Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A coisa julgada inconstitucional no Código de Processo Civil

Exibindo página 1 de 4
Agenda 05/05/2006 às 00:00

Sumário: 1. Intróito. 2. A Coisa Julgada: Conceito e Fundamento. 3. Da necessidade de se relativizar a coisa julgada material. 4. A Coisa Julgada Inconstitucional. 4.1 Os instrumentos processuais de controle propostos. 4.2 Diferença entre Relativização da coisa julgada e Coisa julgada inconstitucional. 5. Do Parágrafo Único do art. 741 do Código de Processo Civil. 5.1 O motivo da MP n.° 2.180-35. 5.2 A MP n.° 2.180-35 e a ADIn n.° 2.418-3. 5.3 Exegese do parágrafo único do art. 741 do CPC. 5.4 Efeitos da declaração de inconstitucionalidade da coisa julgada: "ex tunc" ou "ex nunc"?. 5.5 Da impropriedade da inserção deste dispositivo na matéria que trata dos embargos à execução. 6. Da necessidade de se conferir um novo tratamento à ação rescisória. 7. Considerações Finais. 8. Bibliografia Consultada

Resumo: Cresce o entendimento de que uma decisão judicial transitada em julgado pode ser revista mesmo quando decorrido o prazo da ação rescisória, o que é possível, por exemplo, quando a sentença e/ou acórdão estejam contaminados pelo vício da inconstitucionalidade. Vários são os instrumentos propostos objetivando o afastamento da coisa soberanamente julgada. E muitos são os inconvenientes que exsurgem deste uso indiscriminado de meios.


1. Intróito:

A coisa julgada é um instituto jurídico antiqüíssimo, mas que reluta em não deixar quieto o estudioso do Direito. Muito já se escreveu acerca do mesmo e, certamente, muito ainda há por se escrever. Seu fascínio advém da sua complexidade; e sua importância, da particularidade de consolidar a tutela jurisdicional ofertada, constituindo, assim, o momento mais esperado pelos litigantes.

Além da reformulação por que passou, nas últimas décadas, para se adaptar às demandas coletivas, o que se fez sentir notadamente nos seus limites subjetivos e objetivos, a coisa julgada volta a chamar a atenção da comunidade jurídica, nacional e internacional. Coloca-se hoje na berlinda a sua intangibilidade, ostentada como absoluta ao longo da história.

A existência de sentenças e/ou acórdãos inconstitucionais ou teratológicos levou doutrinadores de renome como, por exemplo, CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e JOSÉ AUGUSTO DELGADO, a pugnarem pela possibilidade de revê-los mesmo quando escoado o prazo bienal da ação rescisória.

A coisa julgada inconstitucional, uma das excepcionais hipóteses em que a coisa julgada merece ser relativizada, já não é uma mera elucubração doutrinária. O Código de Processo Civil e a Consolidação das Leis Trabalhistas acolheram esta teoria, respectivamente, em seus arts. 741, parágrafo único, e 884, § 5°, através de uma Medida Provisória (n.° 2.180-35) que se tornou permanente graças ao art. 2° da Emenda Constitucional n.° 32/2001.

Trata-se agora de uma questão de direito positivo, merecendo, assim, um obrigatório e criterioso estudo por parte dos operadores do Direito. Acrescente-se que a Medida Provisória aludida foi objeto de guerreamento por parte do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil através da Ação Direta de Inconstitucionalidade de n.° 2.418-3, proposta em 22.02.2001, a respeito da qual não há ainda nenhum pronunciamento meritório do Colendo Supremo Tribunal Federal!

No presente trabalho analisaremos, pois, ainda que perfunctoriamente, dentre outras coisas, a teoria da coisa julgada inconstitucional, o seu acolhimento pelo Código de Processo Civil, os meios processuais propostos para se obter a revisão da decisão com trânsito em julgado que infrinja o texto constitucional e a necessidade de se conferir um novo disciplinamento à ação rescisória.


