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Abuso de Autoridade - Lei nº 13.869/19 e suas hipóteses de aplicabilidade

DIREITO PENAL - DIREITO PROCESSUAL PENAL - LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL

Agenda 27/05/2020 às 12:43

Este artigo tem por finalidade analisar alguns aspectos acerca da nova lei de abuso de autoridade, dentre eles: contexto histórico, objeto jurídico, elementos finalísticos, sujeito ativo e sujeito passivo, ação penal e efeitos da condenação.

1. ASPECTOS GERAIS.

1.1. INTRODUÇÃO

CONTEXTO HISTÓRICO: No dia 05 de setembro de 2019 foi publicada a Lei nº 13.869/19, que, com o prazo de vacância de 120 dias, entrou em vigor em 03/01/2020, dispondo sobre os crimes de abuso de autoridade, revogando expressamente a Lei nº 4.898/65, que regia a matéria, além de alterar diversos dispositivos de outras leis em vigor.

Segundo a doutrina majoritária, a Lei nº 4.898/65 carecia de atualização. Todavia, a Lei nº 13.869/19 não foi tão bem recepcionada por boa parte da comunidade jurídica, tendo em vista que sua tramitação e posterior publicação se deu em meio a escândalos de corrupção por parte de membros do Poder Público, notadamente, no âmbito da denominada "operação lava-jato", circunstância que, no entendimento de muitos, pode refletir como um instrumento de contenção às investigações envolvendo "crimes de colarinho branco" do que puramente uma atualização necessária da legislação até então em vigor.

Outra crítica doutrinária sobre a antiga Lei nº 4.898/65 era a de que o legislador, ao tipificar os crimes de forma vaga, com conteúdo indeterminado, buscou abarcar diversas formas de abuso de autoridade, e, como consequência disso, violava o Princípio da Taxatividade. Esse cenário, porém, não foi alterado com a novel Lei nº 13.869/19, visto que também se utilizou da mesma técnica legislativa em muitos de seus tipos penais. Não por outra razão, diversos dispositivos da nova lei foram vetados pelo Presidente da República e, posteriormente, alguns destes vetos foram rejeitados pelo Congresso Nacional.

FINALIDADE DA LEI:  O Estado e seus agentes gozam de algumas prerrogativas que não são extensíveis aos particulares, como, por exemplo, a presunção de legitimidade de seus atos, isto é, a princípio, seus atos são considerados praticados conforme a lei. Entretanto, não raro, agentes estatais extrapolam os limites da lei em suas condutas, configurando-se verdadeiro abuso de autoridade legitimamente a eles conferida. 

Surge, diante disso, a necessidade de mecanismos de contenção e instrumentos que viabilizem a punição de atos praticados por agentes estatais em inobservância à lei. As normas destinadas à punição de agentes estatais que abusam de sua autoridade são encontradas em diversas esferas, tais como: administrativa, cíveis e penais, a exemplo dos crimes tipificados no Código Penal, especialmente os cometidos contra a Administração Pública, que, ainda que indiretamente, busca punir o abuso praticado por agentes de públicos. 

Nas palavras de Rodrigo Greco Filho e Rogério Sanches Cunha, a Lei de Abuso de Autoridade nº 13.869/19 tem o objetivo de: modernizar a prevenção e repressão aos comportamentos abusivos de poder no trato dos direitos fundamentais do cidadão, colocando em mira a conduta de autoridades e agentes públicos.¹

[1] GRECO, Rogério. CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de Autoridade Lei n° 13.869/2019 comentada artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 12.

2. OBJETO JURÍDICO: Tutela-se, por meio dos tipos penais elencados no Lei nº 13.869/2019, o regular funcionamento da administração pública.

3. ELEMENTO SUBJETIVO: Conforme se depreende da leitura do art. 1º, § 1º, para a caracterização do crime de abuso de autoridade e a consequente aplicação da Lei em análise, são necessários os seguintes elementos finalísticos: 

a) PREJUDICAR OUTRÉM; 

b) BENEFICIAR A SI MESMO OU TERCEIÇO;

c) AGIR POR MERO CAPRICHO OU SATISFAÇÃO PESSOAL. 

Vale ressaltar que as hipóteses de aplicabilidade acima são alternativas, e não cumulativas. 

Além disso, as condutas devem ser praticadas por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. 

O § 2º do artigo 1º, porém, prevê uma causa de excludente de ilicitude, isto pois, dispõe que: “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.” Todavia, há entendimento doutrinário no sentido de que o referido dispositivo possui natureza jurídica de excludente do próprio dolo, razão pela qual o agente que atua na forma ali descrita pratica fato atípico, vez que o dolo, elemento subjetivo do tipo, integra a conduta, conforme Teoria Finalista da Ação, teoria adotada pelo Estatuto Repressivo Penal Brasileiro (Rogério Sanches Cunha e Rogério Greco Filho).

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Por fim, verifica-se que não há previsão de crime culposo de abuso de autoridade, uma vez que todos os crimes previstos na Lei 13.869/2019 são dolosos, exigindo-se, ainda, para sua configuração um dos elementos subjetivos especiais acima expostos.

 

4. SUJEITOS: 

a) ATIVO: nos termos do art. 2º da Lei, é sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a (rol exemplificativo):

I - servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;

II - membros do Poder Legislativo;

III - membros do Poder Executivo;

IV - membros do Poder Judiciário;

V - membros do Ministério Público;

VI - membros dos tribunais ou conselhos de contas.

