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A Constituição brasileira proíbe a eutanásia?

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Agenda 20/05/2006 às 00:00

1.Introdução

Quinta-feira, 31 de março de 2005. A vida da norte-americana Terri Schiavo chegou ao fim após duas semanas sem receber a sua alimentação devido à retirada da sonda que lhe fornecia nutrientes, retirada essa autorizada pelo Judiciário daquele país [01]. O assunto dividiu a opinião pública.

Em 15 de janeiro de 1998 o ex-marinheiro espanhol Ramón Sampedro foi encontrado morto na sua cama. Era tetraplégico desde os 26 anos, quando se acidentou durante um mergulho. Tentou durante cinco anos tentou obter autorização da Justiça espanhola para que seus amigos o auxiliassem a morrer. Foi-lhe negada, porque a Justiça entendeu que se tratava de homicídio o que ex-marinheiro pedia. Ramón se envenenou com uma dose letal de cianeto preparada pelos amigos. [02]

Esses dois famosos casos são suficientes para demonstrar a importância do tema. Existe um "direito a morte"? A vida é um bem absoluto e indisponível? O Estado deve autorizar que pacientes em situação médica desalentadora possam decidir pôr termo a própria existência quando assim desejarem? Ou deve proibir sempre e utilizar o aparato institucional para punir os que ajudarem?

Nesse breve ensaio, tentarei fornecer uma justificativa plausível para legitimidade da eutanásia no Brasil à luz da Constituição de 88, defendendo, então, uma interpretação que não é vista com bons olhos por boa parte da doutrina jurídica, como, por exemplo, José Afonso da Silva:

"É, assim mesmo, uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, pelo que está implicitamente vedada pelo direito à vida consagrado pela Constituição, que não significa o indivíduo possa dispor da vida, mesmo em situação dramática. Por isso, nem mesmo o consentimento lúcido do doente exclui o sentido delituoso da eutanásia no nosso Direito." [03]

No mesmo sentido, Alexandre de Moraes:

"O ordenamento jurídico-constitucional não autoriza, portanto, nenhuma das espécies de eutanásia, quais sejam, a ativa ou passiva (ortonásia).Enquanto a primeira configura o direito subjetivo de exigir de terceiros, inclusive do próprio Estado, a provocação de morte, para atenuar sofrimentos (morte doce ou homicídio por piedade), a segunda é o direito de opor-se ao prolongamento artificial da própria vida, por meio de artifícios médicos, seja em caso de doenças incuráveis e terríveis, seja em caso de acidentes gravíssimos (o chamado direito à morte digna)." [04]

O esforço será feito para convencer de que a Lei Suprema de nosso país permite a eutanásia e, por conseqüência, o Estado não pode punir esse tipo de prática. Num primeiro momento, será feita uma interpretação dos incisos IV, VI e VIII do art. 5º da Constituição para reconhecermos um importante direito entre os direitos de primeira geração. Num segundo momento, será feita uma conexão entre esse direito, a teoria dos direitos fundamentais contemporânea, as hipóteses permissivas de supressão da vida no Direito Penal, a eutanásia e as situações em que ela é plenamente exigível, acarretando, assim, o reconhecimento das únicas formas de eutanásia do nosso direito. Num terceiro momento, veremos como podem ser removidos obstáculos na teoria do crime para a concessão desse direito, tendo como base a teoria constitucional. E, finalmente, num quarto momento, analisaremos argumentos que são freqüentemente utilizados contra a eutanásia.


2. O que diz a Constituição?

2.1 O princípio da autodeterminação moral do indivíduo

No art. 5º da Constituição temos:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

.......................

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

........................

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

O primeiro inciso garante a chamada liberdade de pensamento. Os outros dois, a liberdade de consciência e crença religiosa. Juntos, eles são manifestações do princípio da autodeterminação moral do indivíduo ou princípio da independência moral. Em linhas gerais, toda pessoa tem o direito de pensar o que quiser e como quiser, bem como exercer esse ou aquele credo, ter essa ou aquela convicção política ou filosófica, assim como pautar a sua conduta com base nos princípios que escolheu para si, sem ter medo de punição por parte do Estado por assim pensar ou por assim agir. Creio que é extremamente clara a formulação feita por Ronald Dworkin:

"As pessoas têm o direito de não sofrer desvantagem na distribuição de bens e oportunidades sociais, inclusive desvantagem nas liberdades que lhes são concedidas pelo Direito criminal, apenas porque suas autoridades ou concidadãos acham que as suas opiniões a respeito da maneira certa de levarem suas próprias vidas são ignóbeis ou erradas." [05]

Também tal importante direito vem expresso da na Declaração Universal de Direitos Humanos:

Artigo 18. Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

Artigo 19. Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.