2. A Coisa Julgada: Conceito e Fundamento:

Coisa julgada é a imutabilidade da decisão judicial (sentença e/ou acórdão) que põe termo a um processo, tenha este apreciado ou não o mérito da causa, o que ocorre após o exaurimento das vias recursais, o simples escoamento do prazo para guerreamento da decisão (conformismo do sucumbente) ou, ainda, com a mera publicação da decisão, nos casos de instância única.

O instituto pode ser analisado sob o ângulo formal e o material. Fala-se em coisa julgada formal quando a decisão não comporta mais discussão no âmbito do mesmo processo. É, pois, um fenômeno intra-processual, não projetando efeitos na vida das pessoas (exceto no que concerne ao ônus sucumbencial) por não ter apreciado o mérito da lide, o que possibilita, em regra, a propositura de uma nova ação em que as partes, a causa de pedir e o pedido são os mesmos (art. 268 do CPC). Mas caso a decisão tenha declarado os direitos e obrigações das partes, atingindo assim o fim colimado por estas quando resolveram levar à cognição do órgão julgador as suas pretensões resistidas, então temos a coisa julgada material, a qual impede que a causa volte a ser apreciada no mesmo e em outro processo, não podendo o que ficou decidido ser alterado por ninguém, nem mesmo pelo juiz ou pelo legislador, salvo os casos que possibilitam o uso da ação rescisória. E a coisa julgada material tem como pressuposto lógico a coisa julgada formal.

Para o presente estudo, interessa-nos sobremaneira a coisa julgada material. O Código Buzaid, em seu art. 467, assim a conceitua: "Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário." Tal conceituação deve ser complementada pelo disposto no art. 468: "A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas." O termo sentença deve ser aqui entendido em seu sentido lato, abrangendo também o acórdão.

A coisa julgada material não é efeito da sentença e nem se confunde com a sua eficácia. Esta é a aptidão que um ato jurídico tem para produzir seus efeitos. A sentença pode ser eficaz (execução provisória da sentença) e não ter se tornado imutável, daí a necessidade de o intérprete entender a coisa julgada não como uma condição de eficácia da sentença (interpretação literal), e sim como um reforço à sua eficácia, já que torna imutáveis a sentença (como ato processual) e os seus efeitos.

Assim, consubstanciada a coisa julgada material, é defeso às partes a renovação da demanda, devendo o juiz extinguir o processo sem apreciação do mérito (art. 267, V, do CPC). Elas podem, todavia, obter o desfazimento do julgado através da ação rescisória, a ser proposta no prazo decadencial de dois anos, a contar do trânsito em julgado da decisão que se deseja rescindir, mas apenas nas hipóteses taxativamente previstas no art. 485 do CPC. Transcorrido este prazo, tem-se o que se chama de coisa soberanamente julgada.

O instituto em comento passou por muitas transformações ao longo da história e várias foram as teorias formuladas com o escopo de lhe oferecer um fundamento jurídico. O Prof. Moacyr Amaral dos Santos [01], como demonstrativo, elenca as seguintes: a) teoria da presunção da verdade (Ulpiano, Pothier e outros); b) teoria da ficção da verdade ou da verdade artificial (Savigny); c) teoria da força legal, substancial, da sentença (Pagenstecher); d) teoria da eficácia da declaração (Hellwig, Binder, Stein e outros); e) teoria da extinção da obrigação jurisdicional (Ugo Rocco) f) teoria da vontade do Estado (Chiovenda e doutrinadores alemães); g) teoria de Carnelutti e h) teoria de Liebman.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Em função de algumas destas teorias é que, por exemplo, imperava no direito medieval a máxima: "a coisa julgada faz do branco preto; origina e cria as coisas; transforma o quadrado em redondo; altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro", mais conhecida em sua forma simplificada: "a coisa julgada faz do branco, preto, e do quadrado, redondo." A sentença era tida como verdade. Chegou-se também a conceber a sentença como algo imune à injustiça: se o sucumbente não recorria, era porque ele mesmo reconhecia a justiça da decisão; e se todos os recursos eram utilizados, então a justiça era mesmo a que tinha sido consignada na sentença. Estas idéias, todavia, encontram-se ultrapassadas.

