RESUMO: O presente artigo tem por objetivo precípuo a análise do instituto do “informante ou reportante do bem” (whistleblower) na ordem jurídica pátria, além de apontar sua natureza jurídica e seus limites de incidência na esfera penal e administrativo-disciplinar, enfrentando a sensível questão do “anonimato” e a sua aparente contradição com a vedação constante do art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal. Por meio do método de pesquisa bibliográfico e jurisprudencial, no direito interno e externo, buscar-se-á demonstrar a constitucionalidade do instituto, mesmo quando se tratar de denúncia anônima, bem como a importância da regulamentação e da disseminação da Lei nº 13.608/2018 para o enfrentamento da corrupção institucional em nosso país.
PALAVRAS-CHAVE: Whistleblowing; Informante do bem; Vedação do anonimato; Constitucionalidade; Valor probatório.
ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze the institute known as “whistleblowing” in Brazil´s legal order, in addition to pointing out its legal nature and its penal and administrative-disciplinary limits, facing the sensible question of the “anonymity” and its apparent contradiction with the Brazilian Constitution. By adopting the method of bibliographic and jurisprudential research, both national and international, we seek to demonstrate its constitutionality and the importance of the identification and dissemination of Law 13.608/2018 on the battle against institutional corruption in our country.
KEYWORDS: Whistleblowing; Whistleblower; Anonymity; Constitutionality; Probative value.
Sumário: 1. Introdução. 2. A admissão do instituto do informante ou reportante do bem na ordem jurídica brasileira. 2.1. Aportes da Lei 13.608/2018. 3. Constitucionalidade e âmbito de incidência da Lei 13.608/2018. 3.1. Incidência do informante ou reportante do bem na investigação criminal. 3.2. Incidência do informante ou reportante do bem na esfera administrativo-disciplinar. 4. Características do informante ou “reportante do bem” (whistleblower). 5. Natureza jurídica do “informante do bem” (whistleblower). 5.1. Valor probatório da “informação do bem”. 6. Conclusões.
- Introdução
Os indivíduos que trabalham numa organização pública ou privada, ou que com ela estão em contato no contexto de atividades profissionais, são frequentemente os mais habilitados a obter conhecimento de situações lesivas do interesse público que surgem em seu contexto de atuação, em regra profissional. Fiel a essa premissa, o legislador brasileiro, a partir de 2018, positivou em nosso sistema a figura do “whistleblower”, cuja tradução literal vem a ser “soprador de apito”, mas que, em uma tradução contextualizada, serve para designar um informante, responsável por reportar à autoridade competente a ocorrência de atos de corrupção, caraterizadores de ilícito penal ou administrativo.
Essas pessoas, conhecidas como “informantes do bem”, agem como denunciantes ou reportantes privilegiados, por conhecerem a estrutura e o contexto do ilícito, por dentro, desempenhando assim um papel essencial na descoberta e na prevenção dessas violações, bem como na salvaguarda do bem-estar da sociedade. Todavia, os potenciais denunciantes são frequentemente desencorajados a comunicar as suas preocupações ou suspeitas, por medo de represálias pessoais e profissionais, razões essas que justificam a previsão de anonimato, caracterizado pela facultatividade de sua identificação.
Sob essa lógica, considerando-se a notável pertinência do novel instituto para o ordenamento jurídico pátrio, notadamente no combate aos ilícitos atentatórios ao Estado, busca o presente ensaio identificar as características do informante do bem, nos moldes inseridos pela Lei 13.608/2018, incluindo ainda as posteriores alterações introduzidas pelo “pacote anticrime”, e apontar a sua natureza jurídica, limites de incidência na esfera penal e administrativo-disciplinar, bem como enfrentar a sensível questão do “anonimato” e a sua aparente contradição com a vedação constante do art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal.
O presente trabalho será desenvolvido com base na metodologia qualitativa, utilizando, para tanto, o método jurídico-descritivo, mediante pesquisa bibliográfica e jurisprudencial de âmbito nacional e internacional, com foco nas práticas estadunidenses e europeias, acerca desse relevante instrumento inibidor da criminalidade vinculada à corrupção privada e estatal, com vistas à constituição do arcabouço jurídico-legal desse instituto na ordem jurídica brasileira.
- A admissão do instituto do informante ou reportante do bem na ordem jurídica brasileira
O Processo Penal Brasileiro e, com ele, a regulamentação dos meios de prova ou métodos de captação de prova, encontra-se em ebulição legislativa, na esteira do sincretismo procedimental e da importação de institutos consagrados nos sistemas penais de outros países, em especial de tradição vinculada ao common law, em busca do aperfeiçoamento de nosso modelo de investigação criminal, até recentemente lastreado em um Código de Processo Penal cujas práticas, costumes e valores remontam ao período da 2ª Guerra Mundial, com notória primazia da confissão e da prova testemunhal como meios de prova.
Nesse contexto, observa-se a gradual incorporação e o reavivamento de diversos institutos processuais penais em nosso sistema, rumo ao aperfeiçoamento do modelo de investigação criminal pátrio, tendo como motivação e foco a visível alteração no cenário dos crimes mais comuns entre a primeira metade do século XX, coincidente com a edição do Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e os dias atuais, em relação àquela criminalidade que campeia especialmente, mas não exclusivamente, nos grandes centros e que, há muito, desconhece fronteiras entre estados e entre países, transparecendo que, desde as últimas décadas do século passado, a criminalidade se organizou, enquanto o Estado apenas tardiamente passou a reagir, modernizando paulatinamente as suas ferramentas legais para o combate à crescente criminalidade.
