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Técnica de julgamento nas hipóteses de divergência nos tribunais – Art. 942 CPC

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Agenda 13/07/2020 às 17:15

O NCPC inovou quando trouxe a técnica de julgamento do art. 942, que amplia o colegiado dos tribunais de 2ª instância em determinadas situações de divergência na turma originária. Entenda quais as divergências, doutrinárias e jurisprudenciais, que do tema derivam.

Rápida incursão nos principais critérios de interpretação das normas.

O CPC/15 inovou quando trouxe a técnica de julgamento do art. 942, pela qual se amplia o colegiado dos tribunais de 2ª instância, em determinadas situações de divergência na turma originária.  E, sendo uma novidade no nosso sistema processual, esse procedimento vem gerando intensas divergências doutrinárias e jurisprudenciais.

Para enfrentar ditas divergências e tentar trazer um pouco mais de segurança e previsibilidade na aplicação desse procedimento, deve-se interpretar o art. 942 de forma lógica e justa. Por isso, de início, é prudente destacar os principais mecanismos de interpretação das normas jurídicas.

Com efeito, pode-se, objetivamente, afirmar que a interpretação literal deve ser aplicada quando é possível aferir o sentido e o alcance da norma a partir do dado gramatical, sendo que, nestes casos, depara-se, como regra geral, com textos claros e que refletem evidentes escolhas do ente legislador.

Miguel Reale Júnior[1] bem lembra que o primeiro caminho a ser percorrido pelo intérprete passa pela interpretação gramatical. Com efeito, “a lei é uma realidade morfológica e sintática que deve ser, por conseguinte, estudada do ponto de vista gramatical. É da gramática – tomada esta palavra no seu sentido mais amplo – o primeiro caminho que o intérprete deve percorrer para dar-nos o sentido rigoroso de uma norma legal. Toda lei tem um significado e um alcance que não são dados pelo arbítrio imaginoso do intérprete, mas são, ao contrário, revelados pelo exame imparcial do texto.[2]

Já pela interpretação teleológica o exegeta tenta descobrir a intenção do legislador, a fim de que a aplicação da norma ao caso concreto a ela se ajuste. Podem, por exemplo, restar lacunas após a tentativa de interpretação literal, e que exigem esta procura pelo sentido da norma. Outras vezes, pode ser até clara a opção gramatical, mas é possível que o legislador tenha se traído na redação e, consequentemente, estabelecido aparente distância de seu propósito. A interpretação teleológica deve ser bússola a ser usada em situações como estas.

Valiosa doutrina[3] ensina que “a interpretação teleológica objetiva depreender a finalidade do modelo normativo, haja vista que a delimitação do sentido normativo requer a captação dos fins para os quais se elaborou a norma jurídica”.

E, por fim, a interpretação sistemática é aquela que insere a norma em estudo dentro de um contexto mais amplo, a fim de que ela seja aplicada em sintonia com outras fontes normativas. A norma legal pode ser clara em sua literalidade, mas destoante do sistema normativo, inclusive sob a ótica hierárquica. Em situações deste jaez, vem à tona a interpretação sistemática.

Em seu primeiro artigo, o CPC/15 já coloca em destaque, de certa forma, a interpretação sistemática, chamando a atenção ao fato de que ele próprio deve ser “interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”. Aliás, nesse sentido, o mesmo diploma legal, em seu artigo 489 § 2º[4], alerta o juiz sobre a possibilidade de haver conflito entre normas – não apenas entre regras legais -, cabendo-lhe utilizar do critério de ponderação, sendo viável até mesmo fazer prevalecer um princípio em detrimento da regra legal.

A doutrina do Ministro Eros Grau chega a ser enfática: “... não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado algum”[5]

É lógico que estes critérios não são colocados em prática de forma separada e estanque. Eles se mesclam para que se possa aferir o real sentido e alcance da norma em estudo.