Conquanto existam muitas controvérsias entre os juristas no que se refere ao fundamento jurídico da coisa julgada, entendemos que a teoria que parece mais consentânea com a nossa época é a do italiano Enrico Tulio Liebman, segundo a qual a coisa julgada não é um dos efeitos da sentença, e sim uma qualidade especial a reforçar a sua eficácia (através da imutabilidade da sentença, como ato processual, e de seus efeitos), e sua autoridade decorre do fato de provir do Estado, cujos atos gozam da presunção de legalidade. E esta foi a teoria esposada pelo nosso Código de Processo Civil, conforme vimos antes.

A coisa julgada é própria da função jurisdicional; é o que lhe diferencia das funções legislativa e administrativa. Com a adoção da teoria da separação dos poderes, as constituições atribuíram ao Poder Judiciário a função precípua de julgar os litígios, aplicando o direito objetivo ao caso concreto de forma definitiva e coercitiva. Apenas, pois, os atos judiciais gozam dos atributos da definitividade e da coercitividade. As leis, ainda que promulgadas para vigorarem por prazo indeterminado, podem ser revogadas a qualquer momento. O mesmo ocorre, em regra, com os atos administrativos, os quais ainda podem ser anulados ex officio (Súmulas n.° 346 e 473 do STF); daí a impropriedade da expressão coisa julgada administrativa (pelo menos nos ordenamentos em que inexiste o Contencioso Administrativo).

A coisa julgada também possui um fundamento de natureza política, a respeito do qual não há discrepância doutrinária, não faltando quem asseverasse que "a coisa julgada é, em resumo, uma exigência política e não propriamente jurídica; não é de razão natural, mas sim de exigência prática." [02] Tal fundamento foi descrito com maestria pelo Prof. Moacyr Amaral Santos, na seguinte passagem:

"A verdadeira finalidade do processo, como instrumento destinado à composição da lide, é fazer justiça, pela atuação da vontade da lei ao caso concreto. Para obviar a possibilidade de injustiças, as sentenças são impugnáveis por via de recursos, que permitem o reexame do litígio e a reforma da decisão. A procura da justiça, entretanto, não pode ser indefinida, mas deve ter um limite, por exigência de ordem pública, qual seja a estabilidade dos direitos, que inexistiria se não houvesse um termo além do qual a sentença se tornou imutável." [03]

Jorge Lafayette chega a relatar que "a existência de uma ordem jurídica em que seja desconhecida a coisa julgada é perfeitamente possível, como, aliás, acontecia no antigo direito norueguês (apud Couture), não obstante constitua um dos fundamentos básicos e fundamentais, no direito processual contemporâneo" [04], por ser a segurança jurídica inerente ao Estado de Direito.

Portanto, a coisa julgada material visa impedir que os litígios se eternizem, o que seria nefasto não só às partes, mas à toda a sociedade, e ainda colocaria em xeque a própria autoridade (poder) do órgão julgador.


3. Da necessidade de se relativizar a coisa julgada material:

Seja qual for o fundamento utilizado ao longo dos tempos para justificar a sua existência e necessidade, o certo é que a coisa julgada material sempre foi vista como algo absoluto, intocável, um verdadeiro dogma.

Esta intangibilidade começou a ser questionada quando eméritos juristas (aqui incluídos os que integram o Judiciário na realização de seu mister) se depararam com casos absurdos, teratológicos, protegidos pelo manto da coisa soberanamente julgada.

Dentre os casos que tiveram o condão de provocar a necessidade de se reestudar a coisa julgada, importa elencarmos os seguintes:

- Decisão judicial transitada em julgado, prolatada quando inexistia o exame de DNA ou quando o seu uso ainda era bastante restrito, que tenha declarado ou negado a paternidade de alguém e, posteriormente, descobre-se, com a realização do exame, que no primeiro caso a paternidade inexistia e no segundo, ela existia. Estas pessoas deveriam permanecer ligadas por um vínculo artificial em nome da segurança jurídica?

