4. A Coisa Julgada Inconstitucional:
Conquanto ao longo da história se tenha reconhecido a existência de normas superiores e inferiores, foi graças a Hans Kelsen que a Ciência do Direito ganhou o mais completo estudo acerca do escalonamento hierárquico das normas jurídicas (Teoria Pura do Direito).
Com espeque em seus ensinamentos, podemos dizer, singelamente, que o ordenamento jurídico pode ser representado por uma pirâmide, em cuja base encontram-se as normas específicas (aqui incluída a sentença judicial), as quais são as mais numerosas; na parte intermédia, acham-se as normas dotadas de maior generalidade e abstração; e no ápice, localiza-se a Lei Hipotética Fundamental, a quem compete conferir unidade e fundamento a todo o sistema. Se a olharmos de baixo para cima, veremos que as normas vão diminuindo de quantidade e adquirindo cada vez mais um caráter abstrato e geral. Invertendo-se a direção, inverte-se o resultado. Enfim, as normas inferiores retiram seu fundamento de validade das normas superiores.
A Lei Hipotética Fundamental não é a Constituição. Ela não se encontra explícita, é apenas pressuposta para dar funcionamento ao sistema, e pode ser traduzida por: Cumpra-se a Constituição!
Não obstante, por ser a Lei Hipotética Fundamental uma mera criação com o escopo de ser uma espécie de "primeiro motor", podemos dizer que a Constituição é a Lei Magna, a Lei Fundamental, a Suprema Lei.
E foi com o desiderato de garantir a supremacia da Constituição que foram criados os sistemas de controle de constitucionalidade (difuso, concentrado e misto), através dos quais averigua-se a conformidade, tanto no aspecto formal (incluindo o orgânico) quanto no material, de uma norma com a Constituição. E a conseqüência que o vício da inconstitucionalidade acarreta à norma é o seu banimento do ordenamento jurídico.
Embora por este sistema a sentença judicial também deva obediência à Constituição Federal, o certo é que o controle de constitucionalidade sempre teve como objeto (ou pelo menos como alvo principal) os atos emanados do Poder Legislativo e do Poder Executivo, ficando os atos do Poder Judiciário quase que imunes a tal controle. As palavras do Prof. Humberto Theodoro Júnior expressam melhor este fato, para o qual oferece ainda uma explicação:
"Com efeito, institucionalizou-se o mito da impermeabilidade das decisões judiciais, isto é, de sua imunidade a ataques, ainda que agasalhassem inconstitucionalidade, especialmente após operada a coisa julgada e ultrapassado, nos variados ordenamentos, o prazo para a sua impugnação. A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores de certeza e segurança perseguidos no ideal Estado de Direito. Consagra-se, assim, o princípio da intangibilidade da coisa julgada, visto, durante vários anos, como dotado de caráter absoluto.
Tal é o resultado da idéia, data vênia equivocada e largamente difundida, de que o Poder Judiciário se limita a executar a lei, sendo, destarte, defensor máximo dos direitos e garantias assegurados na própria Constituição." [16]
Não obstante, é inegável que o Poder Judiciário pode proferir decisões que contrariam direta ou indiretamente a Constituição, tendo em vista principalmente que hoje o método literal é considerado o mais pobre de todos, bem assim o incremento (necessário) dos poderes do juiz a que se assiste nas últimas décadas. Negar isto importa em admitir que o Judiciário esteja acima da Constituição, representando um verdadeiro poder constituinte paralelo, ou, no mínimo, que ele é superior aos demais poderes, indo de encontro assim ao contido no art. 2° da CF/88.
O nosso ordenamento jurídico reconhece a possibilidade da existência de sentenças inconstitucionais quando instituiu o Recurso Extraordinário (art. 102, III, da CF/88). Ocorre que este controle é exercido apenas no curso do processo, sem falar que, por vários motivos (até mesmo pelas excessivas exigências colocadas pelo STF como requisitos à admissibilidade recursal), este remédio não é utilizado.
Assim, o que fazer ante uma decisão judicial, protegida pelo manto da coisa julgada material, que viola a Constituição, seja porque aplicou lei que foi posteriormente declarada inconstitucional, seja porque negou aplicação a uma norma constitucional por considerá-la inconstitucional, seja ainda porque malferiu normas diretamente colocadas na Constituição?
