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Limitações ao Direito de Propriedade e suas nuances

Agenda 18/05/2020 às 22:10

Conforme elenca Celso Antônio Bandeira de Mello, "é necessário que o uso da liberdade e da propriedade esteja entrosado com a utilidade coletiva, de tal modo que não implique uma barreira capaz de obstar à realização dos objetivos públicos".

1) O poder de polícia 

É fato que, embora a Carta Magna e a legislação infraconstitucional estabeleçam direitos e garantias aos particulares, o seu exercício não é ilimitado e absoluto, haja vista que deve ser compatível com o bem-estar social. Nesse contexto, conforme enuncia Hely Lopes Meirelles, surge o Poder de Polícia, enquanto faculdade da Administração Pública, capaz de limitar o uso e gozo de bens, atividades ou direitos individuais em benefício da coletividade ou do próprio Estado, consoante o princípio da supremacia do interesse público. Tal interesse, portanto, diz respeito a vários setores da sociedade, tais como a segurança, saúde, moral, meio ambiente, patrimônio cultural, propriedade, dentre outros.  

A expressão “polícia” deriva do grego “politeia” que significa ‘todas a atividades da cidade-estado” (polis). No entanto, foi somente a partir da relação entre o conceito clássico e a concepção liberal do século XVIII, que o poder de polícia ganhou o seu contorno semântico mais recente. No entanto, convém salientar que, segundo Renato Alessi, não há limitações administrativas ao, por exemplo, direito de liberdade ou de propriedade, uma vez que estes são apenas expressões do próprio direito. Há, na verdade, limitações à própria liberdade e propriedade.

Outrossim, embora esteja fundamentado no princípio da supremacia geral do Estado, o poder de polícia trata-se de um mero ato administrativo sujeito a controle de legalidade pelo Poder Público, a fim de evitar que liberdades públicas sejam anuladas e direitos fundamentais dos indivíduos, aniquilados. Nesse aspecto, assim como todo ato administrativo, a medida de polícia deve respeitar os limites impostos pela lei, no tocante a sua competência, forma, fins, motivos e objeto, para tornar-se válida. Nota-se, portanto, que tal poder deve sempre estar em consonância com a expressão do “bem comum” de Miguel Reale, isto é, deve haver  uma composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos, a fim de evitar abusos ou excessos.

Assim, a atual Constituição Federal estabeleceu, de forma expressa, várias limitações às liberdades pessoais, tais como ao direito de propriedade (art. 5º, XXIII e XXIV), ao direito de reunião (art. 5º, XVI), à liberdade de comércio (arts. 170 e 173), dentre outras. Do mesmo modo, o art. 78 do Código Tributário define o poder de polícia enquanto “atividade da Administração Pública que, limita ou disciplina direito, interesse ou liberdade, e regula à prática de ato ou abstenção de fato, em razão do interesse público”.

No tocante a sua competência, aquele que dispõe da capacidade de exercer o poder de polícia é, em regra, a entidade reguladora de tal matéria. No entanto, há matérias que são de interesse de mais de uma esfera de poder, o que implica na difusão do poder de policiar entre as entidades interessadas, conforme os arts. 22 a 24 da CF.

Quanto as suas características, o poder de polícia reflete a discricionariedade da Administração Pública em decidir qual o modo, momento e instrumento mais eficaz diante das situações previstas em lei. Ao contrário disso, nos momentos em que a própria lei faz tais especificações, o poder de polícia será vinculado, cabendo a autoridade competente apenas exercê-lo de forma válida.

Somado a isso, o poder de policiar é também auto-executório, isto é, refere-se a liberdade que a Administração dispõe para decidir e executar diretamente suas decisões, sem depender de autorização prévia do Poder Judiciário. Por fim, é importante lembrar que tal ato administrativo é coercitivo uma vez que o seu descumprimento autoriza o uso da força física (manu militari), desde que proporcional à resistência do infrator.