Em maio de 1998, instado a se manifestar, o Superior Tribunal de Justiça verberou:

"Ação de negativa de paternidade. Exame pelo DNA posterior ao processo de investigação de paternidade. Coisa julgada.

1. Seria terrificante para o exercício da jurisdição que fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada que confere ao processo judicial força para garantir a convivência social, dirimindo os conflitos existentes. Se, fora dos casos nos quais a própria lei retira a força da coisa julgada, pudesse o magistrado abrir as comportas dos feitos já julgados para rever as decisões não haveria como vencer o caos social que se instalaria. A regra do art. 468 do Código de Processo Civil é libertadora. Ela assegura que o exercício da jurisdição completa-se com o último julgado, que se torna inatingível, insuscetível de modificação. E a sabedoria do Código é revelada pelas amplas possibilidades recursais e, até mesmo, pela abertura da via rescisória naqueles casos precisos que estão elencados no art. 485.

2. Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada.

3. Recurso Especial conhecido e provido. Por unanimidade, conhecer do Recurso Especial e dar-lhe provimento." [05]

Em junho de 2001, o Superior Tribunal de Justiça já havia temperado seu posicionamento, consoante o aresto a seguir ementado:

"Processo civil. Investigação de paternidade. Repetição de ação anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas. Coisa julgada. Mitigação. Doutrina. Precedentes. Direito de família. Evolução. Recurso acolhido.

(...)

III. A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, ‘a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua modificação se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem que estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade’.

IV. Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum." [06]

E a jurisprudência dominante é no sentido de ser possível a revisão do julgado em casos deste jaez. Existe, inclusive, um Projeto de Lei (n.° 116/2001) no Senado Federal que visa alterar a Lei n.° 8.560/92 que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências. A mudança consiste em afastar a incidência da coisa julgada material sobre as sentenças e/ou acórdãos prolatados sem a realização do exame de DNA.

O valor que hoje se atribui à paternidade biológica explica esta tendência. É o que se depreende do seguinte excerto tirado da justificativa do Projeto aludido:

"A sociedade deste novo século não aceita mais a dúvida sobre a paternidade, que, no século passado, por ser motivo de vergonha, alcançava na jurisprudência sua principal proteção. Primeiro, foi proibido questionar e, depois, foi proibido rever os julgados sobre a paternidade, sempre baseados em frágil prova testemunhal.

Atualmente, toda aquela filosofia está superada pela entidade familiar, instituto reconhecido na Constituição e em leis que a protegem (Leis n.ºs 8.971, de 1994, e 9.278, de 1996). Investigantes e investigados, hoje, inobstante o estado civil, querem conhecer seus verdadeiros vínculos parentais e, por isso, já não faz sentido manter a filiação como coisa julgada ou proibir a revisão de sua prova." [07]

- A Fazenda Pública do Estado de São Paulo, vencida em ação de desapropriação indireta, celebrou acordo com os vencedores; após o pagamento de algumas parcelas, descobriu-se que o terreno sempre pertenceu ao Estado. Quid iuris? O Superior Tribunal de Justiça entendeu possível a propositura de uma ação declaratória de nulidade cumulada com repetição de indébito, quando do julgamento do REsp n.° 240.712/SP. Em sua razão de decidir, o Ministro Rel. José Delgado consignou:

"Não posso conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa julgada quando ela atenta contra a moralidade, legalidade, contra os princípios maiores da Constituição Federal e contra a realidade imposta pela natureza. Não posso aceitar, em sã consciência, que, em nome da segurança jurídica, a sentença viole a Constituição Federal, seja veículo de injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios, obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas, finalmente, que desconheça que o branco é branco, e que a vida não pode ser considerada morte, nem vice-versa." [08]

- O Estado do Ceará vem enfrentando uma séria questão fundiária. Trata-se de uma área de preservação permanente destinada à construção do Parque do Cocó. O Estado não efetivou as desapropriações. Os supostos proprietários moveram, então, várias ações de desapropriação indireta, algumas já com o trânsito em julgado. O Judiciário, pressionado por fortes interesses econômicos, vem condenando o Estado a pagar indenizações milionárias.