Ora, a coisa julgada material, mesmo com o seu poder de sanação geral e com a sua eficácia preclusiva em relação ao deduzido e ao dedutível (art. 474 do CPC), não tem o condão de
eliminar a inconstitucionalidade contida na sentença, por ser este o vício mais grave de que um ato jurídico pode padecer. Aceitar o contrário é ferir outra vez a Constituição, porquanto, a pretexto de evitar a eternização de litígios, estar-se-ia eternizando inconstitucionalides. Daí a razão de se falar em coisa julgada inconstitucional. Mas esta explicação é melhor formulada pelo Prof. Cândido Dinamarco quando este diz que é:
"(...) é inconstitucional a leitura clássica da garantia da coisa julgada, ou seja, sua leitura com a crença de que ela fosse algo absoluto e, como era hábito dizer, capaz de fazer do preto, branco e do quadrado, redondo. A irrecorribilidade de uma sentença não apaga a inconstitucionalidade daqueles resultados substanciais política ou socialmente ilegítimos, que a Constituição repudia. Daí a propriedade e a legitimidade sistemática da locução, aparentemente paradoxal, coisa julgada inconstitucional." [17]
Com base nesta premissa, o desafio dos doutrinadores é precisamente o de estender o controle de constitucionalidade às sentenças com trânsito em julgado, construindo para isto um mecanismo adequado.
Se entendermos a expressão "lei", contida na quinta hipótese de rescindibilidade elencada no art. 485 do Código Buzaid (violação à literal disposição de lei), em seu sentido lato, para abranger também a Constituição, percebe-se que é perfeitamente possível o manejo da ação rescisória para elidir o vício da inconstitucionalidade.
Para acolherem a ação rescisória proposta, os Tribunais têm, inclusive, afastado, por reiteradas vezes, a incidência da Súmula de n.° 343 do STF, quando se tratar de matéria constitucional, com base no entendimento de que o reconhecimento da inconstitucionalidade não se iguala à mera mudança de interpretação de um preceito legal. A lei ou é válida ou é inválida.
Apesar de ser possível expungir do ordenamento a decisão judicial que viola a Constituição, conforme foi demonstrado acima, por meio da ação rescisória, a qual até ganhou um reforço para o seu manuseio com o entendimento do afastamento da Súmula 343 do STF, os doutrinadores que estudam o assunto em apreço, em sua maioria, lançam vorazes críticas a este expediente, motivo pelo qual propõem a utilização de outros mecanismos processuais na consecução de tal desiderato.
4.1 - Os instrumentos processuais de controle propostos:
A principal crítica que se opõem à ação rescisória, como mecanismo apto a elidir a inconstitucionalidade da decisão judicial, concerne à sua limitação temporal. De certo, "o direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão" (art. 495 do Código Buzaid). Transcorrido este prazo, tem-se a coisa soberanamente julgada.
A objeção parte do raciocínio de que a inconstitucionalidade é o vício mais grave que um ato jurídico pode conter, o qual tem o condão de fulminá-lo com a nulidade absoluta. Rechaça-se aqui, pois, a corrente doutrinária extremada e minoritária que entende que a inconstitucionalidade acarreta não a invalidade congênita do ato, mas sim a sua inexistência, porquanto a sentença inconstitucional reúne os elementos necessários à sua formação, previstos no art. 458 do CPC. Destarte, a inconstitucionalidade apenas retira a sua validade. Corroborando esta assertiva, eis a acertada lição do Prof. Humberto Theodoro Júnior:
"Uma decisão judicial que viole a Constituição, ao contrário do que sustentam alguns, não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade mera aparência de ato. (...) Mas, contrapondo-se a (sic) exigência absoluta da ordem constitucional, falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos para os quais foi praticado.
Assim, embora existente, a exemplo do que se dá com a lei inconstitucional, o ato judicial é nulo, estando sujeito em regra geral, aos princípios aplicáveis a qualquer (sic) outros atos jurídicos inconstitucionais." [18]
Assim, não seria possível a convalidação de um ato eivado de inconstitucionalidade, o que ocorreria caso a declaração deste vício ficasse sujeita ao prazo decadencial de dois anos.
Este entendimento encontra apoio, por meio da analogia, no fato de o controle de constitucionalidade dos atos legislativos não se encontrar condicionado a prazo nenhum.