Porém, deve o exegeta, dentro do possível, tentar seguir um roteiro mais objetivo. Com efeito, até mesmo sob a ótica da separação dos poderes, deve tentar encontrar didaticamente, primeiro, a clara opção do legislador (interpretação literal – princípio da legalidade – proposição do Poder Legislativo), observando, desde já, se ela não ofende normas superiores e/ou o próprio sistema normativo como um todo. Se houver alguma falta de sintonia apurada neste sistema comparativo, o Judiciário fará a adaptação quando da aplicação da norma ao caso concreto. Ainda havendo lacunas ou dúvidas sobre esta real opção do legislador, vem a calhar a interpretação teleológica, para que o Judiciário, do alto de sua competência constitucional, aplique a norma de acordo com o que foi idealizado legislador à luz da realidade social e jurídica.

Em assim sendo, especificamente no que tange ao art. 942 CPC, compete ao exegeta aferir a vontade clara e insofismável do legislador quanto às hipóteses de ampliação do colegiado (interpretação literal). Não se justifica, em princípio, qualquer ampliação em hipóteses onde se verifica clareza na escolha do legislador. Mormente no campo processual, tais ampliações geram insegurança aos contendores.

Seguindo em sua pretensão de bem interpretar a disposição legal, compete ao estudioso verificar a realidade em que se situa, histórica e axiologicamente, o procedimento em pauta, a fim de que eventuais lacunas sejam preenchidas por meio da aferição sobre o real intento do legislador (interpretação teleológica). Vale dizer que o exegeta deve, para facilitar sua compreensão sobre a norma legal, entender o que quis alcançar, em prol do bem comum, o legislador por meio desta inovação. Não é sem razão, a tal propósito, que a própria Lei de Introdução à Normas de Direito Brasileiro – art. 5º - dispõe que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. 

O intérprete poderá aperfeiçoar a sua compreensão sobre o alcance e procedimento correto do art. 942 CPC, por meio de uma análise ampla, pela qual situará o instituto em tela no âmbito maior do novo diploma processual, sobretudo atento aos princípios por este adotados (interpretação sistemática).

Neste particular, o estudo do art. 942 CPC deve ser feito atento às opções do legislador, aferíveis a partir da compreensão ampla de todo o sistema. Com efeito, não se pode deixar de relembrar, rapidamente, a clara determinação do CPC/15 de aniquilar o princípio do duplo grau de jurisdição, o que foi feito para valorizar a primazia do mérito e a duração razoável do processo. A contrapartida a isso se verifica na potencialização dos princípios do efetivo contraditório e da não-surpresa e, sobretudo, na mais valia da colegialidade nos tribunais de 2º grau. Enfim, pode-se dizer que o CPC/15 tentou diminuir etapas e acelerar a passagem pela 1ª instância, na convicção de que os debates e a qualidade seriam resguardados (contraditório e não-surpresa) e que os tribunais de 2ª instância estariam em condições de efetuar amadurecidas revisões. Aliás, a importância dos julgamentos colegiados pelos tribunais alcançou o seu ápice no princípio da estabilização da jurisprudência, mormente no ponto em que este impôs efeito vinculante (art. 927 CPC) a alguns precedentes[6].

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O art. 942 CPC e o desgaste dos embargos infringentes. Sistema anterior para as hipóteses de divergência nos tribunais de 2ª instância.

Sabe-se que, no CPC/73, existia, para as hipóteses de divergência entre os julgadores quando do julgamento da apelação e da ação rescisória, a previsão dos embargos infringentes.

Tratava-se de recurso que, inicialmente, abria a oportunidade de novo debate por um colegiado maior, independente mesmo do alcance e conteúdo da divergência instaurada. Permitia-se, assim, ante a relevância do princípio do duplo grau de jurisdição e das decisões colegiadas, que a dialética fosse enriquecida com ampliação dos quóruns. As decisões colegiadas, dessa forma, seriam sempre mais aprimoradas, porque ensejariam, instaurada a divergência, a ampliação do colegiado.

Eis a redação originária do art. 530 CPC/73: Cabem embargos infringentes quando não for unânime o julgado proferido em apelação e em ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência.

Vê-se, pois, que eram cabíveis embargos infringentes, de forma quase ilimitada, bastando que a divergência ocorresse no âmbito de apelação ou ação rescisória.

Acontece que o acesso à jurisdição, fomentado pela Constituição Federal de 1988, trouxe um volume exagerado de demandas, sendo que as divergências em 2º grau de jurisdição começavam a incomodar. É que elas ensejavam a interposição dos aludidos embargos infringentes, sendo que estes, burocráticos que eram, atrasavam mais ainda a prestação jurisdicional.