[09] Indaga-se: a coisa julgada deve permanecer incólume mesmo ante esta flagrante violação ao art. 5°, XXIV (justa indenização), da CF/88? O malferimento ocorre porque este dispositivo é bifronte, ou seja, visa impedir que o Estado pague uma indenização aquém do valor real do imóvel, bem como que o mesmo seja obrigado a pagar além do valor devido. Esta última proibição decorre da indisponibilidade do patrimônio público contida no princípio da moralidade administrativa.

__Decisão fulcrada em lei que teve sua inconstitucionalidade declarada pelo STF, em sede de controle concentrado, supervenientemente ao seu trânsito em julgado. O prazo de 02 anos (ação rescisória) tem o condão de sanar o vício da inconstitucionalidade?

__Ação civil pública julgada improcedente por entender que o resíduo emitido por fábrica é inócuo ao meio ambiente (vejam que não se trata de improcedência por falta de provas, hipótese em que, nas ações coletivas, não se forma a coisa julgada). Empós o trânsito em julgado e vencida a oportunidade da rescisória, descobre-se que as perícias foram fraudulentas; ou, então, a ciência mais tarde demonstra a toxicidade do resíduo. A fábrica tem o direito de permanecer poluindo o meio ambiente? (este exemplo foi apenas cogitado por Hugo Nigro Mazzilli) [10]. Utilizando-se a mesma linha de raciocínio, pode-se também invocar o caso dos alimentos transgênicos.

Do conflito travado entre a segurança jurídica e outros valores albergados pelo nosso ordenamento jurídico (podendo estes serem representados pelo valor justiça), chega-se facilmente à ilação de que aquela não é um valor absoluto. É mesmo de total impropriedade falar-se em algo absoluto no Direito. Também não se está a dizer que segurança jurídica e justiça sejam ontologicamente antagônicos, porquanto sem um mínimo de segurança jurídica não é possível haver justiça.

Portanto, defende-se apenas que em determinadas circunstâncias a segurança jurídica tem que ceder espaço a outros valores. Em outras palavras, "não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas." [11]

Assim, se a coisa julgada constitui uma das garantias do direito fundamental à segurança jurídica e se esta não é algo absoluto, logo, aquela também não é. Não se busca com isso eliminar a coisa julgada ou tornar regra o seu afastamento. O Prof. Cândido Rangel Dinamarco, com sua sabedoria de sempre, elucida isto:

"A linha proposta não vai ao ponto insensato de minar imprudentemente a auctoritas rei judicatae ou transgredir sistematicamente o que a seu respeito assegura a Constituição Federal e dispõe a lei. Propõe-se apenas um trato extraordinário destinado a situações extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição – com a consciência de que providências destinadas a esse objetivo devem ser tão excepcionais quanto é a ocorrência desses graves inconvenientes. Não me move o intuito de propor uma insensata inversão, para que a garantia da coisa julgada passasse a operar em casos raros e a sua infringência se tornasse regra geral." [12]

Sua posição apoia-se, portanto, "no equilíbrio (...) entre duas exigências opostas mas conciliáveis – ou seja, entre a exigência de certeza ou segurança, que a autoridade da coisa julgada prestigia, e a de justiça e legitimidade das decisões, que aconselha não radicalizar essa autoridade" [13] – cuja síntese é "o processo deve ser realizado e produzir resultados estáveis tão logo quanto possível, sem que com isso se impeça ou prejudique a justiça dos resultados que ele produzirá." [14]

Mas, certamente, esta não foi a primeira vez que os operadores do Direito se depararam com sentenças injustas, aberrantes. Afinal, desde que a coisa julgada existe é possível se constatar este fenômeno. Então, por que só agora veio a lume esta idéia de se relativizar a coisa julgada material?

