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Autonomia constitucional dos entes federativos e a lógica da competência tributária

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Resumo:


  • A competência tributária é indelegável e intransferível entre os entes federativos, garantindo a autonomia e harmonia na federação.

  • A competência tributária é inalterável pelo legislador ordinário, não podendo ser ampliada, mas podendo ser restringida, para evitar a subversão do texto constitucional.

  • A competência tributária é irrenunciável, não podendo o ente estatal renunciar ou perder essa competência constitucional tributária, sendo imprescritível.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2. Soberania e Autonomia Constitucional 

Ponto essencial no estudo das competências dos entes federativos, após um bom entendimento sobre a estrutura histórica da Federação e também da realidade brasileira em si, é a observação de em que consiste a soberania e a autonomia constitucional dentro do ordenamento jurídico inaugurado em 1988.

Sahid Maluf aponta que o assunto da soberania em um Estado Federal foi amplamente discutido por teorias como as de Le Fur, Duguit, Kelsen, Jellinek, Mouskholi, Verdross, Carré de Malberg, entre outros, porque à harmonização do sistema federativo vai ao encontro do conceito clássico de soberania una e indivisível. Uma das soluções, do escritor norte-americano Calhoun, afirmava que a soberania, por ser indivisível, permanecia com todos os Estados federados, o que serviu para instigar a guerra de secessão norte americana, em que os Estados do sul desejaram extinguir a União com os Estados do norte, mas acabaram derrotados (sob direção do presidente Abraham Lincoln), e a ideia de a soberania pertencer somente à União persistiu.

Entretanto, não se pode admitir que a soberania estivesse presente em todos os membros da federação, pois tornaria a União vulnerável. Ademais, o que une as unidades da federação é um verdadeiro pacto, e não um simples tratado, como existente no modelo confederativo, ou seja, não pode ser anulado por uma das partes.

Segundo Guilherme Pena de Moraes, o termo “soberania” é revestido de três acepções: qualidade do poder político, titularidade do poder político e competências do Estado:

A soberania denomina a qualidade do poder político, isto é, a capacidade de o Estado organizar-se e dirigir-se de acordo com a sua vontade incoercível e incontrastável, reconhecida pelo Direito e sancionada pela força.

Nessa primeira acepção é possível identificar o papel da soberania como o poder político que afirma a independência do Estado, garantindo que tome seus próprios rumos, sem que outros Estados ou organismos internacionais tomem decisões em seu lugar (art. 4º, inc. I, da CF).

A soberania denota a titularidade do poder político, ou seja, a soberania nacional, na qual o poder político é totalmente conferido à nação, e a soberania popular, na qual o poder político é parcialmente concedido a cada membro do povo.

Posteriormente, considera-se a soberania como elemento do poder político interno, pertencendo a uma nação soberana. No Brasil é possível enxergar esse ponto no parágrafo único do artigo primeiro da Constituição Federal, o qual nomeia o povo como titular absoluto do poder, exercendo-o diretamente ou indiretamente, a depender do mandamento constitucional.

A soberania designa as competências do Estado, traduzida pela nomeação de magistrados, instituição e majoração de tributos, produção de invalidação de normas jurídicas, declaração de guerra e celebração de paz e solução de conflitos de interesses entre os súditos, em última instância.

Por fim, o autor elenca a soberania como o poder estatal de criar e impor obrigações ao seu povo, também chamado de ius imperium pela doutrina. É claro que esse poder não é absoluto, devendo sempre ser respeitado o procedimento que a Constituição escolheu para tal desiderato (devido processo legislativo). Nota-se também que, pelo fato de o Brasil ser organizado sob a forma de uma federação, algumas das prerrogativas citadas são de competência do governo central, enquanto outras foram distribuídas para os outros entes federativos, dando forma a chamada autonomia constitucional.

Transferindo esse debate à realidade brasileira, é preciso observar que a soberania do Estado brasileiro está prevista no art. 1º, inc. I, da Norma Fundamental como um de seus fundamentos.