A fragilidade estatal abriu caminho para que a criminalidade organizada passasse a atuar além do âmbito privado, direcionando os seus tentáculos à apropriação ilícita dos já escassos recursos públicos, através da infiltração de associações criminosas e da cooptação de agentes públicos responsáveis por licitações, fiscalizações e controle, além de também cooptar agentes vinculados ao sistema de justiça e às atividades legislativas, nestas não restringindo-se ao âmbito exclusivo das leis, mas também ao das normas regulamentares, de modo a facilitar a atuação criminosa, sob a garantia do manto da impunidade. Por meio dessa articulação, foi possível submeter a administração pública aos interesses ilícitos individuais e coletivos nos mais diversos níveis e dimensões.
A partir do limiar do século XXI, com a crescente preocupação do mundo ocidental com o combate ao terrorismo internacional e às suas fontes de custeio, houve maior mobilização pela edição de Convenções e Tratados destinados ao enfrentamento da corrupção, diante da percepção de que a sua prática facilitaria a circulação de “dinheiro sujo”, bem como a sua “lavagem”. Essas convenções, dentre outras recomendações, passaram a prever uma maior proteção aos funcionários públicos e cidadãos que denunciassem, de boa-fé, atos de corrupção.
O primeiro caminhar do Brasil nessa direção ocorreu através da edição do Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000, que internalizou a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, o qual prevê normas gerais contra corrupção de servidores estrangeiros por organizações e indivíduos, dando origem à Lei n. 10.467, de 11 de junho de 2002, a qual introduziu profundas alterações no Código Penal, acrescentando-lhe o Capítulo II-A ao Título XI, além de criar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf)[3], órgão este que tem se mostrado uma ferramenta essencial para o combate à corrupção e à lavagem de capitais.
Na continuidade dessa verdadeira universalização de políticas de combate às organizações de pessoas com o intuito da prática de crimes, vitimando a administração pública, direta ou indiretamente, ainda na fase inicial do século XXI, adveio a edição da Convenção Interamericana Contra a Corrupção[4], que no artigo III prevê, dentre outras relevantes medidas, o compromisso de proteção aos denunciantes de boa-fé[5]; de forma similar, recomenda a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[6] a incorporação de medidas para o combate às práticas ilícitas em diversos níveis e esferas, inclusive com a previsão, em seu art. 33, de mecanismos de proteção dos denunciantes ou dos informantes de boa-fé[7]. Essas Convenções sedimentaram as bases para a disseminação desse instituto como uma importante ferramenta colaborativa no combate à corrupção, colocado à disposição das autoridades, em prol da preservação da moralidade e do interesse públicos.
Nessa senda, a preocupação com o combate à criminalidade e à corrupção encontra-se também na Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida como Convenção de Palermo, adotada pela Assembleia-Geral da ONU em 15 de novembro de 2000, e incorporada ao nosso direito interno através do Decreto n. 5.015 de 12 de março de 2004[8]. Essa Convenção, cujo objetivo é “promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional[9]”, prevê um variado conjunto de ações a serem implantadas por cada Estado signatário, dentre elas o aperfeiçoamento e a implantação de medidas contra a corrupção (art. 10) e de técnicas de investigação (art. 20).
Nessa linha, em curto espaço temporal, foram editadas leis que, seguindo a tendência internacional, buscaram fortalecer o combate à criminalidade, através da introdução e do aperfeiçoamento de novos e tradicionais meios e técnicas de investigação significativamente invasivos (tecnológicos e tradicionais), tais quais as Leis 12.830/2013 (dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia), 12.850/2013 (define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, inclusive o agente infiltrado, etc.), Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002, 13.344/2016 (prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e medidas de atenção às vítimas, etc), 13.608/2018[10] (cria a figura do informante ou reportante do bem – “whistleblower”) e 13.964/2019 (pacote anticrime).
Sob essa lógica, a personagem denominada “whistleblower”, que, em tradução literal[11] significa “soprador de apito”, vem a constituir, assim, um instituto recentemente integrado ao nosso direito, num processo de simbiose típico dessa fase de transformação experimentada pelo processo em geral, em busca de modernização e eficiência no combate à corrupção, tendo como origem, em especial, a tradição estadunidense[12] de investigação e responsabilização de fraudes financeiras[13], a partir da premissa de que, em organizações constituídas para fins lícitos ou não, pessoas não envolvidas com esses atos ilícitos podem vir a descobrir evidências de sua prática e colaborar com a sociedade, relatando tais situações às autoridades competentes para coibi-las.
Os dois pontos positivados, essenciais para o sucesso desse instituto estão sustentados no sigilo da identidade e na oferta de recompensa, práticas estas de longa tradição no sistema de justiça criminal dos EUA[14] e que vêm se popularizando nas grandes corporações e na administração pública, através do reforço às políticas de compliance, canais de denúncias internas e também nas esferas penal e administrativa, obtendo, inclusive, regulação própria no âmbito da União Europeia, através da aprovação da “Diretiva (UE) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho”, de 23 de outubro de 2019, em cujo art. 76 resta consignado:
Os Estados-Membros deverão assegurar que as autoridades competentes disponham de procedimentos de proteção adequados para tratar as denúncias e para proteger os dados pessoais das pessoas nelas referidas. Esses procedimentos deverão garantir que as identidades de todos os denunciantes, das pessoas visadas e de terceiros referidos na denúncia, por exemplo, testemunhas ou colegas estejam protegidas em todas as fases do procedimento[15].