A Ciência do Direito Processual, em seu terceiro momento metodológico, repudia a idéia de que o processo seja um mero instrumento técnico (assertiva que não vai ao ponto de querer que o processualista descure o rigor científico de sua matéria). Já não basta chegar a uma solução do caso, há que se exigir que tal decisão tenha sido fruto de um procedimento justo e que ela própria esteja permeada do sentimento de justiça. Não mais se admite que o juiz seja apenas "a boca inanimada da lei". Que o resultado do processo seja entregue à sorte da iniciativa (ou da falta de iniciativa) das partes (imparcialidade não se confunde com neutralidade). Enfim, o processo deve funcionar como forma de acesso a uma ordem jurídica justa (art. 5°, XXXV, da CF/88). É claro que, em contrapartida, existe um Poder Judiciário estruturado de forma arcaica e deficiente, a dificultar a consecução de tal desiderato.

Os institutos processuais foram concebidos para resguardar interesses meramente individuais e, na maioria, disponíveis, não se prestando, assim, a tutelar com eficácia os direitos individuais indisponíveis, os sociais e os coletivos cada vez mais crescentes (Isto talvez explique o exíguo prazo da ação rescisória estabelecido para todas as hipóteses de rescindibilidade). [15]

O constitucionalismo consolidou-se (a Constituição já não é mais vista como uma carta de intenções, não faltando quem defenda até a normatividade do seu preâmbulo), a ponto de o controle de constitucionalidade ser hoje objeto de estudo profundo de muitos doutrinadores, precisamente por ser o meio de se garantir a supremacia da Constituição. E o constitucionalismo moderno tem sido marcado pela elevação de um maior rol de direitos e garantias à categoria de normas constitucionais, o que reforça a importância de se garantir a preeminência constitucional.

Por constituírem uma lapidar síntese, importa transcrevermos as seguintes palavras do Mestre Cândido Rangel Dinamarco:

"A publicização do direito processual é, pois, forte tendência metodológica da atualidade, alimentada pelo constitucionalismo que se implantou a fundo entre os processualistas contemporâneos; tanto quanto este método, que em si constitui também uma tendência universal, ela retoma à firme tendência central no sentido de entender e tratar o processo como instrumento a serviço dos valores que são objeto das atenções da ordem jurídico-substancial." [15]

Corolário de tudo isto é o trabalho de revisitação dos institutos processuais clássicos, a ser realizado por todos que lidam com o Direito, com o objetivo de adaptá-los ao nosso tempo.

É, pois, neste contexto publicístico, de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, que a idéia de se flexibilizar a coisa julgada material encontra um ambiente propício ao seu florescimento.

Vale consignar que isto é um fenômeno que ocorre também em outros países, mas cuja análise torna-se inviável neste trabalho devido à sua reconhecida limitação, merecendo destacar apenas que a cultura jurídica anglo-americana, segundo o Prof. Dinamarco, aceita com mais facilidade a relativização da coisa julgada do que os países de origem romano-germânica.

Mas, nascida da análise de casos concretos (método indutivo), a grande dificuldade que se tem é a de se conferir uma sistematização à teoria da relativização da coisa julgada, isto é, em se saber, objetivamente, quais as hipóteses que autorizam o abrandamento dos rigores da coisa julgada.

E foi deste esforço que surgiu a teoria da coisa julgada inconstitucional como um dos desdobramentos da teoria da relativização da coisa julgada material.

Sobre a autora
Gislene Frota Lima

advogada, analista previdenciária em Sobral (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gislene Frota. A coisa julgada inconstitucional no Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1038, 5 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8354. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Monografia elaborada para obtenção do título de bacharel em Direito pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), sob a orientação do Prof. Emilio de Medeiros Viana.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!