UM CASO CONCRETO DE APLICABILIDADE DO TETO REMUNERATÓRIO
Rogério Tadeu Romano
Segundo o Esquerda Diário, em artigo datado de 25 de maio do corrente ano, “o ministério da Defesa, obteve junto à Advocacia-Geral da União (AGU) um aval para que os militares que acumulam cargos ao servir ao governo Bolsonaro possam acumular ganhos e receber salários superiores ao teto constitucional, hoje estabelecido em nada menos do que R$ 39 mil. O parecer que autoriza a medida foi assinado em 9 de abril por André Mendonça, que nesse momento era advogado-geral da União. Isso permitiria os ganhos acima do teto para militares em toda a administração pública. Em 29 de abril, contudo, o ministério recuou do pedido temporariamente em razão da pandemia e pediu a suspensão do parecer.
Caso a medida seja implementada, a análise do teto salarial ocorrerá para cada salário individualmente, no caso de militares que acumulem cargos. Se um General, por exemplo, ganha R$ 30 mil em seu cargo no Exército, e R$ 25 mil num cargo no governo, se consideraria que nenhum dos dois salários excede o teto, e ele poderia receber R$ 55 mil por mês.”
Segundo o Estadão, em sua edição, no dia 29 de junho de 2020, “em abril, a Advocacia-Geral da União emitiu parecer no qual considera que, para os militares, a regra do abate-teto incidirá sobre cada um dos vencimentos que acumulam e não mais sobre o somatório deles. Ou seja, se um militar recebe R$ 20.000 das Forças e R$ 39.200 do Executivo, ele poderá embolsar R$ 59.200 por mês, uma vez que cada uma das rendas não ultrapassa o teto”.
A matéria da acumulação de vencimentos diante do teto remuneratório já foi objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal.
Falo sobre o julgamento dos RE 602043 e RE 612975.
O RE 602043 diz respeito à aplicabilidade do teto remuneratório previsto no inciso XI do artigo 37, da CF, com redação dada pela Emenda Constitucional (EC) 41/2003, à soma das remunerações provenientes da cumulação de dois cargos públicos privativos de médico. O caso teve origem em mandado de segurança impetrado por servidor público estadual que atuava como médico na Secretaria de Saúde e na Secretaria de Justiça e Segurança Pública. Ao julgar a ação, o TJ-MT assentou a ilegitimidade do ato do secretário de Administração do Estado que restringiu a remuneração acumulada dos dois cargos ao teto do subsídio do governador.
Por sua vez, o RE 612975 refere-se à aplicabilidade do teto remuneratório sobre parcelas de aposentadorias percebidas cumulativamente. Um tenente-coronel da reserva da PM e que também exercia o cargo de odontólogo, nível superior do SUS vinculado à Secretaria de Estado de Saúde, impetrou mandado de segurança no TJ-MT contra determinação do secretário de Administração de Mato Grosso no sentido da retenção de parte dos proventos, em razão da aplicação do teto remuneratório. Ao julgar a questão, o TJ-MT entendeu que o teto deve ser aplicado, isoladamente, a cada uma das aposentadorias licitamente recebidas, e não ao somatório das remunerações. Assentou que, no caso da acumulação de cargos públicos do autor, a verba remuneratória percebida por cada cargo ocupado não ultrapassa o montante recebido pelo governador.
O relator considerou inconstitucional a interpretação segundo a qual o texto da EC 41/2003 abrange também situações jurídicas em que a acumulação é legítima, porque prevista na própria Constituição Federal. Para o ministro, pensar o contrário seria o mesmo que “o Estado dar com uma das mãos e retirar com a outra”.
De acordo com o relator, o entendimento da Corte sobre a matéria “não derruba o teto”. Ele considerou que o teto remuneratório continua a proteger a Administração Pública, “só que tomado de uma forma sistemática e, portanto, não incompatível com um ditame constitucional que viabiliza a cumulação de cargos”.