Observa-se que a questão atinente à proteção daqueles que pretendem exercer o direito de denúncia, relativamente à prática de crimes dos quais venham a ter conhecimento, em especial no ambiente de trabalho, tem sido objeto de grande debate e positivação nos mais diversos países, todavia o seu sucesso, no Brasil, está vinculado a uma radical alteração de nossa cultura, historicamente avessa à “delação” e ainda com profundas raízes patrimonialistas.
Apesar disso, a positivação é um passo significativo, pois, considerando-se a posição de vulnerabilidade do denunciante, a ausência de um arcabouço jurídico-legal destinado à proteção dos “whistleblowers” acabaria por colocar em risco a sua incolumidade e por facilitar eventuais represálias, através da aplicação de sanções disciplinares e, até mesmo, do recurso a demissões sumárias daqueles que decidem reportar as ilegalidades descortinadas, no intuito de coibir eventuais futuras investigações acerca das práticas criminosas.
Nesse diapasão, nota-se um recente e expressivo movimento internacional em direção à elaboração de uma matriz epicentral para a proteção do denunciante ou reportante, a exemplo da Diretiva 2019/1937 da União Europeia, do Gesetz zum Schutz von Hinweisgebern – Whistleblowern alemão (“Ato de Proteção ao Whistleblower”[16], de 07 de fevereiro de 2012), da Lei 19/2008, de 21 de abril, de Portugal[17] e da Lei 13.608/2018 no Brasil, as quais demonstram o crescente interesse, interno e externo, no combate às ilegalidades perpetradas nos âmbitos público e privado, através da articulação de organizações criminosas ou mediante a corrupção individual de funcionários que atuam em instituições públicas ou privadas.
- Aportes da Lei 13.608/2018
No ponto que interessa a este estudo, isto é, a Lei 13.608, de 10 de janeiro de 2018 (redação original e alterações promovidas pela Lei 13.964/2019), em consonância com as diretrizes de combate à corrupção inspiradas no item 1, do art. 9º da Convenção de Palermo[18] e nas já mencionadas Convenção Interamericana Contra a Corrupção e Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, verifica-se a introdução, em nosso sistema, de um novo instituto que funciona como fonte de indicação de prova ou meio de obtenção de prova, denominado informante (whistleblower), popularizado como “informante do bem”, o qual tem por finalidade o “oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes contra a administração pública ou ilícitos administrativos” (art. 4º).
Nessa perspectiva, a respeito da qualidade do whistleblower como meio de obtenção de prova, cumpre trazer à baila esclarecedora lição de Germano Marques da Silva[19]:
Os meios de obtenção da prova são instrumentos de que se servem as autoridades judiciarias e órgãos de polícia criminal para investigar e recolher meios de prova; não são instrumentos de demonstração do thema probandi, não são meios de prova, são instrumentos para recolher no processo esses instrumentos.
Os meios de obtenção da prova distinguem-se dos meios de prova numa dupla perspectiva: lógica e técnico-operativa.
Na perspectiva lógica os meios de prova caracterizam-se pela sua aptidão para serem por si mesmos fonte de convencimento, ao contrário do que sucede com os meios de obtenção da prova que apenas possibilitam a obtenção daqueles meios.
Na perspectiva técnico-operativa os meios de obtenção da proba caracterizam-se pelo modo e também pelo momento da sua aquisição no processo, em regra nas fases preliminares sobretudo no inquérito. Normalmente são modos de investigação para obtenção de meios de prova e por isso que o modo de sua obtenção seja particularmente relevante. É a esse elemento do iter probationem que aqui é prestada particular atenção.
Assim, a já referida Lei 13.608/2018 recebeu o aporte de significativas complementações introduzidas pela Lei 13.964/2019, a qual robusteceu e clareou alguns aspectos relevantes sobre o tema, acrescentando que qualquer pessoa, que relate informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público, pode ser reconhecida como “informante do bem”, fazendo jus, inclusive, a uma recompensa financeira pela informação prestada. Essa recompensa passou a ser aplicável não só na forma já estabelecida no art. 3º do texto original, que depende de uma complexa regulamentação, mas também quando as “informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a administração pública”, situação esta em que a lei, embora necessitando de complementação, já estabelece uma recompensa em valor correspondente a até 5% do valor recuperado.
Em ambas as situações, na prevista pelo art. 4º da Lei 13.608/2018 e naquela introduzida através do novel § 3º do art. 4º-C, há a necessidade de regulamentação, todavia, enquanto no primeiro caso devem ser estabelecidos não só os critérios para a fixação dos valores das recompensas, como também a competência para decidir sobre elas e as respectivas fontes de custeio, no segundo caso, entendemos que a competência é do juiz da causa e o percentual já está indicado como sendo o de até 5% sobre o valor recuperado, parecendo razoável que, na estipulação do valor, seja levado em conta o grau de relevância do relato feito pelo “informante do bem”, o quanto foi recuperado em relação ao total do prejuízo suportado pela administração pública, bem como o próprio valor recuperado, pois quanto menor este, maior deve ser o percentual limitado a 5%, para evitar a recompensa irrisória, incidindo a lógica oposta em caso de desvios bilionários, para evitar as recompensas exageradas.