O texto da Declaração Universal de Direitos Humanos, ao contrário do texto constitucional pátrio, menciona a prática da crença ou consciência. É sobre essa última dimensão do princípio, a prática de consciência e crença religiosa, que um exame mais detido merece ser feito.

Edílson Farias expõe de maneira bem sintética, mas clara, o significado daqueles dois últimos incisos constitucionais transcritos:

"Sob este aspecto, em torno das dimensões internas e externas da liberdade de consciência e de crença, gravitam a liberdade de crer ou de não crer (liberdade de religião e a liberdade ideológica), a liberdade de manifestação pública das crenças ou convicções pessoais (a liberdade de culto) e o direito de se comportar de acordo com as suas crenças religiosas e convicções pessoais (direito de objeção de consciência)." [06]

Essa última parte é importante. É uma pena que ele não tenha abordado esse último desdobramento do princípio, posto que há implicações extremamente importantes para a nossa ordem constitucional e para o problema que está em questão neste texto, como a seguir veremos.

Assim, a autodeterminação moral só pode ser realmente usufruída pelos destinatários do direito se lhes for permitido agir de acordo com suas idéias. Daí a importância que foi dada acima a essa faceta do direito. Sem essa dimensão, a liberdade de consciência e crença religiosa restará completamente inútil. Para que serviria a crença de uma pessoa em uma determinada religião se o Estado ou a sociedade proibisse que ela a exercesse? Qual sentido teria permitir a livre escolha de posições filosóficas se não fosse permitido exercê-las? É nítido como o princípio tem ligação com o princípio da dignidade humana (inciso III, art. 1º da CF/88). Seria tratar desumanamente as pessoas se fosse permitido a elas fazer seus julgamentos morais a respeito de determinadas questões, mas não permitir que elas agissem nesses problemas de acordo com as decisões morais que tomaram.

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Precisamos ter cuidado nesse ponto. O princípio tal qual está sendo abordado está sendo tomado de forma extremamente abstrata e genérica, o que não significa que seja absoluto, isto é, que o indivíduo possa agir de acordo com toda e qualquer espécie de idéia a todo e qualquer instante. Na verdade, ele assegura um espaço de livre autodeterminação das pessoas. Assim, um católico pode perfeitamente achar equivocada uma crença evangélica ou ateísta, mas daí não segue que ele pode forçar quem assim pensa e age a seguir seu padrão católico de conduta. Pode haver o livre espaço para discussões em torno das divergências das duas crenças, é claro, mas não para o uso da força em decorrência dessas divergências. Do mesmo modo devem agir os políticos no Congresso Nacional e os torcedores de futebol no bar da esquina.

Daqui surge uma outra importante conseqüência do princípio que é o princípio da tolerância: minha autodeterminação encontra limite na autodeterminação dos outros. Cada um pode seguir suas condutas de acordo com o que lhe achar conveniente ou moralmente correto, desde que essas condutas não tenham efeitos maléficos sobre os outros. Posso discordar de qualquer credo religioso, qualquer opção sexual ou crença filosófica de alguém, mas tenho que assegurar o respeito a essa diferença quando vou me relacionar com quem é diferente. Segue-se que temos que ter muito cuidado com os efeitos de nossas atitudes. A autodeterminação também implica uma dose séria de responsabilidade. Seria absurdo garantir a autodeterminação de uma pessoa, com base na sua dignidade, e permitir que ela depois a use para prejudicar outras pessoas. Desse importante direito, decorre, ao mesmo tempo que o reconhecemos, um dos mais importantes deveres para a vida em sociedade. Não é a toa que podemos reconhecer nele os fundamentos para a responsabilidade civil e para a responsabilidade penal no nosso Direito.

