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Medida provisória: uma revisitação de seus pressupostos, da previsão constitucional e da jurisprudência do STF

Agenda 31/05/2020 às 01:12

O presente artigo, estimulado pelas inúmeras Medidas Provisórias editadas nos últimos tempos, propõe uma revisitação aos principais pontos do instituto para servir como uma consulta rápida aos operadores do Direito.

1. Introdução

O presente estudo tem a despretensiosa missão de analisar o regramento e a conformação jurídica que a nossa ordem empresta à espécie normativa em questão. Ganha relevância a retomada, em razão das sucessivas medidas tomadas pelo Poder Executivo Federal em tempos de pandemia do COVID – 19. Não se analisará, nesta oportunidade, o conteúdo normativo dos atos, remetendo a tarefa a um futuro artigo.


2. Em que terreno estamos pisando?

A melhor compreensão de qualquer tema que se objetive estudar pressupõe a adequada alocação contextual do ponto dentro das grandes áreas, permitindo alcançar sua razão de existir, limites e a própria lógica inerente ao instituto. Nesse sentido, a Medida Provisória é uma ato normativo com característica bastante peculiar por não emanar do Poder Legislativo. Retomaremos de forma bastante breve a noção de separação dos poderes e funções atípicas, para, em seguida, adentrarmos nas Medidas Provisórias propriamente ditas.

2.1. A noção da Separação dos Poderes

Prevista como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, II, CF/1988) a separação dos poderes é uma ideia comumente relacionada ao Iluminismo, um movimento intelectual ocorrido no século XVIII relacionado à razão, em contraposição ao período antecessor. No campo da política, a antítese iluminista trazia oposição ao antigo regime, marcado por governos absolutistas fundamentados em escolha divina. A expressão the king can do no wrong expressa a irresponsabilidade do soberano por seus atos, que marca o período. As ideias iluministas buscam a liberdade do cidadão frente ao Estado, clamando pela mínima intervenção na esfera privada. Uma das ferramentas destinadas à contenção do poder absoluto é justamente a chamada “teoria da separação dos poderes”.

Apesar de não se tratar de seu real idealizador, é atribuído ao Barão de Montesquieu o fato de ter disseminado a teoria da Separação dos Poderes. Partindo do pressuposto que aquele que detém o poder tende a dele abusar, previram os teóricos que o poder somente poderia ser limitado pelo próprio poder.

Hodiernamente diz-se uno o Poder Soberano do Estado. A separação, verdadeiramente, é de funções. A função legislativa é o “poder” de inovar o ordenamento jurídico, com a inserção de normas genéricas, abstratas e impessoais. A função judicial tradicionalmente é entendida como o poder de o Estado decidir concretamente os casos levados à sua apreciação. Por fim, a função administrativa é entendida como o dever estatal de aplicar de ofício as escolhas já realizadas pelo Legislativo, concretizando as políticas públicas.

Identificadas as funções, a limitação do Poder, pela teoria difundida por Montesquieu somente seria possível pela atribuição a diferentes órgãos estatais. No Brasil, os órgãos são os “Poderes”.

O artigo 2º da Constituição Federal de 1988 identifica como Poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A previsão de independência e harmonia não leva caráter absoluto. Assim, a divisão da função de cada órgão, apesar de o sê-lo em termos de preponderância, não é exclusiva. Cada Poder, ao lado de sua função típica correspondente à nomenclatura do próprio órgão, concentra parcelas de manifestações das funções dos outros órgãos. São as funções atipicamente previstas, sempre, por meio da Carta Constitucional.

O Poder Executivo concentra, tipicamente, os deveres atribuídos pela função administrativa. Ao lado do dever de executar políticas públicas e prestar serviços públicos (funções típicas) a Constituição Federal trouxe a modalidade normativa da Medida Provisória (art. 59, V), prevendo a possibilidade de o Presidente da República adotar medidas com força de lei. Função típica do Poder Legislativo, conferido ao Executivo. Situado o tema, enfrentemos a sua disposição normativa.


3. A previsão da Medida Provisória na Constituição Federal de 1988.

A Constituição Federal de 1988 traz o regramento das Medidas Provisórias no art. 62. É lugar-comum a afirmação de se tratar a espécie normativa influência da Constituição italiana de 1947 que permitia os “provvedimenti provvisori com forza di legge” justamente em casos extraordinários de necessidade e urgência.

É conhecida e procedente a crítica de diversos constitucionalistas, dentre eles, do ex-presidente da República, Michel Temer que, trazendo diferenças no sistema de governo de ambos os países, dá-nos a recorrente sensação de um instituto acriticamente importado e trazido para uma realidade diversa e incompatível. Nascido em habitat diverso, a adaptação em terrenos hostis demandou alterações em seu código genético.