Assim é que, numa das micro reformas implantadas no CPC/73, restringiu-se o cabimento dos embargos infringentes.

O art. 530 daquele códex assim passou a estabelecer: Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência. (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001).

Vê-se, da redação supra, que caberiam embargos infringentes, se, no caso da apelação, houvesse i) divergência ii) com reforma iii) da sentença iv) de mérito. Fora disso, não caberiam os embargos infringentes. Ou seja, se, por exemplo, o acórdão apenas anulasse ou mantivesse a sentença não caberiam os embargos infringentes. De igual forma, se houvesse reforma de sentença que não examinou o mérito, descabidos seriam os embargos infringentes.

Já no caso da ação rescisória, a divergência só abriria ensanchas para a interposição dos embargos infringentes, se o resultado tivesse sido de procedência do pleito inicial.

A despeito destas limitações ao cabimento dos embargos infringentes, ainda continuava a ser visto como um recurso que gerava desperdício de tempo. Aliás, verdade seja dita, a ampliação do colegiado em casos tais dava-se com a interposição do aludido recurso, ao que se seguia prazo para apresentação de contrarrazões e oitiva do MP, nas hipóteses em que tal se justificava. Além disso, havia necessidade de nova inclusão em pauta do recurso, com todos os desdobramentos procedimentais daí advindos, o que – assim afirmava a maioria – atrasava sobremaneira o julgamento final pelo tribunal.

Nesse cenário é que a comunidade jurídica viu-se na contingência de debater o tema (divergência nos tribunais), o que se intensificou na ocasião em que o novo Código Processual estava para virar uma realidade.


O art. 942 CPC. Abordagem conceitual.  Literalidade e opções claras – Descabimento de ampliações ou restrições para as hipóteses de cabimento.

Pois bem. O fato é que, ao fim do debate, prevaleceu que os embargos infringentes deveriam ser extirpados do nosso sistema. Tratava-se de recurso anacrônico e burocrático. Portanto, embora democrático, merecia ser sepultado.

Em substituição a este demorado recurso de embargos infringentes e acolhendo propostas do meio acadêmico e profissional, eis que o legislador trouxe um procedimento (ou uma técnica de julgamento). Tal técnica, inserida no ora estudado art. 942 CPC, eliminava todo o procedimento burocrático (prazos para interposição de recurso e oferecimento de contrarrazões etc...), sendo que, doravante, o colegiado ampliar-se-á, de ofício, por meio de um procedimento a ser imposto pelo presidente do colegiado.

Neste contexto, pode-se dizer que a técnica ou procedimento do art. 942 do código processual não se identifica como recurso, pois este exige ato de insurgimento da parte, sob pena da decisão ser alcançada pela preclusão ou coisa julgada. O artigo em estudo impõe, diferente disso, um procedimento a ser observado pelos julgadores, sem que, para tanto, haja um ato voluntário praticado pela parte.

Prevê o art. 942 um procedimento pelo qual o órgão julgador, ex officio[7], nas hipóteses de divergência ali mencionadas, ampliará a sua composição em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurando, assim, maior diálogo entre os sujeitos do processo, segurança jurídica e eficiência no sistema colegiado.

Com efeito, a divergência nos órgãos fracionados dos tribunais pode ser sugestiva de não pacificação sobre o tema e, portanto, é capaz de trazer desconforto e inconformismo ao jurisdicionado. Melhor, nesse diapasão, que esta divergência seja levada para um debate maior, o qual poderá, em tese, gerar mais segurança ao jurisdicionado, ao mesmo tempo em que propiciará pacificação de entendimento nos órgãos fracionados dos tribunais. Justificável, pois, o procedimento versado pelo art. 942 CPC.

É certo, como já visto, que o procedimento em tela veio em substituição aos embargos infringentes. Tem-se, aí, pois, um norte a ser seguido, para que se possa entender em situações de lacuna (interpretação teleológica) o que quis alcançar o legislador. Mas, vale lembrar o que foi dito ao início, há claras e literais opções legislativas que devem ser assimiladas e acatadas, até mesmo porque refletem reflexões e estudos do legislador.