Seguindo esta linha, "a eleição da via da rescisória, ainda que inadequada, para a argüição da coisa julgada inconstitucional", não significaria "a sua submissão indistinta ao mesmo regime da coisa julgada ilegal, de modo a que, ultrapassado o prazo de dois anos para o manejo daquela ação, impossível o seu desfazimento. Do contrário seria equiparar a inconstitucionalidade à ilegalidade, o que é não só inconveniente como avilta o sistema e valores da Constituição." São as palavras de Humberto Theodoro Júnior [19], o qual chega ao ponto de conceber a idéia de que a sentença inconstitucional não transita em julgado, ou seja, não haveria a formação da coisa julgada a incidir sobre a decisão judicial inquinada. É, pois, o que assevera: "Em verdade, a coisa julgada inconstitucional, à vista de sua nulidade, reveste-se de uma aparência de coisa julgada, pelo que, a rigor, nem sequer seria necessário o uso da rescisória. Esta tem sido admitida pelo princípio da instrumentalidade e economicidade." [20]
Por entenderem que a inconstitucionalidade enseja a sua alegação em qualquer instância e a qualquer momento, bem como o seu conhecimento de ofício pelo juiz, é que estes autorizados doutrinadores, em sua maioria, advogam a subsistência no direito brasileiro da querela nullitatis, não só no caso de inexistência ou invalidade da citação inicial, mas também na hipótese de inconstitucionalidade da coisa julgada, haja vista tratar-se de um vício insanável.
José Cretella Neto, citado por Carlos Valder do Nascimento, formula um conceito da querela nullitatis que vale a pena transcrevê-lo:
"Expressão latina que significa nulidade do litígio. Indica a ação criada e utilizada na Idade Média, para impugnar a sentença, independentemente de recurso, apontada como a origem das ações autônomas de impugnação." [21]
Em bom português significa, pois, ação declaratória de nulidade da sentença (e/ou acórdão), de competência do próprio órgão julgador do processo que deu origem à decisão judicial inquinada de nulidade, e não do Tribunal a que este se encontra vinculado, como ocorre na ação rescisória.
Em razão, sobretudo, do disposto no art. 741, I, do CPC, a doutrina e a jurisprudência defendiam a sobrevivência da querela nullitatis em nosso ordenamento em uma única hipótese, qual seja, quando a citação tiver sido nula ou inexistente, mostrando-se o réu revel. É, pois, o que se infere do julgado do Superior Tribunal de Justiça abaixo colacionado:
"PROCESSUAL CIVIL – NULIDADE DA CITAÇÃO (INEXISTÊNCIA) – QUERELA NULLITATIS.
I – A tese da querela nullitatis persiste no direito positivo brasileiro, o que implica em dizer que a nulidade da sentença pode ser declarada em ação declaratória de nulidade, eis, que, sem a citação, o processo, vale falar, a relação jurídica processual não se constitui nem validamente se desenvolve. Nem, por outro lado, a sentença transita em julgado, podendo, a qualquer tempo, ser declarada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução, se for o caso.
II – Recurso não conhecido." [22]
Do exposto, resulta que por dois modos se poderá obter a declaração de nulidade do processo em que falta a citação inicial, ou quando esta for nula, desde que tenha corrido à revelia: a) ou por embargos de devedor, a fim de desconstituir a eficácia do título executivo (Código de Processo Civil, art. 741, I); b) ou por ação declaratória, nomeadamente se a sentença é desprovida de execução forçada (Código de Processo Civil, art. 4°)."
Não obstante o entendimento, acima explanado, de que dois são os remédios a serem utilizados (ação declaratória de nulidade/querela nullitatis e embargos à execução), vozes autorizadas na doutrina pugnavam pela ampliação destes mecanismos processuais, de que é exemplo a lição de Liebman, extraída deste mesmo aresto:
"Qual seria, em verdade, o processo adequado para a declaração de tal nulidade? Não há outra resposta que esta: todo e qualquer processo é adequado para constatar e declarar que um julgado meramente aparente é na realidade inexistente e de nenhum efeito. A nulidade pode ser alegada em defesa contra quem pretende tirar da sentença um efeito qualquer; assim como pode ser pleiteada em processo principal, meramente declaratória." [23]
Este mesmo amplo leque de possibilidades vem, por analogia e pelo que dispõe o novel parágrafo único do art. 741 do CPC, sendo defendido pela doutrina e aceito pelos juizes e tribunais como apto a afastar a mácula da inconstitucionalide da coisa julgada. Eis o relato do Prof. Cândido Dinamarco:
"A escolha dos caminhos adequados à infringência da coisa julgada em cada caso concreto é um problema bem menor e de solução não muito difícil, a partir de quando se aceite a tese da relativização dessa autoridade. (...) Tomo a liberdade de tornar à lição de Pontes de Miranda e do leque de possibilidades que sugere, como: a) a propositura de nova demanda igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada; b) a resistência à execução, por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo executivo; e c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive em peças defensivas.