2.1. Autonomia constitucional

Se a soberania do Estado brasileiro ficou expressa logo no primeiro artigo da Constituição, inaugurando seu Título I, a autonomia constitucional ficou disposta no primeiro artigo do Capítulo I, do Título III do texto constitucional, quando começa a trata da organização político-administrativa do Estado, a iniciar pelo art. 18: “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.

Tanto o art. 1º quanto o 18 da Carta Primordial trazem elementos similares, elencando os entes federativos, a notável diferença quanto a esse artigo é a presença da autonomia constitucional garantindo a operacionalidade dos entes, quanto aquele artigo teve por objetivo a criação da República Federativa do Brasil.

A segunda menção à autonomia ocorre no momento que a lei maior instaura o processo de intervenção federal, no art. 34, inciso VII, alínea ‘c’. Nessa esteira, decidiu a Corte Máxima de Justiça que o descumprimento voluntário e intencional de decisão transitada em julgado configura pressuposto indispensável ao acolhimento do pedido de intervenção federal. A ausência de voluntariedade em não pagar precatórios, consubstanciada na insuficiência de recursos para satisfazer os créditos contra a Fazenda estadual no prazo previsto no § 1º do art. 100 da Constituição da República, não legitima a subtração temporária da autonomia estatal, mormente quando o ente público, apesar da exaustão do erário, vem sendo zeloso, na medida do possível, com suas obrigações derivadas de provimentos judiciais. (IF 1.917 AgR e IF 4.640 AgR)

Esse é um caso mais específico, tratando da manutenção da autonomia municipal. Como citado anteriormente, o Estado brasileiro está estruturado como federalismo de segundo grau, desta forma, em caso de a administração regional exacerbar suas competências e interferir no funcionamento da administração local, a Constituição autorizou a administração nacional a tomar providências, via o excepcional processo interventivo. 

Ensina o professor Pedro Lenza que “no federalismo brasileiro é reconhecida a existência de três ordens: União (ordem central), Estados (ordens regionais) e Municípios (ordens locais), razão pela qual é classificado como federalismo de 2º grau. ( Direito constitucional esquematizado. 18. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 469 - 472.)

A doutrina possui preciso entendimento acerca da autonomia, dentre eles, Clever Vasconcelos entende que existem dois pressupostos básicos da autonomia dos entes federativos, sendo que ela:

“busca arrimo em dois elementos básicos: na existência de órgãos governamentais próprios, isto é, que não dependam dos órgãos federais quanto à formação de seleção e investidura;  e na atribuição de competências exclusivas para esses governos”.

Observa-se, portanto, que a autonomia é caracterizada pela existência de várias esferas de governo, independentes do ente central, e que cada uma dessas esferas, as quais atuam mediante órgãos governamentais, possuem suas competências exclusivas.

Outra visão nos é dada por Raul Machado Horta, que define a autonomia como a capacidade de autodeterminação, inerente à entidade federativa, dentre as competências delimitadas pela Constituição, simbolizada por três capacidades: auto-organização, autogoverno e autoadministração.

2. Características da autonomia constitucional

Um ponto para o qual a doutrina se direciona é a divisão do conceito de autonomia ou divisão das suas características entre as mencionadas citadas anteriormente.

Raul Machado Horta também define resumidamente as três características da autonomia constitucional:

A auto-organização reúne a capacidade da unidade da federação para elaborar a Constituição própria, bem assim instituir os órgãos supremos do Governo local. O autogoverno retrata a capacidade da unidade da federação para escolher os agentes públicos que irão desempenhar as funções administrativa, legislativa e jurisdicional, no âmbito dos seus poderes. A autoadministração resulta na capacidade da unidade da federação para aplicar o Direito Positivo, como também prestar os serviços públicos que lhe sejam afetos, através de órgãos próprios.

