6. JÂNIO QUADROS TENTA INGRESSAR NO PMDB
Extinto o MDB nos deparamos com a tarefa de reorganizamos o partido em torno da nova sigla – PMDB. Fui nomeado para fazer parte da Comissão Provisória do Diretório de Santo Amaro (um dos distritos eleitorais da capital de São Paulo) e, nessa condição, pude participar ativamente da reorganização partidária do partido não só na região, mas também em algumas cidades do estado de São Paulo.
A Convenção do Partido para eleger o novo Diretório foi uma festa democrática. Participaram mais de cinco mil eleitores filiados que elegeram a nova diretoria do partido na região. Fui eleito presidente do novo Diretório do PMDB de Santo Amaro23 e tive que administrar um conflito político que envolveu várias lideranças do partido em São Paulo: o Ex Presidente Jânio da Silva Quadro24 pretendia se filiar ao PMDB!...
Todo o partido em São Paulo entrou em polvorosa!... Jânio era visto como uma espécie de “cavalo de tróia” que iria se infiltrar no partido para destruí-lo por dentro. Montoro era o mais preocupado, pois via em Jânio um possível adversário na pretensão de concorrer ao governo do estado em 1982.25
Fui convocado às pressas para uma reunião com o Senador Franco Montoro na qual ele externou sua preocupação. Seu receio maior era que, se Jânio se filiasse ao partido o Quércia poderia patrocinar a candidatura dele na convenção do partido que indicaria os candidatos nas eleições de 1982 e Montoro poderia perder a indicação para concorrer ao cargo de Governador.
Depois disso, uma série de reuniões foi realizada, todas com a finalidade de traçar estratégias para barrar o ingresso de Jânio Quadros no Partido. Participei de diversas reuniões, inclusive com Mario Covas, o então Presidente Regional do Partido no Estado de São Paulo.
O encontro determinante e que selou o destino da filiação de Jânio Quadros foi com o Dr. Ulysses, no gabinete do Vereador Eurípedes Sales, então presidente na Câmara Municipal de São Paulo. Relatei como estavam os ânimos e a quase unanimidade no partido quanto à rejeição ao pedido de filiação. Nessa oportunidade fui aconselhado pelo Dr. Ulysses para me antecipar, reunir o Diretório e aprovar uma moção de repúdio à pretensa filiação.26
Assim foi feito e após aprovação, tornamos pública a decisão do Diretório em recusar o ingresso de Jânio Quadros nas fileiras do PMDB: as bases do PMDB não aceitam Jânio no partido. Com isso a única alternativa que sobrou foi Jânio dar entrada na sua ficha de filiação pelo Diretório Nacional do Partido.
Patrocinado por Orestes Quércia, o pedido de filiação é entregue à direção nacional do partido. Agora surge um novo desafio – impedir que a cúpula partidária Nacional aprove o ingresso de Jânio na agremiação. Para isso, vamos recorrer a um instituto jurídico constante no estatuto do partido que é a impugnação, mecanismo que permite submeter o pedido à apreciação do colegiado.
Preparamos a impugnação e fomos entregá-la pessoalmente no Diretório Nacional em Brasília. Além da nossa impugnação outras foram interpostas com a mesma finalidade. Dessa forma foram apresentadas impugnações pelo então deputado estadual Flavio Flores da Cunha Bierrenbach (SP), pelo deputado federal Antônio Russo (SP), pelo jornalista e deputado estadual Fernando Gomes de Morais (SP), deputado estadual Néfi Tales (SP), pelo deputado estadual José Yunes (SP), pelo Sr. Laerte Dante Biazotti, filiado ao PMDB de Itápolis (SP). Além desses o vice presidente regional do partido em São Paulo, Almino Affonso, também apresentou impugnação ao ingresso de Jânio no partido.
Foi a primeira vez que isso aconteceu na história do partido. Nunca antes a Direção Nacional houvera recebido manifestações contrárias ao ingresso de qualquer filiado. Isso era uma tarefa das bases e não da cúpula do partido.