(...)
A casuística levantada demonstra que os tribunais não têm sido particularmente exigentes quanto à escolha do remédio técnico-processual ou da via processual ou procedimental adequada ao afastamento da coisa julgada nos casos em exame." [24]
Despida de uma preocupação com o rigor científico e com as conseqüências daí advindas, a doutrina majoritária entende cabível, portanto, a utilização dos seguintes instrumentos processuais de controle: ação rescisória, embargos à execução, exceção de pré-executividade, ação declaratória de nulidade, a simples renovação da ação (desconsiderando a coisa julgada). .. Não faltando quem autorize o uso do Remédio Heróico, como o faz Leonardo de Faria Beraldo:
"É pacífico e sumulado na jurisprudência que não é cabível mandado de segurança contra sentença passada em julgado. Entretanto, pensamos que, pelo fato de o mandado de segurança ter um rito bastante célere, ele também poderia ser um caminho à proteção de uma grave ameaça, desde que a pessoa comprove, de plano, seu direito líquido e certo." [25]
Com isso, outorga-se a todo e qualquer juiz um poder geral de controle da constitucionalidade da coisa julgada.
4.2 – Diferença entre Relativização da coisa julgada e Coisa julgada inconstitucional:
Conforme já foi consignado, o nó górdio da questão consiste em saber de forma objetiva quais as hipóteses que devem ensejar o afastamento da coisa soberanamente julgada.
Não obstante existam muitas divergências a respeito, entendemos que Relativização da coisa julgada é algo mais amplo que Coisa julgada inconstitucional. A primeira é gênero, de que a segunda é espécie. Uma das hipóteses em que a coisa julgada poderá ser relativizada é, pois, quando a decisão julgada contiver a mácula da inconstitucionalidade.
Entendemos, ainda, que a coisa julgada inconstitucional é constada através do cotejo entre a sentença (e/ou acórdão) e a Constituição. Ou seja, é uma questão de interpretação e aplicação do Direito. Sempre foi assim quando se fala em controle de constitucionalidade das normas, não havendo motivo para ser diferente quando esse controle tiver como objeto sentenças judiciais.
Destarte, nos casos em que, graças ao avanço da ciência ou por qualquer outro motivo, ocorre uma importante descoberta de cunho fático, superveniente ao trânsito em julgado, não há como atribuir à sentença a pecha da inconstitucionalidade, posto que quando da sua prolatação o Direito foi aplicado corretamente. Apenas o juiz não dispunha dos meios probatórios necessários à materialização da justiça. Isto não quer dizer, todavia, que a coisa julgada não deva ser flexibilizada, afinal a descoberta da verdade real tornou a sentença injusta ou teratológica. Apenas o fundamento a ser utilizado deverá ser outro que não o da constitucionalidade, podendo ser, por exemplo, o da proporcionalidade.
Desta forma, não podemos dizer, por exemplo, que a sentença proferida quando não havia o exame de DNA ou quando o seu uso era bastante restrito seja inconstitucional só porque a realização a posteriori deste tenha demonstrado a sua inexatidão. Nem que a sentença que condenou a Fazenda Pública de São Paulo na ação de desapropriação indireta seja inconstitucional em razão da descoberta superveniente de o terreno sempre ter pertencido ao erário público paulistano.
A sentença viola a Constituição quando, por exemplo, aplica lei que teve sua inconstitucionalidade declarada pelo STF ou quando vai de encontro direto às normas de envergadura constitucional. Acreditamos, portanto, que tenha sido esta a concepção de coisa julgada inconstitucional a adotada pelo CPC em seu art. 741, parágrafo único. Passemos, então, à sua análise, ainda que de forma superficial.