Por decisão majoritária, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) negou provimento a dois Recursos Extraordinários (REs 602043 e 612975) em que o Estado do Mato Grosso questionava decisões do Tribunal de Justiça local (TJ-MT) contrárias à aplicação do teto na remuneração acumulada de dois cargos públicos exercidos pelo mesmo servidor. Os ministros entenderam que deve ser aplicado o teto remuneratório constitucional de forma isolada para cada cargo público acumulado, nas formas autorizadas pela Constituição. O tema debatido nos recursos teve repercussão geral reconhecida.
O Plenário aprovou a seguinte tese para efeito de repercussão geral, sugerida pelo relator da matéria, ministro Marco Aurélio: “Nos casos autorizados, constitucionalmente, de acumulação de cargos, empregos e funções, a incidência do artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal, pressupõe consideração de cada um dos vínculos formalizados, afastada a observância do teto remuneratório quanto ao somatório dos ganhos do agente público”.
Mas a questão dos vencimentos dos militares não para por aí.
Com vencimentos brutos que podem chegar aos R$ 50 mil, um grupo de militares terá a partir do mês que vem aumento de até R$ 1,6 mil nos rendimentos. O reajuste ocorrerá em um dos penduricalhos que elevam o soldo e beneficiará, principalmente, o oficialato das Forças Armadas.
Com a passagem para a reserva a partir de 2020, eles ainda fazem jus a outro benefício ampliado na reforma, a chamada "ajuda de custo" na passagem para a inatividade. O pagamento dobrou e passou a ser oito vezes.
O reajuste de até 73% na bonificação salarial concedida aos militares das Forças Armadas que fazem cursos ao longo da carreira custará R$ 26,54 bilhões em cincos anos. Chamado de “adicional de habilitação”, o “penduricalho” será incorporado na folha de pagamento de julho dos militares, com impacto de R$ 1,3 bilhão neste ano, em plena pandemia do novo coronavírus, de acordo com nota técnica do Ministério da Economia e dados do Ministério da Defesa, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Segundo a Gaúcha ZH Política, “chamada de "adicional de habilitação", a benesse foi criada ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso e é dada para quem fez cursos ao longo da carreira. O valor era o mesmo desde 2001. No ano passado, Bolsonaro autorizou o reajuste para até 73% sobre o soldo, em quatro etapas. Na primeira delas, o penduricalho para quem fez "curso de altos estudos", por exemplo, subirá a partir de julho de 30% para até 42% sobre o valor do soldo. O aumento vale para militares da ativa e da reserva.
Ainda a mesma Gaúcha ZH Política nos informa que “com a passagem para a reserva a partir de 2020, eles ainda fazem jus a outro benefício ampliado na reforma, a chamada "ajuda de custo" na passagem para a inatividade. O pagamento dobrou e passou a ser oito vezes.”
Com isso, um general de quatro estrelas, topo hierárquico das três Forças, passará a somar R$ 5,6 mil por mês ao soldo de R$ 13,4 mil. Até então, o adicional era de cerca de R$ 4 mil mensais. Eles ainda acumulam outros adicionais que elevam o salário para, pelo menos, R$ 29,7 mil — a remuneração pode subir, a depender da formação, permanência em serviço, atividades e local de trabalho.”
Aplica-se a regra do abate-teto. O redutor é aplicado porque servidores não podem acumular vencimentos além de R$ 39,2 mil, valor do salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ora, isso pode transparecer um reajuste e reajuste somente se dá por lei.
A medida é forma enviesada de reajustar os vencimentos dos militares e deve ser objeto de contestação no Judiciário.
A fixação de vencimentos e seu aumento competem ao Poder Legislativo, que examina a proposta de reajuste apresentada pelo Poder Executivo (RTJ 54/384). Entende-se que ao Judiciário somente cabe examinar a lesão ao princípio constitucional da igualdade. Não cabe o exame da justa ou injusta situação do servidor, que deveria estar no nível mais alto.
A par disso, a teor do artigo 37, X, da Constituição Federal, “a revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data”.