Foi nomeado relator o Deputado Tarcisio Delgado, de Minas Gerais. No seu voto favorável à impugnação ao ingresso de Jânio, o relator fez constar expressamente a menção à impugnação apresentado no dia 13 de outubro de 1981, pelo então presidente do Diretório Distrital do PMDB do Distrito de Santo – Nehemias Domingos de Melo (fls. 143/6 do processo), na qual destaca:
“Este impugnante, nas suas razões, protesta contra a forma de filiação pretendida, afirmando que é presidente do Diretório Distrital do domicílio eleitoral do impugnado, e que este Diretório deliberou, por unanimidade, manifestar-se contra a filiação do Sr. Jânio Quadros, e afirma expressamente às fls. 144: ‘relevante também, de suma importância, o fato do Sr. Jânio Quadros fugir à forma normal de filiação, junto à base, ao seu Diretório e tentar enveredar por outros caminhos, senão ilegais, inusitados, distante do julgamento dos militantes que deveriam ser seus pares. Mais uma vez a megalomania política, o desprezo pela base, que contrasta com a afirmação nada crível de que vem ‘para ser um soldado’. Anexou à sua impugnação a manifestação do Diretório Distrital de Santo Amaro”.27
Resultado: a Executiva Nacional do Partido, apesar do apoio de Orestes Quércia (senador por São Paulo) e Alencar Furtado (deputado federal pelo Paraná), acolhe o pedido de impugnação e decreta o veto ao ingresso de Jânio Quadros no partido pelo expressivo placar de treze votos a dois.
7. O MOVIMENTO DAS DIRETAS JÁ
Nas eleições de 1982 o PMDB sagra-se mais uma vez vitorioso nos principais estados e cidades da federação, porém o partido de sustentação ao governo, graças às manobras já referenciadas, continua com maioria no Congresso nacional.
Tão logo foi empossado o novo Congresso um jovem deputado do PMDB do Mato Grosso, apresenta a proposta de emenda constitucional (PEC nº 5/1983) à qual tinha por objetivo devolver ao povo o direito de eleger pelo voto todos os governantes, especialmente o presidente da República no Brasil. A emenda passou a tramitar com o nome de seu proponente – Dante de Oliveira.28
Foi em torno da emenda Dante de Oliveira que a nação brasileira, nos anos de 1983 e 1984, se mobilizou para bradar num grito só: DIRETAS JÁ!... Aliás, a idéia de criar esse movimento a favor de eleições diretas foi lançada pelo então senador Teotônio Vilela (ex-ARENA e depois filiado ao PMDB), quando se apresentou em 1983 no programa Canal Livre da TV Bandeirantes.
O ápice do movimento ocorre em São Paulo, com um comício realizado no Vale do Anhangabaú, no Centro da Capital, na data de comemoração do aniversário da cidade de São Paulo – dia 25 de janeiro. Nesse evento compareceram mais de 1,5 milhão de pessoas que avalizavam seu apoio ao Movimento das Diretas Já. No palanque as principais lideranças da oposição no Brasil. Lá estava Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Orestes Quércia, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva, Pedro Simon, Teotônio Vilella, além de outros políticos, artistas,29 intelectuais, sindicalistas, advogados e lideranças populares.
Apesar de toda a mobilização popular a proposta de Emenda Constitucional foi rejeitada pelo Congresso Nacional, frustrando a grande maioria da sociedade brasileira.
Mesmo não tendo logrado sucesso, a emenda e o movimento das “diretas já” sedimentaram no povo brasileiro o desejo de mudança e consolidaram um ambiente de mudança cujo desaguadouro foi representado pela eleição de Tancredo Neves, para Presidente de República, pelo Colégio Eleitoral.
8. A ELEIÇÃO DE TANCREDO NO COLEGIO ELEITORAL
Janeiro de 1985 era a data em que se daria a escolha, pelo Colégio Eleitoral, do novo presidente da república que iria substituir o Gen. João Baptista de Figueiredo.
O regime militar escolheu como seu candidato à presidência da República o ministro Mário Andreazza. Porém na convenção do partido do governo (PDS) que iria formalizar a indicação, surge um candidato independente – Paulo Maluf, que acaba derrotando o candidato oficial.30 Isto funcionou como um divisor de águas e causou a ruptura da base de sustentação do governo.
Uma parcela ponderável de políticos do PDS, insatisfeitos com a vitória de Maluf, decidem apoiar o candidato da oposição – Tancredo Neves. Liderados pelos senadores José Sarney e Marco Maciel, pelo vice-presidente Aureliano Chaves e pelo ex-governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, os dissidentes fundam o Partido da Frente Liberal (PFL) indicando o Senador José Sarney como presidente da legenda.