No primeiro caso (art. 4º), apresenta-se indispensável uma ampla regulamentação que estabeleça não só as autoridades competentes para fixar a forma e o valor da indenização, mas também qual será a fonte de custeio. Quanto ao segundo caso (§ 3º do art. 4º-C), cremos que a própria lei já indica que a autoridade em questão é a judiciária, além de haver a estipulação do percentual de até 5% dos bens recuperados com a efetiva contribuição do informante. Quando houver a recuperação de valores em espécie ou de fácil conversão (barras de ouro, ações, títulos etc), cremos que o juiz da causa terá elementos suficientes para garantir a concretização do direito à indenização, o mesmo não ocorrendo quando tal recuperação disser respeito a bens imóveis ou mesmo a situações em que o prejuízo for evitado em razão da atuação do colaborador, as quais também dependem de parcial regulamentação quanto à fonte de custeio.
- Constitucionalidade e âmbito de incidência da Lei 13.608/2018
Em diversas passagens da Lei 13.608/2018, seja em relação ao seu texto original ou mesmo àquele com os acréscimos decorrentes da Lei 13.964/2019, encontramos a referência ao informante como emissário de informações destinadas à prevenção, à repressão ou à apuração de crimes ou ilícitos administrativos (art. 4º), o que evidencia que o instituto em questão ultrapassa as divisas do direito penal, incidindo também na esfera do direito administrativo disciplinar (Lei 8.112/1990, art. 121: “O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições”).[20]
Para a incidência e a garantia do instituto do informante ou reportante do bem, em ambos os contextos, criminal e administrativo, há que ser superada eventual interpretação extensiva acerca da vedação de anonimato (CRFB, art. 5º, IV)[21], haja vista essa vedação dizer respeito à liberdade de expressão e não à notícia crime ou mesmo à indicação de provas relacionadas com crime ou ilícito disciplinar, o qual se encontra sob a égide de regulação dos meios ou instrumentos de captação de provas, sujeitos à restrição apenas em relação à utilização de meios lícitos (CRFB, art. 5º, LVI), e não à necessidade de identificação de eventual informante. Aliás, até mesmo em relação à liberdade de expressão, em sua vertente da liberdade de imprensa, existe exceção à vedação do anonimato, decorrente da previsão de sigilo da fonte (CRFB, art. 5º, XIV)[22].
Sobre a liberdade de manifestação do pensamento e a restrição imposta ao anonimato, esclarece o festejado José Afonso da Silva:
A liberdade de manifestação do pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do seu pensamento manifestado, para, sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí porque a Constituição veda o anonimato. A manifestação do pensamento não raro não raro atinge situações jurídicas de outras pessoas a que corre o direito, também fundamental individual, de resposta[23].
Nos limites como regulamentado pela Lei 13.608/2018, o whistleblower (informante), ao expor à autoridade competente informações ou elementos de prova que chegaram ao seu conhecimento, não o faz como uma forma de expressão do seu pensamento, mas sim, com o intuito de colaborar com o Estado, para a investigação e a eventual responsabilização criminal e administrativa de alguém suspeito de praticar um crime ou ilícito administrativo, estando a sua manifestação sujeita ao controle das regras e princípios que regem a teoria da prova, e não às limitações ao exercício da liberdade de expressão.
Nesse contexto, a Lei 13.608/2018, antes ou após os acréscimos introduzidos pelo chamado pacote anticrime (Lei 13.964/2019), não trata diretamente do direito individual à liberdade de expressão e, portanto, não contém afronta à vedação constitucional ao anonimato, primeiramente porque essa vedação é uma regra não absoluta e sujeita a exceções, e principalmente porque o instituto denominado como informante ou reportante do bem, pela sua natureza de fonte de indicação de meios de prova ou de meio de obtenção de prova, não encontra-se regulado pelo inciso IV do art. 5º da CRFB, mas sim pela regra geral de que todos os meios de prova são válidos para a investigação e formação dos órgãos destinatários, desde que obtidos por meio lícito (CRFB, art. 5º, LVI) e seja cumprida a recomendação de análise de razoabilidade contida na primeira parte do parágrafo único do art. 4º-A[24].
- Incidência do informante ou reportante do bem na investigação criminal
A Lei 13.608/2018 menciona expressamente a incidência do instituto denominado informante ou reportante do bem na esfera das investigações criminais, ao dispor, na parte final do art. 4º, sobre “informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos”, reforçando essa previsão no art. 4-C, especificamente na parte final do seu § 3º, o qual prevê:
§ 3º Quando as informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a administração pública, poderá ser fixada recompensa em favor do informante em até 5% (cinco por cento) do valor recuperado. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Em razão dos reflexos processuais penais dos elementos fornecidos pelo informante ou reportante do bem e de seu relevante impacto na esfera dos direitos fundamentais da pessoa apontada como agente do suposto crime contra a administração, torna-se, em qualquer caso, essencial a prévia averiguação dos elementos apresentados por ele (art. 4º, parágrafo único), realçando-se a importância dessa verdadeira condição sine qua non, especialmente quando o informante atue anonimamente ou sob a condição de sigilo de sua identidade (art. 3º).
Essa análise crítica preliminar (razoabilidade do relato), incidirá sobre a verossimilhança das alegações e a licitude (CRFB, art. 5º, LVI)[25], em relação à aquisição das informações ou elementos relatados ou fornecidos, bem como em relação à aptidão destes para sustentar a justa causa indispensável quando da instauração de uma investigação estatal. Não se pode olvidar, entretanto, que, no âmbito processual penal, há muito se firmou o entendimento de que a notícia crime ou a notícia de fato, desde que lastreada em relatos verossímeis, pode servir de ponto de partida para justificar diligências preliminares com o objetivo de apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente[26].
