7 - PRINCÍPIOS DO JORNALISMO CONTEMPORÂNEO E O HC 82.959-7
O jornalismo contemporâneo de qualidade fornece algo único para subsidiar intelectualmente o ser humano no cenário em que a informação ganha cada vez mais importância: "informação independente, confiável, precisa e compreensível, elementos importantes para que o cidadão seja livre. O jornalismo destinado a fornecer outras coisas diferentes acaba subvertendo a cultura democrática. É o que acontece quando os governos controlam a informação (...)" [15] No artigo em estudo, não há interferência do governo, muito pelo contrário, há crítica ao governo, em especial à cúpula do Poder Judiciário. No entanto, carece de precisão, o que compromete inevitavelmente o seu conteúdo. Para fins de melhor explanação deste tópico, expõem-se os princípios do jornalismo contemporâneo propostos por Bill Kovach e Tom Rosenstiel:
"(...)
1.A primeira obrigação do jornalismo é com a verdade
2.Sua primeira lealdade é com os cidadãos.
3.Sua essência é a disciplina da verificação.
4.Seus praticantes devem manter independência daqueles que a quem cobrem.
5.O jornalismo deve ser um monitor independente do poder.
6.O jornalismo deve abrir espaço para a crítica e o compromisso público.
7.O jornalismo deve empenhar-se para apresentar o que é significativo de forma interessante e relevante.
8.O jornalismo deve apresentar as notícias de forma compreensível e proporcional.
9.Os jornalistas devem ser livres para trabalhar de acordo com sua consciência." (KOVACH & ROSENSTIEL, 2003, p. 22-23)
O artigo "Uma questão filosófica" inicia: "A decisão do STJ de abrandar os critérios para progressão de pena de quem praticou crime hediondo repercutiu mal na sociedade brasileira." [16] Necessária se faz a correção. Quem decidiu pela inconstitucionalidade da proibição da progressão do regime para apenados por crimes hediondos num caso concreto foi o Supremo Tribunal Federal (STF), não o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Houve infração direta ao primeiro e ao terceiro princípios. O articulista atende parcialmente os princípios dois, cinco e nove. Porém, todos os princípios devem ser atendidos em sua totalidade para se evitar distorções.
Ainda no primeiro parágrafo, o articulista escreve: "Enquanto a celeuma ocorre, ninguém parece preocupado em perguntar porque a Justiça brasileira pensa e age desta forma, onde aparentemente os bandidos são beneficiados? Ou simplesmente porque ninguém questiona qual é o embasamento filosófico que orienta a prática do direito no Brasil." [17] Sob a justificativa de ser um monitor independente do poder (princípio cinco), o articulista parece defender os cidadãos (princípio dois) e instiga a crítica e questiona o compromisso público (princípio seis).
Contudo, no parágrafo seguinte, o articulista comete um deslize: "Sei, muito por cima, que o direito brasileiro é ligado ao positivismo de Auguste Comte. Seu lema era ‘amor, ordem e progresso’. Daí, podemos ver até onde vai a influência de suas idéias no Brasil republicano." [18] A especulação levou o articulista a infringir o princípio três, o da disciplina da verificação. Confunde o articulista o Positivismo de Auguste Comte com o Positivismo Jurídico. A escola de Comte – que com certeza teve influência no Brasil republicano, mas não da forma como escreve o articulista – teve mais viés sociológico, que jurídico propriamente dito. Comte preocupou-se em conferir às ciências humanas o estatuto epistemológico e o método mais preciso e rigoroso característico das ciências exatas. [19]
Bem antes de Comte, já se falava em positivismo jurídico. Tanto que Otfried Höffe considera o inglês Thomas Hobbes o pai do positivismo jurídico moderno. [20] Positivismo jurídico versa sobre o Direito Positivo, ou seja, o Direito posto por autoridade estatal competente: uma cisão metodológica entre moral religiosa e Direito; o Direito é feito pelos homens e para os homens, não mais pela Divindade ou deduzido de princípios imutáveis presentes na natureza. Höffe diz ainda que já se falava a respeito do Direito Positivo nas "Leis", de Platão, e na "República", de Cícero. [21] É um tema que vem desde a Antigüidade, não começando, então, com Auguste Comte. Comte teve maior relevância teórica para a sociologia; para o Direito, pouca.