Talvez tenha sido nessa ordem de ponderações que John Stuart Mill, no seu famoso livro On liberty, tenha elaborado seu princípio que serviu como cerne para o liberalismo e, nitidamente, teve influência sobre a formação dos direitos de primeira geração:

"Esse princípio é o de que o único fim para o qual a humanidade está justificada, individualmente ou coletivamente, em interferir na liberdade de ação de qualquer de um de seu gênero é a auto-proteção. Esse único propósito pelo qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de prevenir dano aos outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é uma justificativa suficiente. Ele não pode ser corretamente compelido a fazer ou se abster porque será melhor para ele agir assim, porque fará ele mais feliz, porque, na opinião dos outros, fazer isso seria sábio ou até mesmo correto. Estas são boas razões para reclamar com ele, ou argumentar com ele, ou persuadi-lo, ou implorar para ele, mas não para compeli-lo ou ameaça-lo com algum mal no caso de ele agir de outro modo. Para justificar isso, a sua conduta que se quer desencorajar deve ser calculada para produzir algum mal a alguém mais. A única parte da conduta de alguém pela qual ele é responsável perante a sociedade é aquela que diz respeito aos outros. Na parte que meramente diz respeito a si próprio, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si próprio, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano." [07]

Aqui pode muito bem surgir uma crítica por parte dos menos atentos. Como pode ser afirmado que o direito de autodeterminação é relativo, uma vez que leva em consideração os outros, e Mill afirma que a independência que diz respeito a si próprio é absoluta? A crítica é apenas aparente. A confusão é feita entre o uso do verbete "absoluto" em relação ao seu uso como sentido "aberto e irrestrito" e seu sentido como "livre dentro de uma esfera delimitada". Quando Mill afirma que é absoluta a independência, está dizendo que dentro dessa esfera não há que se cogitar de limitações por parte da sociedade ou do Estado. Em outras palavras, quando ele propõe que o direito à autodeterminação é absoluto está falando que é livre e desimpedido dentro da esfera que foi construída, ou, dito de outra forma, se não há razões plausíveis para que limitemos as ações de uma pessoa, então não temos legitimidade para impedi-la. Não está afirmando no sentido de que seja aberto e irrestrito, permitindo ao individuo agir como quiser em toda em qualquer situação. Seria o caos social o Direito permitir uma coisa desse tipo.

Um exemplo bem claro pode ilustrar mais ainda o funcionamento do princípio. Na CF/88 está escrito:

art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Pois bem. Imaginemos um caso: em algum bairro uma determinada seita religiosa é constantemente frustrada, por outros membros de outra religião, para realizar sua liberdade de culto. Eles argumentam que aquela seita profana os princípios mais fundamentais de sua religião e acham que seria errado deixa-los exercer suas crenças naquela comunidade. Se o Ministério Público ou aquele grupo minoritário entrasse na Justiça pedindo proteção do livre culto, estaria violando o inciso acima? É claro que não. Aquela minoria esta sendo frustrada no seu exercício de culto sem nenhuma justificativa plausível para tanto, pois o que o grupo está fazendo é impondo seu próprio modo de agir a outras pessoas, com base no pressuposto de que sua religião vale mais ou é mais correta do que aquela seita. Por outro lado, o Estado, prestando a tutela jurisdicional nessa situação e, dessa forma, impedindo que o grupo da religião adversa aja dessa maneira, está é protegendo a liberdade de culto de forma justificada.

2.2 Contra a eutanásia: a vida é absoluta.

Um dos primeiros problemas que aparecem em torno da questão é o seguinte: é a vida um bem indisponível? Ou ela é absoluta? Ao que parece, temos mais razões para crer que a vida é algo que não prevalece em todos os casos.

Para sustentar isso, primeiro veremos o atual estágio da teoria constitucional, focalizada na questão dos direitos fundamentais. Em seguida, veremos como nosso direito reconhece, por clara influência dos direitos fundamentais, essa relativização do direito a vida na esfera penal.

2.2.1 Teoria dos direitos fundamentais

É assente na teoria constitucional que os direitos não são absolutos. A teoria dos princípios aplicada aos direitos fundamentais nos leva fatalmente a essa conclusão. Tomemos a definição princípios de Dworkin ou a de Alexy.

Na definição de Dworkin, os princípios apresentam duas características básicas [08]:

a)no aspecto deontológico: os princípios não prescrevem, diante de circunstâncias concretas, qual a conduta, de imediato, é devida. Eles são abstratos demais. Devem sempre levar em consideração não só outros princípios, como também as circunstâncias do caso concreto para que possamos definir qual a conduta é devida;

b)no aspecto do peso: correlacionada com a característica acima, os princípios possuem uma dimensão no peso ou na importância que desempenham no Direito. Quando entram em conflito, um deles deve deixar de prevalecer, cedendo lugar ao princípio contrário que, segundo a interpretação feita, reputa-se mais importante. Mas pelo fato de um princípio não prevalecer num determinado caso, não necessariamente ele deixará de valer. Pode muito bem ocorre que, em outras circunstâncias, ele adquira mais peso ou seja mais importante aquele outro princípio que o venceu no caso anterior.