Por revisão geral deve-se entender aquele aumento que é concedido em razão da perda do poder aquisitivo da moeda. Tal não visa a corrigir situações de injustiça ou de necessidade de revalorização profissional de determinadas carreiras mercê das alterações ocorridas no próprio mercado de trabalho, nem objetiva contraprestar pecuniariamente níveis superiores de responsabilidades advindas de reestruturações ou reclassificações funcionais.
Sendo assim, o servidor público tem garantido o reajuste anual pelo artigo 37, X, da Constituição Federal, que consagra apenas a irredutibilidade nominal dos salários, sendo inadmissível a interferência do Poder Judiciário na matéria.
A norma constitucional, prevista no artigo 37, inciso XV, da Constituição autoriza somente a irredutibilidade nominal dos vencimentos e não a irredutibilidade real, ou seja, a manutenção do poder aquisitivo de compra.
A Lei Complementar 173/2020, recém-sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, impede a concessão de aumento, vantagem, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares.
Uma vez que a hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar 101/2000 é a do estado de calamidade e que o Decreto Legislativo 6/2020 reconheceu a pandemia causada pelo Covid-19 como ocorrência dessa natureza, quer se considere em questão remuneração, qualquer auxílio, vantagem, abono, ou benefício de qualquer natureza, sua concessão é ilegal até 31/12/2021.
A medida, pois, contraria o princípio da igualdade.
Ela estabelece um instrumento arbitrário para solução do problema da seleção em concurso público.
Celso Antônio Bandeira de Mello observa que qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou alterações pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório, donde se segue que, de regra, não é o traço de diferenciação escolhido que se deve buscar algum desacato ao princípio isonômico. Todavia as discriminações legislativas são compatíveis com a cláusula igualitária apenas tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto e a desigualdade de tratamento em função dela conferida. Não basta, porém, a existência desta correlação: é ainda necessário que ela não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, São Paulo, 1978, pág. 24).
O vínculo de correlação lógica entre o fator de discriminação e a desigualdade de regime jurídico, a que alude Celso Antônio Bandeira de Mello, nada mais é do que "a proibição do arbítrio" de que falou a doutrina alemã ou a exigência da razoabilidade que tem sido utilizada pela Corte Constitucional da Itália, como cânone interpretativo para o exame da constitucionalidade das leis.
Assim deve-se acautelar com relação às chamadas desequiparações fortuitas, injustificadas, desrazoáveis. E essa ocorre sempre que não exista uma pertinência e uma coerência lógica do fator de discrímen com a diferenciação procedida.
Para Seabra Fagundes, o princípio da igualdade significa para o legislador que "ao elaborar a lei, deve reger, com iguais disposições, os mesmos ônus e as mesmas vantagens, situações idênticas, e, reciprocamente, distinguir, na repartição de encargos e benefícios, as situações que sejam entre si distintas, de sorte a quinhoá-las ou gravá-las em proporção às suas diversidades"(O princípio constitucional da igualdade perante a lei e o Poder Legislativo, RT 235/3).
Em sendo assim o valor referenciado a ser pago aos militares afronta à lei e à Constituição.
Segundo o Estadão, em reportagem, no dia 1 de julho de 2020, um outro adicional criado por Bolsonaro, o de disponibilidade militar, tem impacto previsto de R$ 2,7 bilhões por ano. Esse adicional não existia antes e engorda o salário em até 41%. Na outra ponta, a ajuda de custo na passagem para a reserva dobrou, quando havia sido projetada para atingir cerca R$ 300 milhões anuais, abaixo dos R$ 441 milhões já registrados em 2020, conforme o documento do Ministério da Economia.
A mesma lei que reajustou o “adicional de habilitação” abriu a possibilidade de contratação de militares inativos para exercerem tarefas em outros órgãos da administração pública, com um adicional de 30% da remuneração na aposentadoria. A medida tem sido criticada por facilitar a chamada militarização do serviço público na gestão Bolsonaro. O governo não informa quantos militares da reserva ocupam cargos civis no governo. O Estadão mostrou que militares da ativa no Executivo já são 2,9 mil.