Foi exatamente em face dessa dissidência que foi possível cogitar a derrota do regime militar no seu próprio quintal – o Colégio Eleitoral. O PMDB e o recém criado PFL se unem numa frente de oposição denominada "Aliança Democrática", que iria indicar Tancredo Neves como candidato a presidência da república, tendo como vice o Senador José Sarney.
Como já se desenhara Tancredo Neves sagra-se vitorioso na eleição realizado pelo Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985. Foram 480 votos a favor (sendo 166 oriundos de deputados do PDS), contra 180 dados a Paulo Maluf, candidato do PDS, e 26 abstenções. Começa o fim do regime militar com a eleição do primeiro presidente civil desde 1964.
Doze horas antecedia a solenidade de posse quando Tancredo Neves é internado às pressas no Hospital de Base, em Brasília, para se submeter a uma cirurgia de diverticulite. Diante disso surge uma grande polêmica acerca de quem deveria tomar posse em seu lugar, se José Sarney (eleito vice presidente) ou Ulysses Guimarães (presidente da Câmara dos Deputados). Ulysses reconheceu a legitimidade da posse do vice José Sarney e ele é empossado interinamente pelo Congresso Nacional.
Tancredo porém não viria a tomar posse, pois acometido da doença que o levou ao Hospital de Base e após em São Paulo sofrer várias outras cirurgias, veio a falecer em 21 de abril de 1985. Com isso, José Sarney é empossado definitivamente como novo Presidente do Brasil, dando início ao período conhecido como "Nova República".31
Essa transição pacifica da ditadura para um novo regime democrático só foi possível face da grandeza de Ulysses Guimarães!... Não fosse seu desprendimento, inteligência e coerência política essa vitória da democracia não teria acontecido!...
Esclareça-se: A pessoa que reunia as condições históricas para ser o candidato a presidente, era o Dr. Ulysses. Quer dizer, ele seria o candidato natural da oposição, porém sabia que o seu nome encontraria resistência entre os novos aliados e até nos porões do regime militar. Nesse cenário, Tancredo Neves era o nome que reunia melhores condições para garantir a maioria no Colégio Eleitoral e, mais importante, tinha maiores probabilidades de assumir, caso a vitória acontecesse.
Inviabilizado a posse de Tancredo, de novo veio à tona a grandeza de Ulysses Guimarães, pois havia duas correntes: uma que defendia a sua posse no lugar de Tancredo Neves (ele tinha sido eleito Presidente da Câmara dos Deputados) e outra que defendia que a regra constitucional estabelecia a posse do vice-presidente eleito, José Sarney. Ulysses reconheceu a legitimidade da posse do vice José Sarney e lhe deu total apoio...
Empossado José Sarney o cargo de vice fica vago e, pela Constituição, o seguinte na ordem sucessória é o Presidente da Câmara dos Deputados, ele – Ulysses Guimarães que, nessa qualidade, iria assumir interinamente a Presidência da República em inúmeras oportunidades.32
9. NASCE A CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA DE 1988
Na histórica data de 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães como presidente da Assembléia Nacional Constituinte, na reunião do Congresso Nacional, especialmente convocada para a promulgação da nova Constituição (que ele chamou de “Constituição Cidadã”), proclama solenemente:
“A nação quer mudar!
A nação deve mudar!
A nação vai mudar!
A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.
Que a promulgação seja nosso grito: Mudar para vencer! Muda Brasil!”33
Era o atingir de uma meta!... Foi a consagração de uma luta que durou mais de vinte anos!... O sentimento do dever cumprido se espelhou numa nova ordem constitucional onde o homem passou a ocupar o ápice do ordenamento jurídico e a democracia o cerne da organização do Estado.
Pela importância transcrevo alguns trechos do discurso do Dr. Ulysses naquele dia glorioso, vejamos:
“A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma.
Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.
Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina.
A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria.
Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios.
A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.
Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de 5 anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.
Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço. Que o bem que os Constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles.
Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno. Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembléia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa.
O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.
Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.
Que a promulgação seja nosso grito:
– Mudar para vencer!
– Muda, Brasil!