Uadi Lammêgo Bulos também enxerga as 3 facetas da autonomia dos entes federativos citadas por Horta, e ainda acrescenta a capacidade de auto legislação, em suas palavras: 

“As entidades componentes da federação brasileira são as pessoas politicas de Direito Publico Interno, que integram a estrutura político-administrativa da República pátria, estando a autonomia dos entes federados dentro da própria soberania do Estado Federal, exteriorizando-se pelas capacidades de auto-organização (ter constituição ou lei orgânica própria), auto legislação (criar normas gerais e abstratas), autoadministração (prestar e manter serviços próprios) e autogoverno (gerir negócios).” (g. n.)

Importante observar que alguns doutrinadores, como o exemplo de Raul Machado Horta, retratam uma tríplice capacidade, entretanto não é como se ignorassem a auto legislação dos entes federativos, porém a consideram um pedaço da organização. Agora vejamos essas características da autonomia constitucional separadamente.

A auto-organização dos entes federativos se dá por diferentes meios em cada um deles. A União é estruturada diretamente pela Constituição Federal, em sua dupla atuação. Quando atua em nome da República Federativa do Brasil, ela é Pessoa Jurídica de Direito Internacional, e representa o país perante outros Estados e Organismos Internacionais. Já quando a União age em nome próprio, como governo federal do Estado brasileiro, representa um ente autônomo perante os Estados e Municípios, fazendo vez de pessoa jurídica de Direito Público Interno, conforme art. 41, inc. I, do Código Civil de 2002.

Os Estados-membros operam sua capacidade de auto-organização graças ao Poder Constituinte Derivado Decorrente, o qual os autoriza a editarem Constituições Estaduais, tendo sua autoridade nascida dentro da própria Constituição da Republica, no art. 25.

Já os municípios e o Distrito Federal não possuem uma Constituição própria, como a Federação ou os Estados-membros. Ambos possuem uma lei orgânica, conforme artigos 29 e 32 da Carta.

Esses últimos entes são obrigados a respeitar os preceitos da Constituição Federal, e, além disso, os Municípios também devem respeito à Constituição do Estado-membro de onde se localizarem.

Sobre a peculiaridade do Distrito Federal na estrutura do Estado brasileiro, importante o comentário de Alexandre de Moraes:

Dessa forma, não é Estado-membro, tampouco Município, tendo, porém, em regra, todas as competências legislativas e tributárias reservadas aos Estados e Municípios (CF, arts. 32 e 147), excetuando-se somente a regra prevista no art. 22, XVII, da Constituição Federal (“Compete privativamente à União legislar sobre XVII – organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios, bem como organização administrativa destes”).

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A capacidade de auto-organização é a capacidade de cada ente organizar seus Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Lembrando a exceção citada por Moraes sobre o Distrito Federal, e também o fato que o Município não possuí poder judiciário próprio, nada obstante alguns, com elogio, possuam órgão das atividades essenciais à justiça (advocacia pública).

A capacidade de auto legislação de cada ente federativo se dá no âmbito de seu poder legislativo. No caso da União sua principal marca é o bicameralismo, apesar de o exercício desse poder se dar pelo Congresso Nacional, esse se compõe de duas casas legislativas, quais sejam: Senado Federal e Câmara dos Deputados, sendo composto por representantes dos Estados-membros e do Distrito Federal e representantes do povo, respectivamente, como disposto nos arts. 44 a 46 do texto constitucional.

Já os outros entes federativos atuam sob a forma unicameral. O poder legislativo estadual é exercido pela Assembleia Legislativa; o poder legislativo municipal pela Câmara de Vereadores e o Distrito Federal pela Câmara Legislativa.

Quanto à extensão dessa capacidade, a Constituição da República tratou de dividir as competências legislativas, de forma a harmonizar a estrutura do Estado e a relação entre os entes.

A terceira capacidade retirada do conceito de autonomia constitucional é a autoadministração. Basicamente significa que os entes federativos possuem independência para praticar a autogestão, por meio da administração pública de cada esfera do governo.

