Na maioria dos protestos recentes em favor do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), é possível identificar manifestantes com placas e faixas pedindo por uma suposta “intervenção militar constitucional”. No dia 21 de maio, a deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), defendeu, na tribuna da Câmara dos Deputados, a possibilidade dessa intervenção, utilizando como base o constitucionalista Ives Gandra Martins. Na reunião ministerial do dia 22 de abril, recentemente divulgada, o próprio Presidente da República defendeu que a Constituição prevê, em seu artigo 142, o uso das Forças Armadas para intervir nos outros poderes e restabelecer uma suposta ordem perdida. Apesar de cada vez estar mais em evidência no país, essa possibilidade deriva de uma interpretação distorcida e totalmente equivocada do texto constitucional.
O que dizem os favoráveis a uma intervenção militar constitucional
Para os defensores dessa tese, qualquer poder (Executivo, Legislativo ou Judiciário) poderia conclamar as Forças Armadas para restabelecer-se a lei e a ordem entre os poderes, interferindo assim diretamente nestes para impedir o seu funcionamento normal, com base no artigo 142 da Constituição Federal. Seria como se as Forças Armadas fossem, na prática, um tipo de poder moderador pronto para agir no caso de conflito entre os três poderes, suprimindo suas funções em nome de uma ordem imaginária.
Entretanto, a norma utilizada para justificar essa intervenção militar foi constituída justamente para impedir qualquer intervenção dessa natureza, colocando as Forças Armadas como subordinadas do presidente e como instrumento para garantir os poderes constitucionais.
O que diz o artigo 142 da Constituição Federal
Com uma breve leitura do caput do artigo 142 da Constituição Federal, pode-se concluir que ele se restringe apenas ao funcionamento das Forças Armadas:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
O texto da norma legal deixa claro que as Forças Armadas estão subordinadas ao presidente, mas não de forma exclusiva. Qualquer um dos chefes do Executivo, Legislativo e Judiciário podem, para a garantia da lei e da ordem, convocá-las. Mas o que seria a garantia da lei e da ordem?
A garantia da lei e da ordem já tem seu significado consagrado no mundo jurídico, se referindo a situações em que as forças de segurança pública tradicionais não se mostram capazes de manter a ordem pública interna. A participação das Forças Armadas nesses casos, no entanto, deve seguir estritamente a legislação já existente, devendo ter suas atribuições especificadas pelo poder executivo, e com um amplo controle legislativo e jurisdicional. Como exemplos, temos a operação realizada para a pacificação de favelas no Rio de Janeiro, greve dos policiais militares do Espírito Santo, em 2017, visita do Papa em 2013, entre outros.
O artigo 142 também traz expressamente que as Forças Armadas devem garantir os poderes constitucionais. Assim, a supressão de qualquer um dos poderes pelos militares não possui qualquer sustentação na própria norma.
A separação dos poderes e o poder moderador imaginário
A Constituição Federal de 1988 consagrou a separação dos poderes em seu artigo 2º, que devem ser independentes e harmônicos entre si. Dessa forma, qualquer possibilidade de sobreposição de um poder a outro, ou qualquer interferência indevida, utilizando as Forças Armadas para tal, é nula e inconstitucional.
O artigo 1º da Carta Magna também evidencia que a intervenção militar constitucional não existe. Seu parágrafo único dispõe que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Ou seja, o poder político, qualquer que seja, jamais poderá ser exercido por meio de lideranças militares.
As Forças Armadas não podem ser classificadas como um novo poder moderador (extinto com a proclamação da República), estando acima do Executivo, Legislativo e do Judiciário, mas devem estar a serviço destes e da própria Constituição. O sistema de freios e contrapesos já existe justamente para que nenhum poder abuse de suas prerrogativas e funções, resguardando a harmonia entre eles. Nesse contexto, as Forças Armadas devem ser vistas como guardiãs do Estado Democrático de Direito, subordinadas à Constituição e defensoras dos poderes, e não como potenciais responsáveis pela ruptura da ordem democrática.
A Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 é conhecida como “constituição cidadã” não por acaso. Foi concebida no processo de redemocratização do país, e criada para garantir a democracia, os direitos fundamentais e o Estado Democrático de Direito. Ela não admite e nem chancela em seu conteúdo qualquer ação que provoque a ruptura, ainda que temporária, dos pilares democráticos do país. Qualquer forma de intervenção militar é, portanto, ilegal, inconstitucional e configura-se como golpe de Estado.
Nesse caso, não falta aplicação da norma constitucional, como muitos bradam por aí. Falta interpretação de texto.