Na definição de Alexy, os princípios são mandados de otimização, isto é, devem ser cumpridos dá melhor maneira possível, tendo como limites a esse cumprimento as possibilidades fáticas e jurídicas. [09]Qualquer princípio que incida em um caso concreto deve ser levado em consideração e deve, na medida do possível, ser cumprido, mas sempre respeitando os limites estabelecidos pelas condições factuais e pela incidência de outros princípios. De que maneira podemos traçar uma espécie de linha que demarca a área até a qual os princípios podem se expandir, é problema que é avaliado no bojo do caso concreto.

Pois bem. Partindo de qualquer das duas perspectivas, a conclusão a que chegamos é inevitavelmente essa: não há direito absoluto. Haverá casos, portanto, em que um determinado direito deve ceder ao outro a outra política, no caso da perspectiva dworkiniana, ou deve ser restringido para dar espaço para a otimização do outro, na perspectiva alexyana.

Tal conclusão é que faz erigir o princípio da proporcionalidade como grande princípio orientador para a solução da problemática dos direitos fundamentais na nossa ordem constitucional. O STF endossa a tese de que não há direitos absolutos e, por tabela, a idéia de proporcionalidade na exegese constitucional. Eis vários julgados:

"A questão posta não é de inviolabilidade das comunicações e sim da proteção da privacidade e da própria honra, que não constitui direito absoluto, devendo ceder em prol do interesse público. (Precedentes). Ordem denegada." [10]

"Inexiste a alegada inconstitucionalidade do artigo 235 do CPM por ofensa ao artigo 5º, X, da Constituição, pois a inviolabilidade da intimidade não é direito absoluto a ser utilizado como garantia à permissão da prática de crimes sexuais." [11]

"Se é certo que o sigilo bancário, que é espécie de direito à privacidade, que a Constituição protege art. 5º, X não é um direito absoluto, que deve ceder diante do interesse público, do interesse social e do interesse da Justiça, certo é, também, que ele há de ceder na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade." [12]

2.2.2 No Direito Penal

Tomemos como exemplo a legítima defesa. Todos os países, praticamente, consagram tal direito. Qualquer pessoa que esteja prestes a ser agredida injustamente, e não dispondo de outro meio menos danoso, pode repelir a agressão, mesmo que para isso tenha que, de alguma forma, ferir o seu agressor, até mesmo o matando, se necessário. Nosso Código Penal o consagra no art. 25 [13], mas mesmo que não viesse expresso no nosso direito, ainda assim poderíamos facilmente sustentar tal direito com base na própria proteção da vida que a Constituição reconhece no caput do seu art. 5º.

Além disso, o Código Penal ainda reconhece um importante dilema moral e, por via reflexa, a importância da independência moral de cada um de nós. Refiro-me ao inciso II do art. 128: aborto por razões de estupro [14]. Uma mulher que for vítima de estupro e quiser abortar, com a devida ajuda de um médico, estará legitimamente possibilitada para tal. Vemos como o Código deixa a cargo dela uma importante decisão, dando mais sustentação para o fato de que a vida não é algo absoluto. Diante de uma questão moral tão difícil como essa, a mulher deve ter o direito de tomar a decisão de acordo com suas mais íntimas convicções. [15] Deve escolher entre ter gerar uma criança gerada por um fato extremamente danoso a sua dignidade ou praticar o aborto. A legislação andou bem nesse ponto e, sem dúvidas, é mais uma manifestação da independência moral. Se fosse disposto que toda e qualquer mulher deveria abortar, porque a maioria da sociedade pensasse que é deplorável ter uma criança originada nessas circunstâncias, então seria extremamente aviltante para com algumas mulheres que, mesmo tendo uma gravidez gerada por um estupro, ainda assim deixariam a criança nascer, por pensarem, de acordo com as suas convicções morais, que a vida deveria ser preservada nesse caso, seja porque a criança não teve nada a ver com o estupro, porque são tementes a Deus ou outras coisas do gênero. Mas também seria extremamente danoso para as mulheres se elas não pudessem abortar nesse caso, pois algumas sequer tolerariam uma criança que fosse concebida de uma forma extremamente humilhante e traumatizante como o estupro. O Direito Penal, assim, deixa a mulher livre para escolher.