- Incidência do informante ou reportante do bem na esfera administrativo-disciplinar
Da mesma forma como ocorre em relação ao processo penal, o instituto do informante ou denunciante do bem incide também na esfera administrativo-disciplinar, desde que o relato ou as fontes e os elementos de prova apresentados pelo “whistleblower” sejam verossímeis (art. 4º-A, parágrafo único, incluído pela Lei 13.964/2018) e se verifique a licitude das fontes de coleta dos elementos trazidos, não havendo óbice a que se instaure uma apuração preliminar, com vistas a ratificar ou a fortalecer a narrativa do informante. Confirmada a licitude da origem do relato (CRFB, art. 5º, LVI) e a verossimilhança do alegado, as investigações poderão prosseguir, agora lastreadas em indícios de origem comprovadamente lícita, até desencadear na fase de análise do cabimento ou não da instauração de eventual processo administrativo disciplinar (PAD).
Necessário, contudo, analisar se essa conclusão é incompatível com a norma extraída da cabeça do art. 144, da Lei 8.112/1990[27], in verbis:
Art. 144. As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade. (grifos nossos)
Sendo o direito ao sigilo de identidade uma das características mais relevantes do instituto do “informante do bem”, exatamente por conferir uma proteção a essa personagem contra possíveis represálias, demissões e até mesmo para a proteção de sua incolumidade (art. 4º-C), há que se dar uma interpretação sistemática à parte final do art. 144 do Estatuto do Servidor Público da União, bem como a outras normas similares, à luz do princípio da moralidade (CRFB, art. 37) e do princípio da autotutela da administração, de forma a reconhecer que as “denúncias sobre irregularidade serão de apuração”, mesmo em caso de anonimato ou de sigilo da identidade, quando o relato apresentado for verossímil.
Presente a hipótese de verossimilhança do relato ou dos elementos apresentados pelo informante, caberá à autoridade competente instaurar um procedimento preliminar ou preparatório para apurar a origem lícita do que foi apresentado, ratificar as alegações ou elementos indicados ou entregues e a eles somar indícios que demonstrem a justa causa para o prosseguimento das apurações, necessários para, somente então, com os elementos de prova licitamente colhidos, avançar para a fase da instauração da sindicância punitiva (Lei 8.112/1990, art. 145, II) ou de processo administrativo disciplinar (art. 145, III e 146).
O Supremo Tribunal Federal[28], o Superior Tribunal de Justiça[29], o Conselho Nacional de Justiça[30] e o Conselho Nacional do Ministério Público[31] possuem consolidada jurisprudência ratificando a possibilidade de instauração de procedimento preliminar ou preparatório de investigação, em caso de notícia de fato anônima, desde que esteja lastreada em supostos fatos concretos, seja verossímil e não haja evidência de ilicitude de eventuais elementos de prova que forem oferecidos, o que pode ser aplicado, sem ressalvas, aos casos em que tais relatos forem apresentados em conformidade com a Lei 13.608/2018.
- Características do informante ou “reportante do bem” (whistleblower)
No texto original da Lei 13.608/2018, há referência expressa ao informante ou “reportante do bem” em seu art. 3º, enquanto que o seu art. 4º, fá-lo de forma vaga e indireta, mais preocupado em regular a possibilidade de os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) criarem, em seus respectivos âmbitos, “formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos”, bem como a possibilidade de pagamento de valores em espécie, pela informação repassada (parágrafo único).
Com o advento da Lei 13.964/2019 (pacote anticrime), foi adicionado o art. 4º-A à Lei 13.608/2018, em consonância com o princípio da moralidade que rege a Administração (CRFB, art. 37), o qual supre o vácuo deixado na redação original desta lei, estabelecendo que não só os entes federados, mas também as “suas autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista” passam a ter o dever de manter “unidade de ouvidoria ou correição, para assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público”.
Não vemos impedimento a que esse informante ou “reportante do bem” procure diretamente outras instituições legitimadas para atuar na persecução penal, tais quais o Ministério Público e a Polícia Judiciária, ou mesmo órgãos de viés disciplinar (corregedorias) ou de controle (Tribunais de Contas[32], Ministério Público de Contas, Controladorias etc), relatando perante os agentes competentes dessas instituições os fatos que pretenda denunciar ou apresentando as provas ou fontes de prova respectivas, mantendo todos os direitos e obrigações previstos na Lei 13.608/2018.
Ao criar ou reforçar a obrigação de que os entes federados, suas autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista criem e mantenham ouvidorias e corregedorias como canais de comunicação, para que qualquer pessoa possa exercer o direito de relatar “informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público”, o novel art. 4º-A da Lei 13.608/2018 realçou o instituto da compliance, nos âmbitos público e privado, e lançou luzes sobre a primeira característica da figura do informante, a universalidade, pois “qualquer pessoa” pode fazer tais relatos, embora pareça ser razoável excluir desse rol indeterminado de pessoas aquelas absolutamente incapazes por doença mental, numa adaptação do conceito criminal para o momento da apresentação da notícia[33], e as crianças.
O parágrafo único do art. 4º-A, em sua parte inicial, ressalta a necessidade de verossimilhança do relato feito pelo informante do bem, ao passo em que, na parte final do mesmo dispositivo, há expressa previsão de não responsabilização penal, civil (e administrativa), em decorrência de informações relatadas de boa-fé e sem abuso de direito, ao prever a “isenção de responsabilização civil ou penal em relação ao relato, exceto se o informante tiver apresentado, de modo consciente, informações ou provas falsas”, na linha do já reconhecido pela jurisprudência, em relação ao autor de notícia-crime[34].
