1. Introdução
Com a criação da vida organizada pelo homem em sociedade, dada a sua própria condição, definida sociologicamente, de ser um animal social, defronta-se ele, inevitavelmente, com a existência de vários conflitos dos mais diversos interesses e que, consequentemente, demandam soluções para o restabelecimento do equilíbrio que se rompe com o surgimento de um interesse resistido, a fim de que a vida social possa prosseguir novamente em harmonia.
Como forma de equacionamento desses conflitos, a nossa história demonstra a criação de três instrumentos, os quais se sucederam cronologicamente, quais sejam a autotutela, a autocomposição e a jurisdição. Esta última exercida por um ente imparcial e cujas decisões devem submeter a todos os viventes de um determinado local, inclusive a ele mesmo. Sendo assim, o poder jurisdicional, poder de dizer o direito diante do conflito concreto, passou a ser exercido por uma parcela do Estado que resolveu-se chamar de Poder Judiciário, cuja função precípua é, repito, resolver, de forma imparcial, as lides que lhe são apresentadas.
Entretanto, desde há muito, vem a sociedade se ressentindo da morosidade na solução dos conflitos criados no âmbito social e colocados à apreciação desse poder, que, a par de suas carências materiais e humanas, se vê obrigado a recorrer a um conjunto legislativo deveras extenso, arcaico e formalista.
Daí dizer o jurisdicionado, aliás coberto de razão, que maior sofrimento lhe causa o processo para a reparação da ofensa do que esta propriamente dita. Contudo, sensível a tais clamores, vem o órgão legiferante buscando encontrar soluções legislativas que prevejam ritos menos extensos e um ordenamento mais enxuto. Assim é que, para dar eco a pretensão de agilidade, foi editada a lei 9.099/95, que tem como escopo, fundamentalmente, propiciar uma solução célere aos conflitos que especifica, resolvendo-os dentro de um menor intervalo de tempo possível entre a ofensa ao direito e a sua reposição, propiciando-se assim a verdadeira distribuição da justiça. Nessa diretriz, verifico que o legislador emprestou especialíssimo valor à conciliação, já que é através da composição das partes, que o conflito torna-se findo da forma mais imediata possível.
Pari passu, elegeu igualmente determinados princípios jurídicos que etimologicamente nada mais são do que "... um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam" (Curso de Direito Tributário Constitucional, Roque Antônio Carrazza, Malheiros, 8ª Ed., p. 29). São eles: oralidade, simplicidade, economia processual, celeridade e informalidade. Para a nossa matéria, o mais importante e fundamental é o princípio da informalidade, inserido no artigo 2º da Lei 9.099/95, por ser o maior responsável pela rapidez na solução dos conflitos. É certo que aqui, a simplicidade no processar e a informalidade dos atos devem ser a tônica, em detrimento de qualquer exigência formalista, passando-se a reclamar mais o fim colimado do que o meio utilizado para a sua obtenção.
Entretanto, referida lei, da mesma forma que descreveu seus ritos processuais céleres, seus princípios, também previu as matérias as quais podem ser discutidas no âmbito desburocratizado. Assim o fez o legislador pátrio, visando impedir que determinadas ações, uma vez processadas perante o juizado especial cível, viessem ferir sua finalidade mor que é a de dar a tutela na maior brevidade possível. Por isso, forçosamente, seus princípios e artigos devem ser aplicados apenas e tão somente às ações elencadas pela novel lei, que aliás, prevê e especifica apenas três procedimentos, o sumaríssimo, o da arbitragem e o de execução (título judicial ou extrajudicial, de dar ou entregar, fazer ou não fazer).
Dessarte, não obstante aos termos expressos do artigo 3º, § 2º, da Lei 9.099/95, os quais exclui do âmbito do juizado especial cível várias ações, dentre elas as de natureza alimentar e as inerentes ao estado e a capacidade das pessoas, vários magistrados, acreditando estar trilhando o melhor caminho, vêm processando, homologando e julgando umas e outras na esfera especializada, utilizando-se para isso, de forma analógica, os termos do artigo 57, caput, da lei em evidência. Obviamente, por entender que a intenção do legislador foi, com a criação do artigo 3º, elencar a regra, onde todas as ações reconhecidas como sendo de complexidade diminuta podem ser processadas e julgadas perante os juizados e no § 2º, do mesmo dispositivo, estabelecer as exceções, passo a consignar minha opinião sobre o assunto que, diga-se de passo, se mostra deveras controvertido ante a jovial face da lei em questão.
2. Da carência material e humana
O Estado, por seu órgão competente, com base na louvável intenção de agilizar a prestação jurisdicional, como suso-afirmado, tratou de editar a Lei 9.099/95, onde inseriu no seu artigo 95, a atribuição e a responsabilidade pela criação e instalação dos juizados especiais aos entes da federação a saber, Estados, Distrito Federal, Territórios.