Dessa forma, percebemos como há razões para que tornemos o direito à vida um direito relativo e que, inevitavelmente, deve levar em considerações outras questões e argumentos igualmente relevantes.

Mas então o problema da eutanásia assume a seguinte forma: que razão temos para aceitá-la?

2.2.3 Uma importante razão

Antes de apresentar essa forte razão, um pequeno esboço da teoria da argumentação em matéria de direitos fundamentais é necessário.

Para efeito teórico, usarei uma distinção feita por Dworkin entre direitos abstratos e direitos concretos [16], a qual se aproxima da (se não for funcionalmente idêntica a) idéia de prioridades prima facie [17] ou direitos prima facie [18] de Alexy. Um direito abstrato é, pelo próprio nome, algo extremamente vago e estabelecido prima facie, estabelecendo uma carga de argumentação ou razão que aponta num determinado sentido, sem prescrever o resultado a que alguém está obrigado. Nas palavras de Alexy:

"A proposição de direitos prima facie é uma proposição bastante débil. Não se decide nada a cerca do que está definitivamente obrigado. Um socialista, sempre que não seja um fanático, pode aceitar um direito geral a liberdade como um direito prima facie. Podemos ter a esperança de que o acomode, através de um processo de ponderação, dentro de seus ideais políticos. Um liberal, considerando de novo que não é um fanático, pode aceitar o direito social geral a assistência social como um direito prima facie. Aqui, também, podemos esperar que o reduza através de um processo de ponderação de acordo com seus ideais políticos, por exemplo, que o transforme em um direito definitivo com um conteúdo mínimo." [19]

Por exemplo: a nossa ordem constitucional nos garante o direito de propriedade, mas não diz como esse direito será exercido ou em que termos é juridicamente exigível. Temos, assim, um direito à propriedade prima facie, mas que dependerá de outras circunstâncias ou outros argumentos para torná-lo plenamente exigível. Já um direito concreto leva em conta justamente a incidência dos direitos abstratos e outros tipos de argumentos como forma de argumentação em um caso concreto.

Dessa forma, suponha que eu queira construir uma simples calçada na minha casa. O direito de propriedade, assim, é um argumento no sentido de que eu posso fazê-lo e não há nenhum outro argumento que aponte na direção contrária. Mas no momento em que eu amplio o tamanho da minha calçada de modo a interromper o fluxo de automóveis na rua, não há mais direito, posto que estou atrapalhando política básicas de tráfego de automóveis, que permite que os bairros possuam um fluxo de carros para melhor servir a coletividade (é a tão importante função social da propriedade estabelecida no inciso XXIII do art. 5º da CF). No entanto, se o governo do meu Município decide que não posso construir minha calçada de forma a possibilitar que meu carro entre na garagem e não apresenta nenhuma razão para tanto ou invoca apenas o fato de que o fluxo de automóveis terá um ganho de 1% em eficiência, meu direito de propriedade funciona como um vigoroso argumento em prol do meu interesse contraposto ao um argumento de interesse público de caráter extremamente dúbio.(O exemplo é tosco, mas serve apenas para ilustrar como funciona a argumentação jurídica)

Assim, cumpre agora saber quais argumentos podemos ter para sustentar um direito concreto a eutanásia. O princípio da autodeterminação é o direito abstrato que temos prima facie. Ele sustenta uma razão fortíssima. A eutanásia envolve uma questão de alta relevância ético-filosófica e, assim sendo, possui uma conexão íntima com o princípio. Envolve a questão de sabermos qual o verdadeiro significado da vida, se ela é o que é apenas pelo simples fato de estarmos respirando nesse momento ou se envolve algo mais, como poder abraçar uma pessoa que amamos ou conversar normalmente com os amigos numa mesa de bar, ou, como no caso de Ramón Sampedro, poder dar um mergulho na praia. Se reconhecemos esse respeito à autodeterminação de uma pessoa, devemos, portanto, respeitar sua decisão nessa questão que envolve o significado da vida, da morte e do sofrimento.

