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Direito e democracia participativa

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Agenda 24/04/2006 às 00:00

III — Das democracias direta e indireta

Resta então saber como uma forma de governo democrática boa ou má — ou, no caso da má, oclocrática, na terminologia de Políbio — pode ser melhorada a ponto de ser considerada invariavelmente boa. A solução para tal problema será concernente à elaboração de respostas às duas perguntas centrais apresentadas neste artigo: "quem governa?" e "como governa?". Neste ponto, note-se que a tese que se pretende apresentar aqui é a de que a última das perguntas é a mais importante e, para que se torne mais palpável, advoga-se que a mesma pode ser rescrita na seguinte forma: "para quem governa?".

Nesses termos, vê-se que dois são os quesitos principais a serem analisados: "quem governa?" e "para quem governa?", de sorte que, em primeira análise, diz-se que, para que se tenha um governo democrático, à primeira pergunta, deve-se responder que todos governam e à segunda, que é para todos que se governa. Há de se ver agora como os conceitos ditos clássicos, embora, com pequenas modificações, tenham-se mantidos operantes na contemporaneidade, podem servir para análise da democracia na atualidade. Assim senso, veja-se que o que se quis aqui dizer foi que, na atualidade, o conceito de democracia modifica-se na proporção em que se diz que se deve responder da maneira que se mostrou às perguntas "quem governa?" e "para quem governa?".

Há, de um lado, os que defendem a idéia de que não se obteve um regime adequadamente democrático ainda porque não se efetivou de forma satisfatória o povo como titular do governo, ou seja, não se respondeu à pergunta "quem governa?" com a resposta "todos governam". Os que defendem tal postura ainda dizem que ao se favorecer a idéia de que todos devem governar, ter-se-á por conseqüência natural uma resposta positiva à segunda pergunta, qual seja, "para quem governa?".

Ora, como argumentam, caso seja efetivado uma forma de governo em que haja uma participação crescente e ampla de todos, esses, mesmo que queira imbuir as suas decisões de caracteres egoístas, terão em tais decisões uma conseqüência favorável à sociedade, pois se todos governam, mesmo que governem para si, governarão para todos. Obviamente, não se quer dizer que a questão é de tal simplicidade, mas, com efeito, afirma-se que muito da dificuldade em um sistema de governo amplo, direto, dirá respeito aos mecanismos por meio dos quais se evitará que a vontade de todos seja, de uma forma ou de outra, considerada nas decisões governamentais. O problema nevrálgico em tal posicionamento, como se pode notar, é metodológico, ou seja, é o de se elaborar, repete-se, um método de efetivação do que o sistema de democracia direta apregoa.

Do outro lado, há os que defendem a idéia de que não é necessário se dar maior atenção à pergunta "quem governa?" para que se tenha um governo democrático, mas sim, deve-se valorizar a pergunta "para quem governa?" como meio identificador de uma forma de governo condizente com a democracia. Neste último caso, é fato, defende-se o que na Antigüidade, em sentido estrito, não seria entendido como democracia, mas sim como uma versão aristocrata dessa. Seria, portanto, um governo para todos, mas de poucos, em que esses poucos seriam eleitos e representariam, assim, todos.

Note-se que é essencial, nesta corrente, que os poucos que governem representem todos, pois em caso contrário não haverá o próprio aspecto democrático, mas sim o oligárquico ou, na melhor das hipóteses, uma versão do aristocrático. Em outras palavras, diz-se que um dos maiores obstáculos com que se deparam os que defendem formas indiretas de democracia concerne à manutenção do argumento de que uma forma indireta de representação é representativa de um sistema democrático. Para que se possa lidar melhor com tal quesito, mister se faz que se analisem mais detalhadamente alguns fundamentos da democracia indireta ou mesmo, como chamariam alguns, do elitismo democrático.