O objetivo dessa fração da autonomia é permitir que os entes federativos possam ser capazes de cumprir com suas competências administrativas consagradas nas Constituição Federal, Constituição Estadual e Lei Orgânica, a depender da esfera do ente em questão, bem como, em todos os casos, respeito e aplicação do ordenamento jurídico.

Para tal fim, a administração pública pode atuar de duas formas: centralizada e descentralizada, tendo esses conceitos apresentados no Decreto-Lei nº 200/1967. A doutrina costuma classificar essas formas em Administração Direta e Indireta, na lição de Dirley da Cunha Júnior:

Direta ou Centralizada é aquela constituída a partir de um conjunto de órgãos públicos despersonalizados, através dos quais o Estado desempenha diretamente a atividade administrativa. Aqui é a própria pessoa politica (Estado) que realiza diretamente a atividade administrativa, servindo-se de seus órgãos públicos (que são centros ou círculos de competências, desprovidos de personalidade jurídica, criados por lei).

Indireta ou Descentralizada é constituída a partir de um conjunto de entidades dotadas de personalidade jurídica própria, responsáveis pelo exercício, em caráter especializado e descentralizado, de certa e determinada atividade administrativa, por outorga legal da entidade estatal. Consiste, pois, na criação de pessoas jurídicas, algumas de direito público, outras de direito privado, com personalidade jurídica própria, para exercerem parcela da competência administrativa do ente politico que a criou e com o qual não se confunde.

É claro que, a possibilidade de autoadministração de cada entidade não impede a criação de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, para proporcionar um melhor planejamento, organização e execução de políticas públicas de interesse comum para essas determinadas localidades, conforme a Lei Federal nº 13.089/2015.

Por fim, a capacidade de autogoverno é uma parcela da autonomia constitucional que caminha intimamente com a de autoadministração. Ela trata de resguardar o poder de cada ente de eleger seus próprios representantes em cada esfera de poder (legislativo e executivo).

Quanto aos representantes no Poder Judiciário, a Constituição Federal estabeleceu três formas primordiais de acesso aos seus cargos: a primeira mediante  concurso público de provas e títulos; a segunda pelo regra do quinto constitucional, como previsto no art. 94; e por fim via nomeação do Presidente da República, após sabatina realizada pelo Senado Federal, no caso dos membros dos tribunais superiores. 

Conforme pontua Renata Espíndola Virgílio, citando Eugenio Raúl Zaffaroni, “a afirmação da origem não democrática da magistratura é incontestável, se com isso quer-se dizer que os juízes não procedem de eleição popular. Porém, ‘uma instituição é democrática quando seja funcional para o sistema democrático, quer dizer, quando seja necessária para sua continuidade, como ocorre com o judiciário’. Em outras palavras, legitimidade democrática decorre, muitas vezes de forma fundamental, da função exercida por um órgão e não somente pela sua origem. O Judiciário, portanto, tem sua legitimidade conferida pela sua útil função de conferir estabilidade e continuidade à democracia.” 

Para encerrar o tema neste tópico, com uma nota sobre os Territórios Federais (não existem atualmente), os quais não são entes federativos, pois são fruto de uma descentralização administrativa territorial da União. Porém, se instituídos, podem possuir certa autonomia, conforme art. 33, § 3º, da Constituição.

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Sobre os autores
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.

Thiago Alessandro Tormena

Especialista em Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno Abdalla ; TORMENA, Thiago Alessandro. Autonomia constitucional dos entes federativos e a lógica da competência tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6970, 1 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82100. Acesso em: 18 dez. 2024.

Mais informações

O texto foi elaborado tendo em vista as complexas implicações que a forma de Estado adotada, no caso a Federal, traz para a divisão das competências tributárias, além de estabelecer algumas observações acerca de situações que são consideradas peculiares sob o ponto de vista doutrinário.

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