Destarte, enquanto mecanismo essencialmente preventivo, o poder de polícia atua mediante normas que limitam e sancionam bens, atividades ou direitos que possam afetar a coletividade, a exemplo das autorizações e alvarás de licença. Por outro lado, esse mesmo poder está autorizado a atuar de forma repressiva mediante aplicação de sanções, que variam da imposição de multas até interdição de atividades, demolição de construções, dentre outras medidas. É importante lembrar que tais sanções não são aplicáveis aos crimes, uma vez que estes são matéria do Direito Penal.

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Sob esse viés, é perfeitamente cabível citar o cenário de pandemia do Covid-19 que, ao acarretar a crise no sistema de saúde pública, justifica a adoção de medidas urgentes e restritivas pela Administração Pública a fim de conter o avanço da contaminação, a qual coloca em risco o bem estar da coletividade. Dito isso, a lei 13.979/2020 fixou normas que restringem temporariamente a liberdade de locomoção, tais como isolamento social, quarentena, restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, dentre outras. Tais medidas, portanto, devem estar em consonância com a ponderação entre as liberdades individuais e a necessidade de proteção da saúde pública.

Infere-se, portanto, que as limitações ao exercício da liberdade e da propriedade devem ser efetuadas na esfera jurídica permitida pelo Direito, delineando a sua área de manifestação legítima. É por esse motivo que as limitações administrativas à propriedade não são indenizáveis, já que não há interferência onerosa a um direito, mas apenas a definição de suas fronteiras, ajustando-as aos interesses coletivos.

2) A desapropriação é um sacrifício de direito imposto ao desapropriado".

A princípio, o direito de propriedade conferia ao seu titular os poderes de usar, gozar e dispor da coisa de forma absoluta, exclusiva e perpétua. No entanto, com a edição do Código de Napoleão de 1804, esse cenário mudou. Ao conferir a legitimidade ao Estado de conferir algumas restrições à propriedade, tal direito ficou condicionado a supremacia do interesse público. Assim, tal direito real migrou do âmbito individual em direção ao social.

No cenário brasileiro, o direito de propriedade é conferido pela Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º, XXII, enquanto um direito individual que assegura uma série de poderes. Contudo, o inciso XXIII, deste mesmo artigo supracitado, condiciona o direito de propriedade à função social. Dito isso, embora seu conteúdo seja objeto do Direito Civil, é possível inferir que tal direito real está submetido ao regime jurídico do Poder Público, especialmente no âmbito do Poder de Polícia.

Com efeito, a intervenção estatal sobre o direito de propriedade está fundamentado em dois aspectos. O primeiro, refere-se ao fundamento político no que tange a proteção dos interesses coletivos contra atitudes individuais nocivas. Ao passo que o segundo, enquanto fundamento jurídico, refere-se as disposições previamente expressas na Constituição Federal e nas legislações infraconstitucionais, as quais também indicam quem possui a devida competência para intervir. 

Como uma das modalidades de intervenção do Estado na propriedade, é cabível citar a desapropriação que, sob o ponto de vista teórico, refere-se ao procedimento administrativo em que Poder Público, ou os seus delegados, compulsoriamente retira a propriedade de terceiro e transfere para si, ou para outras entidades, sob razões de utilidade e necessidade pública ou de interesse social, substituindo-a por justa e prévia indenização.

Trata-se, portanto, da hipótese mais gravosa de intervenção do Estado na propriedade uma vez que este retira, originariamente, o domínio de quem o detinha, torna insuscetível a reivindicação do proprietário e libera-se de quaisquer ônus anteriores. Dito isso, qualquer credor anterior do respectivo direito real ficará sub-rogado no valor da indenização. No entanto, é preciso lembrar que tal medida é de natureza excepcional, somente sendo admitida quando presentes todos os seus requisitos constitucionais.