Porém, como é de conhecimento geral, passamos atualmente por uma crise financeira sem precedentes, fruto de vários fatores, que exige destes mesmos entes contenção de despesas. Salvo algumas exceções, na grande maioria dos Estados, os juizados foram criados de inopino, a fim de atender ao prazo de 6 meses estipulado no referido artigo, entretanto, sem que houvesse previsão orçamentária para tanto. O que se vê, são juizados instalados em prédios que não são próprios, cujos aluguéis, contas de telefones etc., enfim, despesas em geral e fundamentais ao seu funcionamento, na sua grande parte, são pagas pelos municípios, ente que nada tem a ver e não é responsável de lege ferenda pela sua manutenção. Não possuem magistrados e promotores de justiça próprios, titulares, isto é, os que ali labutam assim o fazem a título de substituição legal, onde, além de trabalharem perante as suas varas, têm ainda que reservar parte de seu tempo para atender aos expedientes dos juizados, fato este que vem em detrimento ao bom andamento de tal justiça. O mesmo serve para servidores, já que estes, via de regra, são emprestados pela prefeitura, câmara municipal ou justiça comum.
Então, talvez pensando nesta realidade, foi que o legislador federal limitou pelo valor ou quanto à matéria, a competência dos juizados especiais.
Sabemos que, não só o Estado mas também o particular enfrenta dificuldades financeiras, e que tal fato vem a interferir diretamente nas relações familiares, desagregando-as e consequentemente aumentando o número de ações de alimentos e de separações, lides estas que, uma vez desaguadas no juizado especial cível, face a sua frágil estrutura, irá inviabilizá-lo, assim como se encontram inviabilizadas as milhares varas de família existentes no nosso país. Estas sim, devem cuidar das causas em comento, já que foram criadas especificamente para isso, devendo o legislador procurar soluções para efetivar o seu desafogamento, que não seja o encaminhamento das ações de igual natureza para o âmbito do juizado especial cível.
3. Do critério de fixação de competência
Como amplamente divulgado aqui, a criação do juizado especial foi provocada pelo interesse público de melhorar a prestação jurisidicional. Sua competência restringe-se às ações de menor complexidade, conforme a Carta Magna e a lei em apreço. Como tal competência, uma vez excluída a relativa ao valor atribuído à causa, é conferida em razão da matéria, ela é absoluta, de modo que não é possível que sejam processadas, julgadas ou apenas homologadas no juizado especial cível, ações diversas das expressamente especificadas, sob pena de se incorrer em nulidade cuja declaração deve se dar a qualquer tempo e grau de jurisdição, inclusive ex officio (art. 113 do CPC).
Por outro lado, trouxe a Lei 9.099/95, inserido em seu artigo 57, novo critério de fixação de competência, o qual visa também atender ao interesse público de agilização dos litígios. É inegável que esse dispositivo outorgou ao juizado especial competência para homologação de qualquer acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, valendo a sentença como título executivo judicial. Daí é que se pode notar, mais uma vez, a valorização dada ao instituto da conciliação, já que o dispositivo legal ora em exame, demonstra, sem dúvida alguma, que houve uma suplantação da competência fixada em razão da matéria ou valor com base nessa valorização.
Contudo, a expressão "juízo competente" mencionada no aludido dispositivo legal, se refere à competência territorial, não se aplicando, pois, às limitações de valor ou matéria. Deve então o artigo 57, caput, da lei em apreço ser interpretado em perfeita consonância com o disposto no artigo 3º, § 2º, que exclui expressamente do juizado a competência sobre as causas que versam a respeito das matérias que especifica, pelo que a hipótese daquele artigo não se estende a estas causas, face a incompetência material absoluta do juizado especial cível. A saber, seja para conhecer e julgar meritoriamente ou somente para homologar acordo extrajudicial, o juizado especial cível é absolutamente incompetente para causas de natureza alimentar, de estado e capacidade das pessoas dentre outras que elenca, ainda que tais causas tenham cunho patrimonial limitado ou não a 40 salários mínimos. Noutros dizeres, o artigo 57, caput, da Lei 9.099/95, reporta-se a apenas acordos extrajudiciais entabulados pelos interessados na ausência da autoridade judiciária, levado posteriormente à sua presença para efeito de homologação e obtenção de força judicial para quiçá execução.
Aqui, trata-se de acordo celebrado entre pessoas maiores, capazes e livres para dirimirem sobre os seus termos, sem que exista a obrigatoriedade da interveniência do Estado, já que o seu objeto é de interesse particular e patrimonial. Porém, urge entender que isso não ocorre nas ações de alimentos e de estado, onde, por reportar-se a bens indisponíveis, deve ter a obrigatória fiscalização e interveniência estatal. Comungando desse entendimento, temos o enunciado número 8º, originado no IV Encontro de Coordenadores de Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil, organizado pela AMB, com o seguinte teor " As ações cíveis sujeitas aos procedimentos especiais, não são admissíveis nos Juizados Especiais".