O articulista cobra correção, justiça e coerência das autoridades, ao mesmo tempo em que infringe pelo menos três artigos do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, a saber: "Art. 2º A divulgação da informação precisa e correta, é dever dos meios de comunicação pública, independentemente da natureza da sua propriedade; Art. 3º A informação divulgada pelos meios de comunicação pública pautar-se-á pela real ocorrência dos fatos e terá por finalidade o interesse social e coletivo; Art. 7º O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e o seu trabalho pauta-se pelo apuramento preciso dos acontecimentos e a sua correta divulgação."
Prossegue o articulista: "Como a grande maioria dos brasileiros, meus conhecimentos nesta área são limitados. Sei apenas é que este embasamento filosófico tem orientado, na prática, o comportamento da Justiça no país." [22] Com certeza, a ética e a técnica jornalística estão no campo cognitivo homem comum. Ao se distanciarem dele, não se fala mais de jornalismo. A ilação do articulista, incorreta, fomenta os preconceitos típicos do senso comum. Reconhece sua falta de conhecimento com relação ao assunto e, mesmo assim, atribuiu uma ideologia ao Poder Judiciário com caráter pejorativo. Há de se guardar uma distância crítica do senso comum, para dar acesso ao público à informação, educação e aos caminhos do conhecimento. [23] Não foi que se fez no artigo em estudo.
Continua o articulista: "Sinto que, como qualquer outro tema de interesse da sociedade, o debate fica na superfície. Discute-se os efeitos, mas não aborda-se as causas. Pode ser que neste caso em particular, a discussão não surtiria mudanças práticas. Mas, pelo menos ajudaria a lançar alguma luz sobre o tema." [24] Verifica-se neste ponto um sofisma, um raciocínio com a aparente forma de silogismo (mas não o é). Tem uma validade aparente, revelando como conclusão algo paradoxal ou um impasse. [25] O artigo exige um remédio contra a superficialidade – contraditoriamente apelando para a superficialidade que diz combater – culminando numa conclusão que não conclui coisa alguma. O articulista propõe uma falsa solução para os problemas, apontando somente a discussão, que neste caso poderia não ter "sentidos práticos" como ponto de partida. Há um aparente encadeamento lógico no que se escreveu. Entretanto, parece ser mais uma justificativa do discurso para o articulista manter a preponderância do senso comum, em detrimento de uma deliberação mais técnica e racional, com as devidas considerações éticas, a respeito do tema.
Por fim, o último parágrafo do artigo: "Agora, a questão é: há o interesse de alguém que discussões como esta continuem ocorrendo apenas na superfície. Que não se vá a fundo quando um tema de interesse geral é trazido à baila. Isto talvez sirva aos interesses de alguém. Então cabe perguntar: serve para quem?" Deduz-se que o articulista atribui a responsabilidade dos problemas às "forças ocultas", que comandam o aparato estatal de modo implacável, sem que houvesse possibilidade, neste plano terrestre e material, de o indivíduo se libertar das amarras do destino por meio do trabalho, do estudo e do cultivo da razão. Tudo estaria determinado. A liberdade seria uma ilusão. Exercita-se a razão cínica, em detrimento da ética jornalística e do direito à informação correta: "O cinismo despreza as convenções sociais, as mediações morais ou jurídicas como meios de convivência, a palavra empenhada, os princípios subscritos, os acordos feitos. É cínico, cultiva o cinismo e contribui para tal desprezo aquele que utiliza palavras e conceitos a fim de se apropriar do mundo, embora não o reconheça. Contribui para intensificar o descrédito social por qualquer instituição, representação ou mediação." [26]
8 - CONCLUSÃO
A decisão do STF acerca do HC 82.959 pode ter posto fim a uma discussão num caso concreto. Contudo, a sociedade ainda visualiza a declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei 8.072/90 – que permitiu a progressão de regime para um condenado por crime hediondo – como algo que lhes prejudicará ainda mais diante do cenário de insegurança, violência e delitos do mundo contemporâneo. Não se esclareceu que a decisão tem efeitos só naquele caso. Só teria efeitos erga omnes se o Senado Federal elaborasse Resolução suspendendo a eficácia do citado dispositivo legal. Muito menos se falou que, mesmo que houvesse efeitos erga omnes, o condenado teria que passar pela apreciação do juiz das Execuções Penais, que avaliaria os requisitos objetivos e subjetivos para a concessão, ou não, do benefício.
