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Feminicídio na Pandemia

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Agenda 22/08/2020 às 18:24

[1] Parceria entre cinco mídias independentes, que monitoram os casos durante o isolamento social, aponta que 195 mulheres foram vítimas de feminicídio em dois meses, segundo dados dos estados. Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a existência da pandemia do novo coronavírus (SARS-Cov-2) no mundo. O vírus letal desenvolve a doença infecciosa Covid-19, que foi identificada por cientistas na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019. Como não existe uma vacina ou remédio que cure a doença e, para evitar o colapso nos hospitais, a OMS sugeriu a quarentena e isolamento social da população no período da incidência da pandemia.

No Brasil, segundo o Ministério da Saúde o primeiro caso do novo coronavírus foi registrado em 28 de fevereiro. Até esta quarta-feira (17 de junho) foram notificados 955.377 casos confirmados da doença e 46.510 mil mortes por Covid-19.

[2]  Mas afinal, o que é gênero? Segundo as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres (ONU Mulheres, 2016), gênero se refere a construções sociais dos atributos femininos e masculinos definidos como papéis percebidos como inerentes à “feminilidade” ou à “masculinidade”. Os papéis de gênero podem ser descritos como comportamentos aprendidos em uma sociedade, comunidade ou grupo social nos quais seus membros são condicionados a considerar certas atividades, tarefas e responsabilidades como sendo masculinas ou femininas.

[3] A violência doméstica é um fenômeno que não distingue classe social, raça, etnia, religião, orientação sexual, idade e grau de escolaridade. Todos os dias, somos impactados por notícias de mulheres que foram assassinadas por seus companheiros ou ex-parceiros. Na maioria desses casos, elas já vinham sofrendo diversos tipos de violência há algum tempo, mas a situação só chega ao conhecimento de outras pessoas quando as agressões crescem a ponto de culminar no feminicídio. A violência doméstica pode, sim, ser denunciada em qualquer delegacia, sem perder de vista, entretanto, que a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) é o órgão mais capacitado para realizar ações de prevenção, proteção e investigação dos crimes de violência de gênero. O acesso à justiça é garantido às mulheres no art. 3º da Lei Maria da Penha.

[4] Em 07 de agosto de 2020 completou-se o aniversário de quatorze anos da Lei Maria da Penha. Infelizmente, com a pandemia de covid-19, as denúncias de violência contra as mulheres, recebidas pelo número 180 cresceram significativamente, desde março, segundo o Ministério, da Família e dos Direitos Humanos. Para a advogada Sandra Lia Bazzo, integrante do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), o isolamento social, imposto pela pandemia, acirrou relações que já eram desrespeitosas e desiguais entre pessoas do mesmo convívio. Para além disso, agregam-se os fatores psicológicos e econômicos, além da ansiedade, desemprego e insegurança financeira.

[5] Menina de 10 anos violentada faz aborto legal, sob alarde de conservadores à porta do hospital. Vítima, estuprada por um tio, foi atendida no Recife após negativa de atendimento na cidade capixaba onde vive, mesmo com aval da Justiça. Ativistas radicais gritavam “Assassino” na porta da clínica neste domingo para que não se cumprisse a lei. Brasil aceita aborto em casos de estupro desde os anos 1940. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html Acesso em 19.8.2020.

[6] Cronômetro da violência contra as mulheres no Brasil: 5 espancamentos a cada 2 minutos Fundação Perseu Abramo 2010; 1 estupro a cada quinze minutos. 9º Anuário da Segurança Pública 2015; 179 relatos de agressão por dia. Balanço Ligue 180 Central de Atendimento à mulher entre jan-jun de 2015; 13 homicídios femininos por dia em 2013 Mapa da violência 2015/ Flacso; Dados compilados no Dossiê Violência contra as mulheres in: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/

[7] “O feminicídio é a ponta do iceberg. Não podemos achar que a criminalização do feminicídio vai dar conta da complexidade do tema. Temos que trabalhar para evitar que se chegue ao feminicídio, olhar para baixo do iceberg e entender que ali há uma série de violências”, afirma Carmen Hein de Campos, advogada, doutora em Ciências Criminais e consultora da CPMI-VCM. Para a especialista, é ainda fundamental compreender que, quando o feminicídio acontece, é porque diversas outras medidas falharam. “Precisamos ter um olhar muito mais cuidadoso e muito mais atento para o que falhou”, conclui.  In: PRADO, Débora; SANEMATSU, Marisa (Organização); Feminicídio #InvisibilidadeMata. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2017.