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III.1 — A democracia indireta

Com o intuito de se defender a democracia indireta, deve-se antes de mais nada argumentar que o conceito de governo democrático seria razoavelmente satisfeito se esse fosse um governo de cujas ações se diria que eram para o povo e não para a minoria dos governantes. É fato que a democracia indireta não advoga a idéia de uma estrutura governamental não representativa de todos, ou seja, uma estrutura nomeada independentemente de consulta popular.

À primeira vista, a despeito desse caráter representativo, pode-se acusar os defensores da democracia indireta de compactuarem com as assunções básicas do elitismo democrático, que são todas, em resumo, oriundas da idéia de que o povo — ou seja, na nomenclatura um tanto conservadora, as massas — é inerentemente incompetente e desprovido da capacidade de autogestão direta (Bachrach, 1967, p.2). Por outro lado, há os que em defesa da democracia indireta dizem que o caráter representativo nada tem a ver com a assunção da impotência popular, mas é apenas conseqüência da idéia de que a democracia direta, mais legítima, é inexeqüível em termos práticos.

Neste ponto, há duas alternativas. De um lado, encontram-se os defensores da democracia indireta que advogam a incompetência popular para a autogestão e estes apresentam posturas definitivamente inconciliáveis com as da democracia direta. Do outro, há os defensores da democracia indireta que apenas defendem tal posição por desacreditarem na efetivação em termos práticos da democracia direta, embora com ela tenham afinidades ideológicas, ou, como chamariam, utópicas.

Dos da segunda estirpe, ou seja, dos que compactuam com as idéias materiais da democracia direta, embora não acreditem em sua formulação prática, não há do que se falar mais, pois a própria defesa de um sistema de democracia direta de razoabilidade prática indiscutível os trará de forma necessária ao conjunto dos que defendem a democracia direta, inclusive em termos práticos, dado que serão convencidos.

Dos outros, contudo, urge tecer algumas considerações, pois na há com abarcá-los na discussão que se travará posteriormente sobre democracia direta, pois eles têm como pressuposto, com já se disse algumas vezes, a idéia de que o povo não pode se gerir o seu próprio futuro. Sendo assim, importante se faz que se trate desses, que serão denominados sob a escola do elitismo democrático.

III.1.1 — O elitismo democrático

Não se pretende aqui, como se poderia pensar, criticar de maneira desarrazoada os defensores do elitismo democrático. Pelo contrário, acredita-se que são pessoas que têm argumentos em certa medida defensáveis e que, por isso, merecem ser tais argumentos apreciados. Um primeiro ponto a se analisar é a identificação de como um sistema de elitismo democrático se diferenciaria, de um lado, da democracia indireta e, do outro, de um regime puramente elitista, aristocrata.

A resposta à primeira inquirição já foi dada anteriormente: o elitismo democrático difere da democracia indireta na medida que esta não advoga a incompetência das massas, enquanto aquele assim o faz. No que diz respeito à segunda inquirição, diz-se que o elitismo democrático diferencia-se de um regime puramente elitista na medida em que o primeiro pressupõe a possibilidade de ascensão ao governo de qualquer cidadão, dada a satisfação de pré-requisitos qualitativos específicos, como formação, aptidão intelectual, entre outros, enquanto o segundo delimita a linha de ascensão ao poder governamental por mecanismos que não compreendem a totalidade da população, como, por exemplo, o da linhagem hereditária, que até há relativamente pouco tempo, registre-se, era usado para escolher membros da Casa dos Lordes, câmara mais alta do parlamento inglês.

Voltando-se ao elitismo democrático, diz-se que a sua definição, de fato, não resolve a crítica de que tal forma de governo não poderia ser considerada democrática. Ora, mesmo que os poucos que governassem não fossem representativos da população, mas para ela voltasse todos os seus atos, ainda haveria os que diriam que não existe democracia em sistemas de tal estirpe. Dada a inexistência da representatividade, a qual resolve o caráter democrático da democracia indireta, o elitismo democrático encontra-se em dificuldades veementes de atrelar os conceitos "governo de poucos" e "governo para todos".