Ao mesmo tempo em que o princípio funciona como argumento, ele também estabelece um pressuposto inafastável para o caso em questão: a decisão só deve caber ao indivíduo e a mais ninguém. Se permitíssemos o contrário, estaríamos anulando a autodeterminação de uma pessoa. O indivíduo deve manifestar sua vontade inequivocamente para tal questão. Não podem os parentes, ou quem quer que seja, tomar a decisão no lugar dessa pessoa simplesmente porque acham que isso ofende a Deus ou coisa parecida. Todos devem tolerar a decisão. Não é dado aos parentes ou aos médicos, por exemplo, pedirem para que sejam desligados os aparelhos de um paciente que está em coma simplesmente com base no maior ato de amor e generosidade do mundo ou porque manter o paciente naquela situação custa muito aos cofres públicos. Sem a manifestação da pessoa, nenhuma decisão é possível.

No entanto, surge uma dificuldade para a questão. Como estabelecer um critério ou uma espécie de linha a partir da qual temos uma circunstância que autoriza o direito? É como diz Dworkin:

"Porque deveria ser negado para pacientes tão frágeis ou paralisados que não conseguem sozinhos tomar pílulas e que imploram a um médico que injete uma droga letal dentro deles? Ou a pacientes que não estão morrendo mas enfrentando anos de intolerável dor física ou emocional, ou paralisia ou dependência aleijante? Mas se esse direito for estendido para tão longe, em que caso ele poderia ser negado para qualquer um que tenha formado um desejo de morrer – para um jovem de 16 anos sofrendo de um severo caso de amor não-correspondido, por exemplo?" [20]

Dessa forma, creio que temos três situações em que esse direito é plenamente exigível:

a)o direito é utilizado com o fito de acelerar a morte, pois ela é inevitável e o prolongamento da vida nessas circunstâncias seria inútil e extremamente doloroso. É o caso do paciente que pede a um médico que lhe ministre uma dose letal de algum medicamento para pôr logo termo à vida e, conseqüentemente, ao sofrimento. Trata-se de uma forma comissiva;

b)o direito é utilizado como uma maneira de evitar um tratamento médico que apenas retarda a morte e prolonga uma vida de extremo sofrimento. Trata-se de uma forma omissiva;

c)o direito é usado para pôr fim a uma vida que, embora não tenha um termo bem definido, é extremamente dolorosa ou foi severamente limitada, pelo resto da vida, por algum acontecimento, de modo que a pessoa, de acordo com suas mais íntimas convicções, crê que não há mais dignidade ou propriamente vida naquilo. Essa é, eu creio, a forma mais polêmica. Temos como exemplo paradigmático o caso do Ramón Sampedro ou o personagem de Denzel Washington no filme O colecionador de ossos [21]. O caso do rapaz de 16 anos do exemplo acima fica afastado, posto que embora talvez possamos reconhecer um sofrimento sentimental desse garoto, ele não irá durar por toda a vida, ainda mais se levando em conta a sua idade e a freqüência com que isso ocorre na adolescência.

Em todos três casos, é bom frisar, deve haver sempre o devido acompanhamento médico e um rigoroso e minucioso diagnóstico sobre a situação da pessoa.

Assim, temos três tipos de condições para o exercício desse direito: a situação fática (descrita logo acima); a vontade livre e consciente do indivíduo de tomar essa decisão, isto é, deve haver uma voluntariedade; e deve haver o devido acompanhamento médico. Em outras palavras, ocorrendo essas três condições, há o direito à eutanásia legal. Todas as outras situações que não se enquadram rigorosamente nesse esquema são inválidas, tais como a eutanásia eugênica ("é a eliminação indolor dos doentes indesejáveis, dos inválidos e velhos, no escopo de aliviar a sociedade do peso de pessoas economicamente inúteis") [22] ou eutanásia não-voluntária ("caracteriza-se pela inexistência de manifestação da posição do paciente em relação a ela") [23].

Portanto, constitucionalmente temos assegurado um importante argumento a favor da eutanásia, ao mesmo tempo em que nos permite construir alguns requisitos para seu reconhecimento. Contudo, não creio que aqueles requisitos fáticos para a exigibilidade do direito sejam suficientes. Na verdade, eles funcionam como base para uma melhor regulamentação por parte do Estado. Não obstante, creio que já é um grande passo.

Sobre o autor
José Luizilo Frederico Júnior

Procurador do Município de Teresina (Procuradoria Fiscal). Advogado. Ex-analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região (MA). Pós-graduando em direito tributário pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEMP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREDERICO JÚNIOR, José Luizilo. A Constituição brasileira proíbe a eutanásia?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1053, 20 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8408. Acesso em: 22 nov. 2024.

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