contudo, esse não é o caso da OAB, pois a Suprema Corte atribuiu a ela a qualidade de entidade sui generis, visto que não é autarquia federal como suas similares, tampouco entidade da administração indireta, porém, goza de alguns privilégios típicos da fazenda pública (ADI 3.026/DF), posicionamento esse que, a nosso ver, viola o princípio da isonomia.
Nesse sentido, anota Carina Estephany Ferreira, comentando a natureza jurídica da OAB, que “tratá-la como entidade ímpar, não equivalente às demais entidades fiscalizadoras de profissões regulamentadas, constitui flagrante discriminação às estas últimas, haja vista que o objetivo de todas elas é o mesmo, qual seja, a fiscalização e a regulamentação do exercício de profissões. Ademais, se a OAB presta uma espécie de serviço público indelegável, por meio do exercício do poder de polícia, não há razão para não integrá-la à administração indireta. Seguindo o raciocínio, as contribuições pagas pelos inscritos possuem natureza compulsória, caracterizando-se como dinheiro público, sendo indispensável o controle pelo Tribunal de Contas.”