Nesses termos, afirma-se que a dificuldade de se definir a idéia de democracia do elitismo democrático reside no argumento de que não se consegue atrelar necessariamente a definição "governo para o povo" à de "governo do povo", fazendo com que ambas, em certa medida, equivalham-se e, conseqüentemente, possa-se satisfatoriamente dar ao conceito de elitismo democrático, pelo viés do conceito "governo para o povo", a definição original de governo do povo.

Deve-se entender aqui que, de uma perspectiva mais crítica, a suposta distinção entre um governo para o povo e um governo de poucos, que em primeira e superficial análise representariam, respectivamente, os conceitos de democracia e elitismo, não esgota o que seria, de um lado, algo democrático e, do outro, antidemocrático. Note-se que muitas são as características ditas essencialmente democráticas, quais sejam, as que concernem ao exercício governamental para o povo, que se fazem presentes em teorias elitistas — tidas, por muitos, como antidemocráticas —, pois,

em uma perspectiva teórica, democracia e elitismo não podem ser distinguíveis pela caracterização da primeira como "governo para o povo" e do segundo como "regra em favor dos interesses egoístas dos governantes". Os guardiões de Platão, os tecnocratas de Veblen e os intelectuais de Mannheim — para citar poucos modelos elitistas — foram todos tidos como possuidores da habilidade de transcender o interesse próprio no ato de governar em prol do bem-estar da comunidade (Bachrach, 1967, p. 2, T. do A.).

Em função da apresentação desses contra-exemplos, conclui-se que há situações em que o governo é ao mesmo tempo de poucos e para o povo, o que inviabiliza a idéia de associar necessariamente os conceitos "governo do povo" e "governo para o povo", embora ambos, por contingência, possam vir associados em alguns governos.

Tem-se aqui, portanto, a idéia de que é possível um governo para o povo que não seja um governo do povo. O problema, contudo, consiste em se garantir que um governo de poucos seja um governo para o povo. Essa garantia é em grande medida solucionada pela democracia participativa, em que se desenvolvem mecanismos de associar o povo à fiscalização do governo, quando não à possibilidade de oferecer sugestões quanto às próprias diretrizes do referido governo. É o caso, repete-se, da democracia participativa, que é espécie da direta.

III.2 — A democracia direta

Deve-se notar que os que acreditam que o melhoramento da democracia reside no aprimoramento da resposta à pergunta "quem governa?" são defensores da democracia direta, enquanto os que advogam em defesa da democracia indireta são os que acreditam que se deve aprimorar a resposta à pergunta "para quem governa?" como forma de melhorar a democracia. Aqui, compete registrar que "a democracia direta e a democracia indireta [...] [são] perfeitamente distinguíveis, tanto do ponto de vista instrumental quanto axiológico" (Bonavides, 1996, 17). Ao se diferenciarem as duas formas referidas de democracia, cabe, primeiramente, indicar qual das duas é a melhor e, depois, tratar das subdivisões que tal tipo de democracia pode comportar.

Dessa maneira, embora logo depois se apresentem motivos para a assertiva que aqui se fará, diz-se que se defenderá a democracia direta, pois a ela, entende-se, compete a maior possibilidade de abarcar os tão almejados princípios da justiça e da liberdade. A razão para tal diz respeito ao fato de que a democracia indireta "é menos legítima, mais sujeita a vicissitudes distorcivas, menos refratária aos meios e vícios de ludíbrios do que a democracia direta" (Bonavides, 1996, 17).

Genro (2002) ainda identifica que, a despeito do aumento numérico dos sistemas democráticos de base representativa, os problemas sociais mais veementes não parecem ter regredido, pois "[p]obreza e liberdades políticas podem ser compatibilizadas pelo controle social fundada em aceitações culturais e na manipulação de informações. Ou mesmo no recurso à força legalmente exercida em momentos especiais de instabilidade" (Genro, 2002, p. 14). Resta saber, portanto, se é possível construir um sistema de democracia direta que possa solucionar as questões com as quais se diz que a democracia indireta é impotente para lidar. Para que se possa oferecer um enfoque a um sistema de democracia direta, eleger-se-á a democracia participativa como um possível canal de realização da justiça social.