Parágrafo único.  Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.

Percebam, portanto, que são crimes próprios quanto ao sujeito ativo, no caso, somente o agente público.

b) PASSIVO: Primeiramente, a pessoa física ou jurídica diretamente atingida ou prejudicada pela conduta abusiva (sujeito passivo principal ou imediato) e, secundariamente, o Estado/Administração Pública, que tem sua imagem, credibilidade e até mesmo seus patrimônios lesados pela conduta abusiva de um de seus agentes (sujeito passivo secundário ou mediato). É a chamada “dupla subjetividade passiva” pela doutrina.

Embora sejam crimes próprios, os delitos tipificados na Lei nº 13.869/2019 admitem coautoria e participação. Isso, pois, a qualidade de agente público, por ser elementar do tipo, comunica-se aos demais agentes, consoante determina a redação do artigo 30 do Estatuto Repressivo Brasileiro, desde que essa condição pessoal do autor seja de conhecimento do coautor e/ou partícipe.

5. AÇÃO PENAL: Conforme expressamente previsto pela Lei, os crimes nela previstos são de ação pública incondicionada – art. 3º. Admite-se, porém, ação privada se a ação penal pública não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal – art. 3º,   § 1º.  A ação privada subsidiária será exercida no prazo de 6 (seis) meses, contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia – art. 3º, § 2º

6. EFEITOS DA CONDENAÇÃO: Nos termos do artigo 4º da Lei, são efeitos da condenação:

I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos;

II - a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos;

III - a perda do cargo, do mandato ou da função pública.

É importante destacar que antes, a antiga Lei 4.898/65, estabelecia a inabilitação para o exercício do cargo, mandato ou função pública, pelo prazo de até 03 (três) anos. Trata-se, portanto, neste caso, de novatio legis in pejus.

Por fim, conforme determina o parágrafo único do referido artigo, os efeitos previstos nos incisos II e III do caput são condicionados à ocorrência de reincidência em crime de abuso de autoridade (reincidência específico) e não são automáticos, devendo ser declarados motivadamente na sentença.

7. penas RESTITIVAS DE DIREITOS – art. 6º: A Lei prevê que duas são as penas restritivas de direitos substituíveis por privativa de liberdade, que podem ser aplicadas autônoma ou cumulativamente, quais sejam:

I - prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas;

II - suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis) meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens;

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Conforme visto, a nova Lei de Abuso de Autoridade nº 13.869/19, cuja publicação se deu em meio a escândalos de corrupção, a princípio, soou como propósito de obstar ações desenvolvidas no âmbito da “operação lava-jato”, de modo que a atualização necessária quanto à matéria representasse um interesse secundário do legislador. Ademais, verifica-se, que nova lei sobre o tema tornou a repetir o erro da anterior, qual seja: a de tipificar condutas de forma vaga, com conteúdo indeterminado, permitindo a subsunção do fato ao tipo de forma ampla e genérica pelo aplicador do Direito Penal, o que pode acarretar em insegurança jurídica. Os crimes previstos na lei são próprios quanto ao sujeito ativo, uma vez que o agente público, e somente ele, pode praticar as condutas nela descritas. Vale lembrar que para que incida em abuso de autoridade, é necessário restar comprovado o elemento subjetivo do agente público, isto é, a finalidade que deriva do ato, que deve ser praticado com o objeto de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou terceiro, ou que tenha agido por mero capricho ou satisfação pessoal. Quanto ao sujeito passivo, tem-se a chamada dupla subjetividade passiva, pela qual o a tanto a particular que sofre o abuso de autoridade, quanto a Administração pública, que tem a sua imagem e credibilidade lesadas pela conduta abusiva de seus agentes, são sujeitos passivos dos crimes de abuso de autoridade.

A ação penal é pública incondicionada, permitindo a lei, a ação privada subsidiária, no prazo de 06 meses da data em que esgotado o prazo para oferecimento da denúncia.

É possível que o juiz, na sentença condenatória, fixe valor mínimo de indenização ao ofendido, desde que assim o tenha requerido. É a chamada Justiça Restaurativa. A inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública pelo agente público infrator passou a ser de 1(um) a 5(cinco) anos, mais gravosa, portanto, que a lei anterior, que previa a inabilitação por até 03(anos), sendo possível, ainda, incidir como efeito da condenação, a perda do cargo, mandato ou função público, a depender da gravidade da conduta e do dano dela decorrente, desde que haja reincidência específica em qualquer das hipóteses. Esses efeitos não são automáticos, e devem ser declarados de forma motivada na sentença penal condenatória.

Por fim, as penas restritivas de direitos, que poderão ser aplicadas autônomo ou cumulativamente, submetem o condenado por crime de abuso de autoridade à prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e/ou a suspensão do exercício do cargo, função ou do mandato pelo prazo de 1(um) a 6(seis) meses, com perda dos vencimentos e demais vantagens.

REFERÊNCIAS.

GRECO, Rogério. CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de Autoridade Lei n° 13.869/2019 comentada artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 12.

Sobre o autor
César Augusto Bueno Bezerra

Advogado afeiçoado pelas ciências jurídicas, em especial a criminal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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