Conforme prevê o art. 5º, XXIV da Constituição de 1988, a desapropriação depende da comprovação de dois pressupostos, sob pena de nulidade do ato. O primeiro, refere-se à utilidade pública, isto é, às situações em que o ente público necessita do uso direto do bem, seja para obra pública ou outra destinação cabível. Já a necessidade pública, enquanto segundo pressuposto, se verifica nas mesmas hipóteses anteriores, mas acrescidas de urgência. Há, ainda, um terceiro pressuposto que diz respeito ao interesse social, que visa mitigar desigualdades ao conferir uma destinação social do bem expropriado, a exemplo da utilização para reforma agrária.

Em regra, a desapropriação possui como objeto qualquer espécie de bem susceptível de valoração patrimonial, podendo ele ser móvel, imóvel, corpóreo ou incorpóreo. São insuscetíveis de desapropriação, portanto, a moeda correte e, especialmente, os direitos personalíssimos, dentre outros.

De maneira geral, o texto constitucional estabelece três hipóteses de desapropriações especiais. A primeira, prevista no art. 182, §4º, III CF, é conhecida como “desapropriação urbanística” cujo caráter sancionatório permite ser aplicada ao proprietário de solo urbano que não promove o devido aproveitamento de sua propriedade, conforme estabelece o plano diretor do respectivo município. A competência será do próprio município e, quanto a indenização, será justa, prévia e paga mediante títulos da dívida pública, respeitado o procedimento previsto em lei federal.

Já a segunda, prevista no art. 184 CF, trata-se da “desapropriação rural” que incide sobre imóveis rurais que não estão cumprindo sua função social e que serão destinados à reforma agrária, refletindo, portanto, em uma modalidade de desapropriação por interesse social. A competência para tal é exclusiva da União, e a indenização prévia será feita em títulos da dívida agrária, nos moldes definidos em lei.

Por fim, a terceira modalidade, tratada no art. 243 CF, é conhecida como “desapropriação confiscatória”, uma vez que não assegura o direito a indenização. Trata-se, portanto, da medida mais severa dentre todas, haja vista que as propriedades expropriadas eram destinadas a fins ilícitos, tais como cultura ilegal de plantas psicotrópicas e exploração de trabalho escravo.

Embora a desapropriação seja de natureza coercitiva e sancionatória, ela pode ter seus efeitos mitigados ou, até mesmo, anulados. O art. 12 do Decreto Federal nº 4.956/1903 conferiu, por sua vez, ao proprietário o direito de exigir que seja incluída na desapropriação a parte restante do bem expropriado. Ora, tal manifestação reflete o exercício do direito de extensão capaz de minimizar os impactos causadas por tal procedimento administrativo. O silêncio do proprietário, por sua vez, implicará na renúncia de tal direito.

Nesse mesmo contexto, o apossamento do imóvel pelo Poder Público de forma abusiva e irregular será equiparado ao esbulho e caberá, assim, ação possessória pelo proprietário de forma imediata. Caso contrário, se não for feita no devido prazo legal, o titular perderá o direito de reivindicar o respectivo bem. Ademais, de forma geral, se a expropriação se revelar lesiva ao patrimônio público, é cabível para qualquer cidadão a promoção da sua anulação mediante ação popular, com a devida responsabilização civil dos infratores (arts.1º,2º e 6º da Lei 4.717/65).

Destarte, embora a desapropriação esteja fundamentada no princípio da supremacia do interesse público capaz de impor medidas severas ao desapropriado, tal instrumento administrativo encontra limitações que se vinculam ao objeto, forma, competência e fins do bem expropriado.

REFERÊNCIAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4ª ed. Salvador-Bahia: Editora Juspodivm, 2017.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

REZENDE, Rafael Carvalho Rezende. Direito Administrativo e coronavírus. Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/321892/direito-administrativo-e-coronavirus. Acesso em 22 de mar. de 2020.

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