Deve-se acrescer a percepção de que o CPC/15, atento aos princípios da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, CF[8]), primazia do mérito (arts. 4º e 6º CPC[9]) e da eficiência (art. 8º CPC[10]), optou por quase anular o duplo grau de jurisdição. Isso porque, em diversas situações, como que confiando nos tribunais, deliberou o legislador em eliminar repetições de atos processuais, inclusive judiciais, no primeiro grau de jurisdição. Exemplos disso estão nos art. 938 § 3º[11] e 1013 § 3º CPC[12]. Com efeito, o primeiro artigo dispensa pronunciamento do juiz de 1º grau sobre provas, que seriam determinadas diretamente pelo tribunal, ao passo que o segundo artigo supera o dogma da supressão de instância e determina que o tribunal complete e corrija diretamente os pontos omissos e mesmo incongruentes das decisões originárias.

Em outras palavras, o legislador quer seja alcançado o julgamento de mérito definitivo, o quanto antes. Para que esta desejada celeridade não gere falta de qualidade, o legislador deposita toda sua confiança num julgamento maduro e qualificado pelos tribunais de 2º grau.

Mais ainda, para que esta pressa e eliminação do duplo grau de jurisdição não gerem maiores perdas na qualidade da prestação jurisdicional, o legislador deu ênfase aos princípios do efetivo contraditório (art. 7º CPC[13]) e da não-surpresa (arts. 9 e 10[14]  - arts. 932 par. único e 933 CPC[15]).

Assim, podemos sintetizar o contexto em que foi inserido o procedimento em tela:

  1. O art. 942 do código, consoante é notório, veio em decorrência da falência dos embargos infringentes, recurso antes previsto para impor-se a ampliação do colegiado em algumas hipóteses de divergência. Havia uma crítica acirrada sobre a demora no processamento e julgamento dos embargos infringentes, razão pela qual o novo código optou por manter a ampliação do colegiado, mas por meio de procedimento mais simples e que é implementado ex officio  pelo órgão julgador.
  2.  A despeito desta notória troca do antigo recurso por um procedimento simplificado, houve evidentes opções do legislador quanto a ampliar as hipóteses de aumento do colegiado.
  3. O procedimento em pauta veio à lume, num contexto em que o duplo grau de jurisdição foi quase desconsiderado pelo novo código, ao mesmo tempo em que, para aliviar as consequências daí advindas, potencializou-se a aplicação dos princípios do efetivo contraditório, da não-surpresa, da colegialidade e da estabilização da jurisprudência.

Eis, enfim, a literalidade da norma:

Art. 942. Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores.

§ 1º Sendo possível, o prosseguimento do julgamento dar-se-á na mesma sessão, colhendo-se os votos de outros julgadores que porventura componham o órgão colegiado.

§ 2º Os julgadores que já tiverem votado poderão rever seus votos por ocasião do prosseguimento do julgamento.

§ 3º A técnica de julgamento prevista neste artigo aplica-se, igualmente, ao julgamento não unânime proferido em:

I - ação rescisória, quando o resultado for a rescisão da sentença, devendo, nesse caso, seu prosseguimento ocorrer em órgão de maior composição previsto no regimento interno;

II - agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito.

§ 4º Não se aplica o disposto neste artigo ao julgamento:

I - do incidente de assunção de competência e ao de resolução de demandas repetitivas;

II - da remessa necessária;

III - não unânime proferido, nos tribunais, pelo plenário ou pela corte especial.

Percebe-se, de início, que será aplicada a técnica de julgamento, quando houver divergência, em grau de apelação (caput art. 942 CPC), ação rescisória com resultado de rescisão da sentença, ou agravo de instrumento com reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito (§ 3º inc. I e II art. 942 CPC).

Isso significa dizer que, quanto à apelação, diferentemente do que acontecia com o cabimento dos embargos infringentes, optou o legislador por ampliar a incidência do procedimento do art. 942. Vale dizer (e será esmiuçado adiante) que, por clara e compreensível opção do legislador, será ampliado o colegiado quando houver divergência em apelação, ainda que seja mantida ou anulada a sentença (não existe a necessidade de que haja reforma). De igual forma, será imposta a técnica de julgamento ampliado mesmo que a reforma (ou confirmação) seja de sentença que não examinara o mérito. O que releva é a divergência no julgamento da apelação. E ponto final[16]!