Há necessidade de maiores debates sobre o tema, mas antes disso se faz urgente a instrução popular sobre o funcionamento básico das instituições do Estado Brasileiro. Não que todos tenham que ter obrigatoriamente formação jurídica. Pelo menos o básico seria plausível, pois o mundo contemporâneo é regido por relações jurídicas. E a própria complexidade das relações humanas não pode ser compreendida por raciocínios simplistas, para não dizer primitivos.
A mídia, de certa forma, tenta contribuir para esse debate, mas, muitas vezes, de forma desqualificada. Informações e opiniões falsas ou equivocadas, ou ambas, em vez de contribuir para o esclarecimento da população, têm efeito contrário. Fomenta-se o descrédito das instituições sem que se saiba o que são e como funcionam. A crítica sem fundamentos é traduzida pelos dizeres: mudar para não mudar. Ou seja, a mudança é aparente, pois, no máximo, serão trocados o staff e os líderes das instituições, mas não necessariamente estas serão corrigidas. Tudo continuará o mesmo.
Uma analogia com a atividade médica pode ilustrar melhor o tema. Por exemplo. Uma pessoa chega ao consultório com dor de cabeça. Um jornalista que está no local pede-lhe para se despir, no intuito de lhe efetuar um diagnóstico. O jornalista diagnosticou que o sujeito está com febre. Receita-lhe sal de frutas. O remédio receitado não cura o doente. Por quê? Não foi o remédio correto. No caso estudado, o HC 82.959-7, ocorre algo semelhante. Muitos não sabem como funcionam as instituições, nem fazem questão de obter tal conhecimento, porém, se arriscam a diagnosticá-las e disseminar receitas incorretas e ineficientes. Obviamente, todos têm a liberdade de pensar, de se expressar e de se comunicar – por meio da imprensa, também – desde que essa liberdade não se converta em libertinagem irresponsável.
Um Estado Social e Democrático de Direito tem na imprensa livre um dos seus pilares. Entretanto, uma imprensa livre e comprometida com princípios éticos e técnicos que enalteçam a educação e o esclarecimento da população, em vez de pulverizar boatos, preconceitos e diagnósticos/receitas falsos e ineficientes na solução dos problemas. Evitar o cinismo é primordial, como explica Karam: "Pode-se, no entanto, tratar um pouco de grandes temas que legitimam determinadas proposições jornalísticas e se utilizam da retórica e da sofística com fins que, muitas vezes, depreciam a própria argumentação e contribuem para que o jornalismo se aproxime de uma perigosa razão cínica." [27]
Há de se deixar a razão cínica de lado para que se possa começar discutir seriamente, nos foros públicos e imprensa, a respeito da progressão de regime para os condenados por crimes hediondos. Antes disso, corre-se o risco de tudo terminar numa grande conversa sem pé, nem cabeça, como se verifica no artigo jornalístico estudado.
9 - BIBLIOGRAFIA
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