Os arts. 3º e 4º-B da Lei 13.608/2018 preveem como característica da figura do informante o sigilo da fonte ou anonimato impróprio, ao estabelecer que ele “terá direito à preservação de sua identidade”, podendo facultativamente: (i) não se identificar e apenas apresentar o relato; (ii) se identificar ao apresentar a informação ou relato (art. 3º), mas exigir a manutenção de sua identidade em sigilo e, finalmente, (iii) se identificar sem qualquer restrição. Na hipótese em que ele se identifique e peça sigilo sobre os seus dados, este se aplica a todos os atores do procedimento, com exceção dos agentes diretamente encarregados pelo sigilo.
A faculdade de o informante se identificar ou não pode ser extraída da previsão de excepcional prévia consulta a ele, acerca da divulgação da sua identidade e da possibilidade de remuneração pelo “serviço prestado”, devendo especialmente aquela prerrogativa ser sempre informada ao denunciante, quando este venha a se comunicar como os serviços ou autoridades competentes para o processamento da “whistleblowing” (denúncia), conforme orienta a Diretiva (UE) 2019/1937, em seu art. 5º:
Deverão ser aplicadas normas mínimas comuns que assegurem uma proteção eficaz dos denunciantes relativamente aos atos e domínios de intervenção para os quais seja necessário reforçar a aplicação da lei; o reduzido número de denúncias é um fator decisivo que afeta a aplicação da lei e as violações do direito da União podem lesar gravemente o interesse público. Os Estados-Membros poderão decidir alargar a aplicação das disposições nacionais a outros domínios a fim de assegurar a existência de um regime de proteção dos denunciantes abrangente e coerente a nível nacional[35].
A norma extraída da Lei 13.608/2018 deixa claro que esse sigilo de identidade é faculdade da pessoa que atua como informante e somente será afastado “em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos”, prevendo o parágrafo único desse mesmo art. 4º-A a exigência de que, mesmo presentes aqueles requisitos, a quebra do sigilo só ocorra com a “comunicação prévia ao informante e com sua concordância formal”. Assim, cabe ao informante (“whistleblower”) a palavra final sobre a quebra do sigilo quanto à sua identidade, pois a proteção foi criado como uma prerrogativa para a sua proteção.
A conjugação entre os artigos 4-B e 4-C da Lei evidencia a existência de uma série de direitos reconhecidos em favor do informante, com destaque para a sua inclusão dentre os beneficiários da Lei 9.807/1999 (Lei de Proteção à Testemunha), além da estabilidade temporária no cargo, emprego ou função de direito, ressarcimento em dobro pelos prejuízos materiais decorrentes de eventual retaliação, bem como indenização por danos morais e recompensa de até 5% sobre o valor do produto do crime recuperado, em decorrência de suas informações, no caso de “crime contra a administração pública”.
São, portanto, características da figura do informante a (i) universalidade subjetiva, no sentido de que qualquer pessoa pode figurar como tal, a exemplo do que ocorre em relação à testemunha (CPP, art. 202); a (ii) verossimilhança da informação ou relato, cuja razoabilidade deve ser preliminarmente analisada pela ouvidoria ou corregedoria receptora (Lei 13.608/2018, art. 4º-A); (iii) a isenção de responsabilidade penal, cível (e administrativa), desde que a informação ou relato não decorra de abuso de direito ou má-fé; o (iv) sigilo da fonte ou anonimato impróprio, previsto nos arts. 3º e 4º-B; e (v) recompensabilidade ou remuneração, característica esta decorrente da norma extraída de dois dispositivos distintos, o primeiro, mais amplo e dependente de regulamentação, vem a ser o parágrafo único do art. 4º, da Lei 13.608/2018, ao passo em que o segundo, restrito aos casos de recuperação do produto do crime contra a administração pública, consiste no § 3º do art. 4º-C da mesma lei.
- Natureza jurídica do “informante do bem” (whistleblower)
O “informante ou reportante do bem”, instituto regulamentado pela Lei 13.608/2018, especialmente nos artigos 3º a 4º-C, lembra o tradicional informante ou “dedo-duro” de larga utilização nos meios policiais, conforme amplamente divulgado nos filmes hollywoodianos do gênero policial, mas é uma evolução do tratamento jurídico dispensado à pessoa, em regra não coautora ou partícipe do crime, que telefona para os serviços denominados “disque denúncia” (art. 1º, I), os quais funcionam vinculados a determinados órgãos públicos[36], não raro financiados através de convênios com organizações privadas sem fins lucrativos (art. 2º), tendo aquela pessoa a finalidade de fornecer informações úteis ao combate a criminalidade ou ilícitos administrativos (art. 2º), com ou sem o objetivo de receber uma recompensa (art. 4º, parágrafo único e art. 4º, § 3º), embora essa constitua a grande novidade e o fator de estímulo da novel figura jurídica do informante.
O informante não se confunde com o colaborador regulamentado pela Lei 12.850/2013 (arts. 3º-A usque 7º) ou o delator, pois esses são necessariamente coautores na atividade criminosa investigada, ao passo em que a pessoa que atua como informante é, em regra, um terceiro não envolvido na prática da atividade criminosa, mas que opta por apresentar “informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público”, sem o intuito de obter os benefícios previstos em lei para os colaboradores e delatores.