Ora, descabe limitar o cabimento do procedimento aos mesmos casos em que se admitia, no CPC/73, o recurso de embargos infringentes. A par da opção clara e insofismável (interpretação literal), tem-se que o propósito do legislador foi o de, considerando a simplicidade do novo procedimento em comparação com a burocracia inerente aos antigos embargos infringentes, ampliar as hipóteses de incidência do instituto em tela (interpretação sistemática). E mais ainda: como visto, já que o duplo grau de jurisdição foi aniquilado, quis o legislador como contrapartida, atento ao sistema como um todo, valorizar o colegiado nos tribunais, assegurando qualidade na prestação jurisdicional (interpretação sistemática).

O STJ já se pronunciou no sentido de que “a técnica de ampliação do julgamento prevista no CPC/2015 possui objetivo semelhante ao que possuíam os embargos infringentes do CPC/1973, que não mais subsistem, qual seja a viabilidade de maior grau de correção e justiça nas decisões judiciais, com julgamentos mais completamente instruídos e os mais proficientemente discutidos, de uma maneira mais econômica e célere”. E mais: “Contudo, diferentemente dos embargos infringentes do CPC/1973 - que limitava, no caso da apelação, a incidência do recurso aos julgamentos que resultassem em reforma da sentença de mérito -, a técnica de julgamento prevista no CPC/2015 deverá ser utilizada quando o resultado da apelação for não unânime, independentemente de ser julgamento que reforma ou mantém a sentença impugnada[17].

Já quanto à incidência da técnica de julgamento nas situações de divergência no julgamento do agravo de instrumento, a opção clara do legislador foi de limitar, diferente do que fez no caso da apelação, para a hipótese em que “houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito”.

Ora, aí não é possível ampliar o cabimento, pois a opção do legislador é clara e, ao mesmo tempo, está sintonizada com a lógica de prolongar-se o debate apenas para as decisões definitivas de mérito. Sim, com o formato do art. 1015 CPC (hipóteses de cabimento do agravo de instrumento), deseja o legislador reduzir o acesso ao tribunal de 2º grau para revisão de decisões interlocutórias. Nessa toada, faz todo o sentido o legislador restringir também o cabimento da técnica de julgamento em pauta apenas para a divergência em agravo que resultar reforma da decisão interlocutória que julgar parcialmente o mérito.

E o que é a decisão interlocutória que julga parcialmente o mérito? A resposta está nos arts. 354 par. único[18] e 356 CPC[19]. Em ambos os dispositivos tem-se hipóteses em que o juiz julgará, desde já, parte das pretensões das partes, ainda que o processo prossiga em 1ª instância com relação ao restante. São decisões que definem alguns dos pedidos ou parte deles.

Dessa forma, tem-se que se deve ampliar o colegiado numa hipótese em que, em sede de agravo de instrumento, por exemplo, o tribunal de 2º grau reforma a decisão de 1ª instância que julgou, incidentalmente, procedente o pedido de declaração de nulidade do contrato, a despeito de o processo ter prosseguido, lá na origem, quanto aos pedidos cumulados de indenização por danos materiais e morais.

Diferente disso, é aquela hipótese em que o juiz manifesta, incidentalmente, sobre o mérito de algum dos pedidos, mas não o define. Isso acontece, com frequência, por exemplo, nas situações em que o juiz examina requerimentos de tutela provisória, onde deve, necessariamente, avaliar a probabilidade do direito (requisito legal ao seu deferimento). Ora, neste caso o juiz não está julgando parcialmente o mérito, mas apenas incursionando nele (para avaliar a probabilidade do direito invocado), sem defini-lo. Trata-se de análise provisória e reversível, que foi feita apenas para subsidiar a decisão sobre o requerimento de tutela provisória. Neste caso, mesmo havendo reforma com divergência no tribunal em sede de agravo de instrumento, não caberá a ampliação do colegiado. Isso seria uma ampliação indevida e geradora de insegurança jurídica.

Cabe o destaque de que, como é cediço, a decisão sobre decadência ou prescrição, embora verse sobre prejudicial de mérito propriamente dito, é tratada pelo próprio código como de mérito (art. 487 II CPC[20]). Isso significa que, em havendo decisão interlocutória que tenha acolhido ou rejeitado prescrição ou decadência de parte das pretensões e direitos em discussão (o processo prosseguiu quanto às demais), e tendo havido reforma por maioria no tribunal, este haverá de impor a ampliação do colegiado na forma do art. 942 CPC.