Com efeito, entre os sistemas presidencialista e parlamentarista encontram-se diferenças substanciais – talvez abismais. Em que pese a necessidade de harmonia com a casa parlamentar no primeiro, o liame entre os dois Poderes no segundo é de tal grandeza que eventual crise é suficiente à derrubada do chefe de governo. Nessa linha, a mera rejeição da Medida Provisória pelo Parlamento teria força suficiente à derrubada do primeiro ministro na Itália, por responsabilidade política.

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Daí a afirmação dos estudiosos pela melhor adequação das medidas provisórias ao sistema de governo parlamentarista. A inexistência de responsabilidade política no presidencialismo é um convite ao uso desmedido do instrumento excepcional.

Superada esta breve retomada de suas origens, não podemos deixar de lembrar da crítica feita por José Afonso da Silva, ao questionar a própria inserção das Medidas Provisórias no art. 59. do texto constitucional. Em suas palavras:

“... as medidas provisórias não constavam da enumeração do art. 59. como objeto do processo legislativo, e não tinham mesmo que constar, porque sua formação não se dá por processo legislativo. São simplesmente editadas pelo Presidente da República. A redação final da Constituição não as trazia nessa enumeração. Um gênio qualquer, de mau gosto, ignorante e abusado, introduziu-as aí, indevidamente, entre a aprovação do texto final (portanto depois do dia 22.9.88) e a promulgação-publicação da Constituição no dia 5.10.88”.

Passemos à análise da conformação dada às medidas provisórias na Constituição, após a edição da Emenda Constitucional nº 32/2001.

O caput do art. 62. da Constituição Federal já traz grande parte de seu contorno. Em primeiro lugar traz o Presidente da República como legitimado exclusivo da sua edição. Segundo lugar, traz os requisitos da relevância e da urgência. A força de lei é um terceiro elemento a retirar do texto. Por fim, a necessidade de imediata submissão ao Congresso Nacional.

A competência exclusiva do Presidente da República deve ser lida com certo cuidado. Isso porque, nos termos do decidido na ADI nº 2.391, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, Governadores dos Estados e do Distrito Federal podem editar Medidas Provisórias, desde que haja previsão na Constituição local e sejam obedecidas as condições formais e materiais estabelecidas na Constituição Federal.

Os requisitos constitucionais da relevância e urgência são expostos como conceitos jurídicos indeterminados, havendo alta margem de discricionariedade para seu preenchimento. A sindicância pelo Poder Judiciário somente é permitida em caráter excepcional, conforme ADI nº 4.029, de Relatoria do Ministro Luiz Fux.

Ao contrário da restrição da atuação do Poder Judiciário, o § 5º determina juízo prévio acerca do atendimento dos requisitos constitucionais, antes de adentrarem ao mérito das medidas provisórias, por ambas as casas do Congresso Nacional. A previsão expressa é digna de aplausos servindo, ainda que teoricamente, a um controle do exercício normativo excepcional. Expressa exemplo de aplicação da teoria dos freios e contrapesos (checks and balances).

Também acrescentando limitações, agora em nível material, o § 1º, trazido pela Emenda Constitucional nº 32/2001, traz uma lista de matérias que não podem ser veiculadas por Medida Provisória, quais sejam:

1) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;

2) direito penal, processual penal e processual civil;

3) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;

4) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares;

5) que vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;

6) reservada a lei complementar;

7) disciplinada em projeto de lei já aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.

Nos termos do artigo 167, § 3º, da Constituição Federal, excepcionando o art. 62, § 1º, “d”, permite-se o uso da medida para a abertura de crédito extraordinário para o atendimento a despesas imprevisíveis e urgentes.

Afastando as polêmicas sobre o Direito Tributário, o § 2º estipula que a medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos (exclusivamente esta espécie tributária), só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertido em lei até o último dia daquele em que foi editada. O texto faz ressalva aos impostos que não se submetem ao princípio da anterioridade (arts. 153, I, II, IV, V e 154, II), por terem a extrafiscalidade como nota distintiva.

Alterando-se o cenário anterior à Emenda Constitucional nº 32/2001, o § 3º, determina a perda da eficácia desde a sua edição (efeito ex tunc) da medida provisória que não for convertida em lei no prazo de 60 (sessenta) dias, prorrogáveis uma vez por igual prazo (§ 7º). De fato, bastante criticável o cenário anterior que não previa limites às suas reedições, havendo notícia de medidas provisórias reeditadas por mais de 100 (cem) vezes, em nítida utilização abusiva do instituto.