Embora com ela não se confunda, o informante se assemelha à testemunha, uma vez que esta nada mais é do que aquele ser humano (qualquer pessoa) que capta, através de quaisquer de seus sentidos biológicos, algo que sirva para a reconstituição histórica dos fatos em apuração no processo[37]. O papel a ser exercido pelo informante na investigação (criminal ou administrativa) ou no processo (criminal, administrativo ou civil) difere daquele reservado à testemunha compromissada (CPP, art. 203), em razão da atuação desinteressada desta e do eventual interesse daquele em receber uma recompensa, caso em que passa a ter interesse no resultado do processo e, acaso formalizada a sua oitiva, deve sê-lo na qualidade de testemunha não compromissada (CPP, art. 208, c/c CPC, art. 447, §§ 3º,II, 4º e 5º), hipótese em que a autoridade tomará as suas declarações e “atribuirá o valor que possam merecer”.
Desse modo, arrisca-se afirmar que, na perspectiva das informações captadas, a natureza jurídica do informante, nos moldes da Lei 13.608/2018, incluindo as respectivas alterações introduzidas pelo pacote anticrime, embora com ele não se confunda, assemelha-se à de uma testemunha oculta[38] ou anônima[39] (Lei 9.807/1999, art. 7º, IV), que tomou conhecimento de informações “sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público”, e as relata ao serviço de “disque denúncia” ou similar (art. 2º), às ouvidorias e corregedorias (art. 4º-A) ou, ainda, aos órgãos de controle (Tribunais de Contas, Ministério Público de Contas, CGU etc) e de persecução penal.
Entretanto, na forma como concebido originariamente no cenário internacional, a qual serviu de modelo para a sua positivação através da Lei 13.608/2018, especialmente em relação a sua faculdade de (i) não se identificar ao fazer o relato ou denúncia; ou (ii) identificar-se, mas exigir o sigilo de sua identidade, além do direito pleitear uma recompensa pelas informações prestadas, a sua natureza não é de testemunha ou de prova testemunhal, qualquer que seja a variação dessa (sendo ou não compromissada), mas sim de fonte de indicação de prova ou meio de obtenção de prova, embora possa o informante, em fase posterior e excepcionalmente, funcionar como testemunha.
Não se confunde a natureza jurídica do instituto denominado como “informante do bem” com o conteúdo da informação apresentada pela pessoa que se dispõe a prestá-la ou mesmo com os direitos conferidos pela Lei 13.608/2018. Esses direitos integram uma espécie de negócio jurídico entre o informante e o Estado, embora numa dimensão menos profunda e complexa do que a reservada ao acordo de colaboração premiada[40]. Trata-se de negócio jurídico onde qualquer pessoa se habilita a relatar informações verídicas e úteis à investigação de crimes e ilícitos administrativos, ao passo em que o Estado se obriga a garantir a proteção de sua integridade, garantindo o sigilo de sua identidade e obrigando-se a pagar-lhe um valor correspondente à recompensa[41] prevista nos artigos 4º e seguintes da Lei.
- Valor probatório da “informação do bem”
O informante que atua nos moldes da Lei 13.608/2018 pode apresentar denúncias com reflexos em investigação criminal ou administrativa (inclusive administrativo-disciplinar), sendo possível a sua atuação com distintos papéis ou dimensões.
Na forma mais compatível com integral aplicação dos propósitos da Lei 13.608/2018, ele tem conhecimento de uma informação relevante acerca de determinada situação que caracteriza crime e/ou infração administrativa e opta por reportá-la a algum órgão de persecução penal através do “disque denúncia”, ou mesmo repassando tal informação às ouvidorias, corregedorias (inclusive às corregedorias do Ministério Público e às do Poder Judiciário), órgãos de controle (Tribunais de Contas, Controladorias etc) ou órgãos de persecução penal (polícias, Ministério Público), fazendo-o mediante o resguardo de sua identidade (art. 3º) e com o interesse de obter uma recompensa, especialmente financeira (art. 4º), a qual, em caso de serem relevantes para a recuperação de bens em crime contra a administração pública, pode chegar até a 5% do valor recuperado.
No caso do modelo apresentado no parágrafo anterior, de maior complexidade e integralidade no papel conferido ao informante, assim como em seus direitos, cremos que a sua atuação em eventual processo criminal ou administrativo será de fonte de indicação de prova ou meio de obtenção de prova, mas o conteúdo por ele apresentado poderá ter maior ou menor credibilidade segundo critérios objetivos, vinculados às informações, fontes ou provas que venha a apresentar, e subjetivos, estes vinculados aos exercício ou não das faculdades de anonimato e recompensa, garantidas pela Lei 13.608/2018.
Numa primeira hipótese, de análise objetiva, o chamado “informante do bem” repassa informações consubstanciadas em relatos orais ou escritos, que permitem à autoridade competente, após a necessária certificação do conteúdo por outros meios legais, confirmar se a sua origem é lícita (CRFB, art. 5º, LVI) e se existe verossimilhança no que foi alegado. Presentes essas condições (licitude e verossimilhança), a autoridade prossegue nas investigações, como faria em relação a uma denúncia anônima, ou seja, buscando necessariamente outros meios de confirmação dos supostos fatos, antes de formalizar um inquérito policial, sindicância ou processo, ou mesmo de pleitear, por exemplo, medidas e natureza mais invasivas, como interceptação telefônica ou busca domiciliar .
Pode-se idealizar uma segunda hipótese, em que o informante, além do relato seguro, apresenta elementos concretos de prova (documentos, fotos, áudios com gravação de conversas, filmagens, etc) ou indica de forma concreta as fontes para a obtenção das provas (arquivos, números de contas bancárias, bancos de dados, lista de testemunhas, etc), caso em que caberá também à autoridade fazer o juízo crítico e, se necessário, pericial, relativamente à verossimilhança, à autenticidade e à licitude daquele material, utilizando os materiais apresentados ou adotando providências para obtê-los das fontes apontadas, com vistas a instaurar um procedimento formal de investigação, instruir procedimento ou processo já em cursos ou pleitear medidas cautelares de obtenção de provas ou de outra natureza.