Há situações, outrossim, em que o juiz, incidentalmente, diz extinguir parte do processo sem resolução do mérito, estancando, desde já, um dos pedidos da parte, ao mesmo tempo em que permite o prosseguimento quanto aos demais. Ainda, não raras vezes, o magistrado incorre em erro conceitual, na medida em que, a despeito da nomenclatura usada (extinção sem resolução de mérito), sua decisão desatou o mérito sim. Por exemplo, tal situação se dá quando o magistrado diz que extingue parte do processo por ilegitimidade da parte (carência de ação – sem resolução de mérito[21]), mas, no fundo, está a definir o direito material com base na própria prova apresentada pelas partes[22] (exame de mérito). Neste exemplo, havendo agravo de instrumento e reforma da decisão por maioria, o tribunal deverá aplicar a técnica de ampliação do art. 942, independente da nomenclatura usada pelo magistrado de 1º grau. Terá havido aí reforma de decisão parcial de mérito, em que pese o erro conceitual em 1º grau, de forma a encaixar-se a situação nos requisitos do § 3º do art. 942 CPC[23].

Ainda no campo do cabimento do procedimento do art. 942, deve-se fazer rápidas ponderações sobre sua incidência no julgamento da ação rescisória.

É válido destacar que a ação rescisória comporta duplo juízo: juízo rescindente e rescisório. O primeiro gera a rescisão da decisão, ao passo que o segundo traz um novo julgamento da lide (art. 974 CPC[24]). Portanto, competirá ao Presidente do colegiado conduzir o julgamento, em primeiro lugar, do juízo rescindente, sendo que, em havendo rescisão da decisão por maioria, deverá ampliar a votação na forma do art. 942 caput e § 3º I NCPC. Depois, no juízo rescisorium, caso este seja cabível no caso concreto e se houver divergência, vez mais haverá a incidência da técnica de julgamento em estudo e deverão ser colhidos os votos dos novos julgadores.

Justifica-se a preocupação do legislador quanto à incidência do procedimento em tela, no caso de procedência da ação rescisória. É que a rescisão da sentença conduz à superação da coisa julgada, excepcionalidade esta que recomenda a ampliação do debate pelo tribunal.

Anote-se, ainda mais, que o dispositivo legal (art. 942 § 3º I CPC) faz alusão, numa certa atecnia, à “rescisão da sentença”. Tal expressão legal, a fim de que haja sintonia do dispositivo com o restante do código[25] (interpretação sistemática), não pode comportar mera e acanhada interpretação literal, donde que se conclui ser viável a técnica de julgamento no caso de rescisão de decisão interlocutória de mérito (o art. 966 CPC admite rescisória contra decisão de mérito). E, por óbvio, também no caso em que a decisão rescindenda é acórdão ou decisão monocrática do relator.

Por derradeiro, de dizer-se que o art. 942 CPC, em seu § 4º, exclui a técnica de julgamento em três hipóteses contidas em seus incisos: julgamento de incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas (inc. I); julgamento de remessa necessária (inc. II); e julgamento não unânime proferido, nos tribunais, pelo plenário ou pela corte especial (inc. III). Os incisos I e III cuidam de excluir a técnica de julgamento para aqueles casos em que o julgamento originário já é feito por meio de quóruns mais amplos, tornando desnecessária a ampliação contida naquela. Já o inciso II, na linha do que já se entendia com relação aos embargos infringentes (súmula 390 STJ[26]), afasta a técnica de julgamento para casos de divergência em sede de remessa necessária, a qual não é recurso, exatamente por não consubstanciar o inconformismo voluntário daquele que sucumbiu.

Sobre o autor
Luiz Fernando Valladão Nogueira

Advogado, procurador do Município de Belo Horizonte; professor de Direito Civil e Processo Civil. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas "Recursos em Processo Civil" e "Recurso Especial" (ed. Del Rey).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Luiz Fernando Valladão. Técnica de julgamento nas hipóteses de divergência nos tribunais – Art. 942 CPC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6221, 13 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83764. Acesso em: 23 nov. 2024.

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