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[8] O homicídio de mulheres negras aumentou 54% em dez anos. A violência contra as mulheres e os feminicídios aparecem assim um fenômeno que é perversamente social e democrático, que pode atingir qualquer mulher, mas que, ao mesmo tempo, tem características particulares que precisam ser compreendidas, como explica a pesquisadora Wânia Pasinato. “Por isso, além das discriminações baseadas nos papéis de gênero, é preciso compreender as intersecções entre gênero e classe social, geração, deficiências, raça, cor e etnia”, destaca.

[9] Desta forma, entende-se que feminicídio é o homicídio qualificado de mulheres que estão em situação de violência doméstica ou devido a sua condição de mulher. Ele está associado aos crimes de ódio e à misoginia e deriva das estruturas que hierarquizam e menosprezam o feminino na sociedade. Atualmente, no Brasil, ele vai em direção contrária aos índices de homicídio e está em níveis elevados. Como é decorrente de um crime de ódio, ele é incentivado pelas estruturas sociais de desigualdade de gênero, por transmitir a ideia de posse de um homem sobre uma mulher.

[10] A revitimização cometida por agentes do Estado, pois o crime cometido pela negligência do Estado, como também é comum acontecer em casos de feminicídio.

[11] No Pará, o Ministério da Saúde já registrou 74.192 casos de Covid-19 e 4.350 mortes até esta quarta-feira (17 de junho). A população feminina do Pará é de 4.292.000 mulheres, segundo dados do IBGE de 2020. Durante a pandemia, o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) informou à Amazônia Real que o número de processos abertos de violência doméstica contra mulheres chegou a 5.043 de janeiro a março, um crescimento de 17,7% em relação aos 4.281 casos do mesmo período de 2019. Foram abertos nove inquéritos para investigar crimes de feminicídio no mês de março, diz o TJPA.

[12] A explicação para essa violência estrutural contra as mulheres brasileiras está na formação social do país, explica a advogada criminalista Clarissa Nunes, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). "Somos um país que não trabalha sua memória, por isso a gente tende a ignorar como se deu a formação da mulher na sociedade brasileira. Cogitamos de mulheres que foram escravizadas, estupradas e tratadas como mercadoria durante muito tempo. E, por não trabalharmos nossa história, ela se repete tragicamente. A cultura de violência contra as mulheres é enraizada principalmente na questão econômica. Mulheres que até há pouco tempo eram escravizadas e hoje desempenham trabalhos informais na sociedade", argumenta.

In: VILELA, Pedro Rafael. Feminicídio: uma inaceitável epidemia brasileira. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/02/27/feminicidio-uma-inaceitavel-epidemia-brasileira Acesso 17.8.2020;

[13] As medidas protetivas foram consolidadas como um direito das vítimas a partir da Lei Maria da Penha (nº 11.340), em vigor desde 2006, e podem ser concedidas por um juiz mesmo que não tenha sido instaurado inquérito policial ou processo cível.

[14] Há as seguintes modalidades de assassinatos de mulheres reconhecidas como feminicídios, a saber: íntimo (a mulher morre por pessoa com quem tinha, ou tenha tido, uma relação ou vínculo íntimo: marido, ex-marido, companheiro, ex-companheiro, namorado, ex-namorado ou amante, pessoa com quem tem filho). O que inclui a hipótese de amigos que assassina uma mulher (amiga ou conhecida) que negou a ter relação íntima com ele, seja de natureza sentimental ou sexual.

O infantil quando a morte de menina com menos de quatorze anos cometida por âmbito no âmbito de relação de responsabilidade, confiança, ou poder conferido pela sua condição de adulto sobre a menoridade da menina; O familiar (morte de mulher no âmbito de relação de parentesco com agressor). Pode ser por consanguinidade, afinidade ou adoção.

Por conexão, é a morte de mulher que se situa na linha de fogo no mesmo local onde um homem mata ou tenta matar outra mulher. A vítima pode ser parente ou amiga da vítima, ou até uma mulher estranha que se encontrava no mesmo local onde o agressor atacou a vítima. E, por fim, o sexual sistêmico que inclui a morte de mulheres previamente sequestradas, torturadas e/ou estupradas. Há a modalidade desorganizada e organizada.

Também a morte de mulher transgênero ou transexual na qual o agressor mata por sua condição ou identidade de gênero, por ódio ou rejeição é feminicídio. Lesbofóbico que corresponde a morte de uma mulher lésbica na qual o agressor a mata por conta de sua orientação sexual, por ódio ou rejeição. Também por motivação racista (por conta de sua origem étnica, racial ou de seus traços fenotípicos).

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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