No aspecto subjetivo, em ambas as situações, se idealizarmos um informante do bem (whistleblower), que não tenha interesse na recompensa e que opte por abrir mão do sigilo de sua identidade, poderá inclusive ser ouvido como testemunha (CPP, arts. 202 e 203), hipótese em que terá a qualidade de fonte direta de prova oral, consistindo o seu depoimento em elemento de prova que pode ser aceito normalmente no processo, resguardadas eventuais cautelas quanto ao seu eventual interesse no resultado do julgamento, como aconteceria em também em relação às testemunhas em geral.
Por outro lado, ainda sob o aspecto subjetivo, se o informante não abre mão do direito ao sigilo de sua identidade e pleiteia a recompensa, cremos que atuará tão somente como fonte de indicação de prova ou como meio de obtenção de prova, de modo que a sua própria versão não poderá sequer ser ponderada pelo órgão julgador (criminal ou administrativo) na formação de sua livre persuasão racional ou livre convencimento motivado, especialmente quando for condenatório, pois tratar-se-á de versão não submetida ao necessário contraditório (CRFB, art. 5º, LV), situação que difere parcialmente daquela em que ele não aceita a recompensa e mantém o anonimato, pois neste caso ele pode, excepcionalmente (Lei 9.807/1999, art. 7º, IV), atuar, na fase do investigativa ou processual, em situação similar àquela da testemunha sigilosa ou oculta, lembrando, na assertiva de Diogo Rudge Malan que:
Por testemunha anônima se entende aquela cuja identidade verdadeira - compreendendo nome, sobrenome, endereço e demais dados qualificativos – não é divulgada ao acusado e ao seu defensor técnico. Tal anonimato testemunhal em regra é acompanhado do uso de procedimentos judiciários que impedem o acusado e seu defensor técnico de vislumbrar o semblante da testemunha, e de recursos tecnológicos que distorcem a voz dela durante o seu depoimento em juízo[42].
Desse modo, há inquestionável limitação do direito ao contraditório quando se pretende utilizar, como meio de convencimento do órgão julgador, administrativo ou judicial, os elementos extraídos dos relatos feitos pelo whistleblower, especialmente nos casos em que atue sob anonimato, ainda que sem recompensa, sendo inaceitável que possa esse relato, mesmo corroborado por eventuais declarações prestadas sob anonimato, em juízo, servir de base para a sustentação de eventual condenação em quaisquer das esferas mencionadas, não obstante possa servir para reforçar a livre persuasão racional motivada, quando esta esteja lastreada em outras provas, submetidas ao contraditório pleno.
- Considerações finais
A vertiginosa eliminação das fronteiras nacionais, mediante as inovações advindas do processo de globalização, ainda no século passado, a massiva transferência e circulação de capitais, o incremento da vigilância internacional em razão do terrorismo fundamentalista, os escândalos de corrupção testemunhados nos planos nacional e internacional, bem como a emergência da automação, caracterizadora da chamada Revolução 4.0, constituem o plano de fundo para a regulamentação, a princípio no direito alienígena e internacional, da figura conhecida como “whistleblower”, isto é, do “informante ou reportante do bem”.
Nessa perspectiva, a adoção do instituto conhecido como “informante do bem”, pela ordem jurídica pátria, através da Lei 13.608/2008, harmoniza-se satisfatoriamente com a tendência internacional de enfrentamento à criminalidade organizada, notadamente àquela que atenta contra o interesse público por meio da apropriação ilícita de seus já escassos recursos, tendo em vista a facilidade com que a corrupção institucional tem se espraiado no contexto político-econômico atual.
Assim, reputa-se essencial o desenvolvimento e o aprimoramento de mecanismos e ferramentas destinados ao enfrentamento dessas transgressões, especialmente através da regulamentação e da disseminação da Lei 13.608/2018, a fim de que a cultura brasileira possa assimilar a secular prática estadunidense do “whistleblowing”, consistente no ato de denunciar a ocorrência de atos de corrupção caraterizadores de ilícitos penais ou administrativos, corriqueiramente por funcionários que venham a ter conhecimento de tais irregularidades em seus locais de trabalho.
Cumpre ressaltar que, apesar das controvérsias em torno da previsão de sigilo de identidade, relativamente à pessoa que reporta eventuais irregularidades descortinadas, não há violação ao mandamento constitucional previsto no art. 5º, inciso IV, da Lei Maior, o qual, veda o anonimato em relação à liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento, não alcançando o instituto de “whistleblowing”, o qual possui a natureza fonte de indicação de prova ou de meio de obtenção de prova, estando, portanto, sujeito às regras aplicáveis às provas e não à liberdade de expressão, encontrando os seus limites na vedação constitucional à prova ilícita (CRFB, art. 5º LVI).
Depreende-se, portanto, que a Lei 13.608/2018 lançou as bases para o aperfeiçoamento do arcabouço legal brasileiro de combate à corrupção, mediante a positivação do “whistleblowing” e a proteção dos “informantes ou reportantes do bem”, instituto este que possui aplicação no âmbito penal, em relação aos crimes contra a administração, bem como no âmbito administrativo-sancionador, principalmente em relação à sua dimensão administrativo-disciplinar, constituindo-se em passo decisivo para o enfrentamento da corrupção institucional, responsável por macular a imagem de nosso país perante toda a comunidade internacional.
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