A ação de separação consensual vem inserida nos artigos 1.120 e seguintes, do Capítulo III, do Título II, do Livro IV, do CPC, que trata dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária e a ação de alimentos está prevista na lei especial n.º 5.478/68, que também prevê rito especial, portanto, excluídas estão, inclusive apenas para efeito de homologação, da competência do juizado especial cível.
4. Da necessidade premente de se uniformizar o entendimento, exemplos e conclusão
É cediço que a Lei 9.099/95 entrou em vigor há pouco tempo, razão pela qual, várias questões ainda não foram sedimentadas pelos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais. Não obstante, a matéria que ora se coloca à apreciação, necessita urgentemente ser esclarecida pelos cultores do direito, sob pena de ensejar atos que, ao invés de agilizar o andamento da justiça, venham perturbar o seu bom termo, tudo por tais ações serem distribuídas e apreciadas por órgão absolutamente incompetente.
A título de exemplo, cito três casos para em seguida questionar:
I. O alimentante que se obriga em acordo elaborado e homologado pelo órgão judicante do juizado cível, que assim o faz com base no artigo 57, caput, caso venha futuramente a descumprí-lo sem justificativa, pode ter contra si, ordem de prisão expedida por este mesmo órgão que pela lei é absolutamente incompetente para conhecer a matéria? Ao assim agir, de mero ato homologatório, não se criou uma ação, na acepção jurídica da palavra, de pretensão resistida, instalando-se ai o contraditório, burlando-se assim sua natureza jurídica de procedimento especial de jurisdição voluntária? Pode os autos de alimentos ir e vir do arquivo morto todas as vezes que o alimentante despreza e posteriormente cumpre o acordo?
II. O casal homologa a sua separação perante o juizado especial cível de uma comarca, sendo que os separandos possuem bens em outro estado da federação, porém, ao se expedir mandado de averbação ao CRI daquela localidade, o oficial, alegando ser o juizado especial cível absolutamente incompetente para homologar a separação, recusa-se em promover a mencionada averbação, razão pela qual, os interessados requerem a suscitação de dúvida, cujo magistrado competente, com base no artigo 3º, § 2º, da Lei 9.099/95, decide dar razão ao oficial. Desta decisão há interposição de recurso administrativo e a E. Corregedoria Geral de Justiça daquele estado não lhe dá provimento embasando-se no mesmo dispositivo legal, restando agora, ao casal, procurar a vara de família da justiça comum para obter novamente uma outra homologação de sua separação, com a repetição de todos os atos. Pergunto, tal fato não atravanca e protela por muito tempo ato que de início era meramente homologatório, mas que posteriormente veio a se tornar litigioso? Ato este que inicialmente era gratuito e veio a adquirir onerosidade, inclusive com o pagamento de honorários advocatícios? Isso não indigna os jurisdicionados em detrimento da imagem da justiça? Até a solução do conflito instaurado, os interessados, mesmo que tenham averbado sua separação no CRC da comarca processante, estão ou não separados?
III. O magistrado que jurisdiciona o juizado especial cível de uma certa comarca, com base no artigo 57, caput, da lei em evidência, resolve homologar acordo de separação consensual, abrindo-se assim um precedente. Desta forma, por não poder a justiça utilizar-se de dois pesos e duas medidas nas causas idênticas, deve doravante homologar todos os acordos levados até a sua presença, inclusive aqueles em que os interessados possuem bens de raiz e patrimônio de considerada expressão. Pergunto: Ao assim agir, não estaria a justiça compactuando com o não recolhimento das custas judiciais e talvez dos impostos devidos, conquanto estar voltada aos mais desassistidos? Tal fato não lesa diretamente o próprio Estado que já se encontra em dificuldades e que por isso não estrutura a justiça desburocratizada, que por sua vez, por não ter estrutura, não dá a ágil solução aos conflitos e ao assim o fazer deixa de cumprir a sua primordial finalidade de existir bem como os seus princípios?
Desta forma, em arremate, qualquer ato normativo que se encontre na pirâmide jurídica, seja ele lei estadual, provimento etc., o qual venha a atribuir competência a causas que a lei federal não menciona ou a exclui expressamente, deve ser considerado ilegal e rechaçado de plano pelo operador do direito, por eleger premissas falsas que somente prejudicam a obtenção do dinamismo, modernidade e rapidez tão necessários à justiça do terceiro milênio e eleita como tônica pela Lei 9.099/95. Para que se obtenha êxito concreto com ela, torna-se imprescindível que a doutrina e os tribunais readaptem consagradas concepções, válidas no macrossistema do Código de Processo Civil, mas não necessariamente hábeis para este outro tão específico. A nova realidade jurídica está a exigir métodos e formas adequados à consecução deste desiderato, a fim de se viabilizar as respectivas unidades jurisdicionais, resgatando-se assim a verdadeira imagem da justiça brasileira.