Com efeito, entre as subdivisões do termo "democracia" que pretendem estabelecer relações firmes entre os conceitos "democracia" e "governo de todos", destaca-se a que se apresenta sob a denominação de democracia participativa. No entanto, mesmo concernindo apenas à democracia participativa, pode-se dizer que "[r]aramente, em Ciência Política, um conceito terá assumido tanta elasticidade e multiplicidade de sentidos" (Lyra, 2000b, p. 17), pois, apesar do esforço empreendido em impor limites ao conceito subjacente ao termo "democracia participativa", os teóricos experimentam dificuldades em apresentar argumentos claros e objetivos de como pretendem operacionalizar tal locução vocabular no mundo prático, isto é, na realidade factual, que é simultaneamente política, psicológica, social, jurídica, etc. Tais dificuldades, em outras e mais superficiais palavras, e, grande medida tomam forma na questão da representatividade.

III.3 — A questão da representatividade

A questão da representatividade, apesar de sua simplicidade, parece ser devastadora: pode-se dizer que qualquer governo, por questões práticas, tem imensurável dificuldade em compreender em si todo o povo, mas apenas uns poucos que representem a totalidade. De um lado, como o faz o conceito de democracia participativa, pode-se dizer que a representatividade é um problema inerente ao "governo de todos" e, conseqüentemente, à democracia, de sorte que a questão da representatividade deve ser investigada até o esgotamento e, portanto, deve-se encontrar meios de execução de políticas de implementação de maior representatividade popular no seu governo. Pode-se dizer que muitas saídas têm sido encontradas pela democracia participativa para a dificuldade imposta pela representatividade: criação de conselhos estaduais e municipais, de ouvidorias, do chamado orçamento participativo, etc.

De outro lado, pode-se dizer que a discussão sobre qual seria o melhor caminho de se obter representatividade representa uma abordagem inócua no que diz respeito à contribuição à teoria da democracia, pois, por mais que se elabore um sistema de representação popular, ele, na melhor das hipóteses, sempre será representativo da maioria e nunca da totalidade. A única maneira de se obter uma representatividade direta seria através do uso constante de plebiscito ou do referendum — este, pelo fato de abarcar ato governamental anterior à consulta popular, com algumas ressalvas —, mas tais mecanismos, como a tal conclusão se pode facilmente chegar, são inexeqüíveis no encaminhamento da administração pública, pois demandam muito tempo e dinheiro para suas realizações, entre outros motivos. Dada, portanto, a impossibilidade de se obter uma representatividade satisfatória à versão democrática da pergunta "quem governa?", há os que defendem que resta à democracia se deter no quesito "para quem governa?" como forma de legitimação do regime democrático.

Em outras palavras, vê-se que há duas saídas ao impasse gerado para a democracia pela questão da representatividade: ou, de um lado, leva-se ao esgotamento a questão da democracia para a análise de como se poderia na prática efetivar um governo de todos e, conseqüentemente, um governo supostamente democrático, ou, de outro, muda-se radicalmente o foco e investiga-se se o conceito de democracia, já que não pode ser diretamente abordado através da idéia de governo de todos, poderia sê-lo na idéia de governo para todos. Em outras palavras, investiga-se se o conceito "governo para todos" representaria o conceito "governo de todos" e, por conseqüência, legitimaria a democracia. É o que se verá no estudo sobre a democracia participativa.

Sobre o autor
Tassos Lycurgo

advogado em Natal (RN), professor adjunto da UFRN, pós-doutor pela UFPB, doutor pela UFRN, mestre em Filosofia Analítica pela Sussex University, bacharel em Direito pela URCA e em Filosofia pela UFRN, professor de Sistema Constitucional Brasileiro, Direito Autoral e Estética Filosófica da UFRN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LYCURGO, Tassos. Direito e democracia participativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1027, 24 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8266. Acesso em: 23 dez. 2024.

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