Resquício deste período, a Súmula Vinculante nº 54, do Supremo Tribunal Federal:

“A medida provisória não apreciada pelo congresso nacional podia, até a Emenda Constitucional 32/2001, ser reeditada dentro do seu prazo de eficácia de trinta dias, mantidos os efeitos de lei desde a primeira edição”. (antiga Súmula nº 651).

Curiosamente, apesar de expressamente optar pela perda de eficácia com efeitos ex tunc, o mesmo dispositivo determina que o Congresso Nacional deva disciplinar no prazo de 60 (sessenta) dias, via decreto legislativo, as relações jurídicas decorrentes da Medida Provisória já sem eficácia. Mais curiosa é a previsão do § 11 que anuncia a permanência dos efeitos da medida, quando não editado o decreto legislativo, em evidente contrassenso à anunciada perda de eficácia desde a sua edição (§ 3º).

A contagem do prazo de 60 dias para sua conversão em lei inicia-se da publicação da Medida Provisória, mas suspende-se em períodos de recesso do Congresso Nacional (§ 4º). De acordo com ao art. 57. da Constituição Federal, a sessão legislativa ordinária acontece entre 2 de fevereiro a 17 de julho e 1º de agosto a 22 de dezembro. Fora de tais períodos, os prazos acima referidos serão suspensos.

Ainda sobre o prazo de conversão, no caso de a medida provisória não ser apreciada em até 45 (quarenta e cinco) dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, ficando sobrestadas todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando (§ 6º).

Debruçando-se sobre o tema, no entanto, decidiu o Egrégio Supremo Tribunal Federal, no MS nº 27.931, de relatoria do Ministro Celso de Mello, que somente matérias que possam ser veiculadas por Medidas Provisórias ficariam sobrestadas, assegurando-se a tramitação quanto às demais.

Por expressa determinação, as medidas provisórias têm sua votação iniciada na Câmara dos Deputados, funcionando o Senado Federal como Casa Revisora (§ 8º).

Antes de serem apreciadas por sessão apartada a partir do plenário de cada Casa legislativa, cabe à comissão mista de Deputados e Senadores examiná-las e sobre elas emitir parecer. Já decidiu o Egrégio Supremo Tribunal Federal pela impossibilidade de supressão deste parecer, funcionando como garantia de fiscalização do extraordinário poder legiferante do Executivo (ADI 4.029, Rel. Ministro Luiz Fux). Tampouco é permitido que o parecer seja emitido monocraticamente pelo relator ou revisor.

O § 10 anuncia o postulado da irrepetibilidade, ao vedar reedição de medida provisória na mesma sessão legislativa que tenha sido rejeitada ou perdido eficácia por decurso de prazo. Segundo o decidido na ADI nº 2.010-MC, de relatoria do Ministro Celso de Mello, a irrepetibilidade tampouco autorizaria ao Chefe do Executivo valer-se de Medida Provisória para disciplinar matéria que já tenha sido objeto de projeto de lei rejeitado na mesma sessão legislativa.

A contrario sensu, no entanto, na sessão legislativa imediata a medida poderá ser reeditada, sendo bastante ineficiente o dispositivo constitucional em honrar a buscada irrepetibilidade.

Por fim, o § 12 enuncia a possibilidade de alteração do texto original da medida provisória, ao lado dos outros três destinos inferidos da leitura acima (rejeição tácita, rejeição expressa e aprovação sem modificações). A regra informa que o projeto de lei de conversão da Medida Provisória já aprovado, apenas terá vigência após a sanção ou veto do Presidente da República. Até este ato, vigerá a normativa medida provisória alterada.

Concluindo esta brevíssima retomada da matéria, procuramos destacar as principais características da medida provisória e os contornos já definidos pelo Poder Judiciário, no intuito de auxiliar os operadores do Direito a vislumbrar erros e acertos; validade ou invalidade dos últimos exemplos de utilização deste instrumento.


REFERÊNCIAS

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2018.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.

TEMER, Michel. Elementos de Direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

Sobre o autor
Vinicius D'Agostini y Pablos

Graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Possui Pós-Graduação Lato Sensu pela Fundação Getúlio Vargas - GVlaw, em Direito Administrativo. Advogado atuante há mais de 10 anos no Estado de São Paulo, com preponderância em Direito do Trabalho, Direito Civil e Direito Administrativo. Associado à Advocacia Antonio Russo.

Informações sobre o texto

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