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A Justiça Federal e o Sistema S

Agenda 10/09/2020 às 09:39

Escritórios de advocacia ligados a políticos são alvos de busca e apreensão na Operação Jabuti da Lava-Jato por uso indevido de verbas do Sistema S. A competência da Justiça estadual para julgar tais delitos é confirmada pela jurisprudência do Supremo.

I – OS FATOS

Noticiou o Jornal O Globo, em seu site, no dia 9 de setembro do corrente ano, que “o novo desdobramento da operação Lava-Jato aponta para a participação de escritórios de advocacia ligados a políticos que ocupam ou já ocuparam cargos majoritários. Orlando Teixeira e Cristiano Zanin, responsáveis pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; Frederick Wassef, ligado à família Bolsonaro; e Ana Tereza Basílio, que advoga para o governador afastado do Rio, Wilson Witzel, estão entres os principais alvos de buscas e apreensão.”

E ainda se disse:

“A denúncia, oferecida ao juiz Marcelo Bretas, titular da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, sustenta que os envolvidos cometeram crime federal por usar na manobra verbas do Sistema S (no caso Sesc e Senac), provenientes de contribuição social compulsória incidente sobre a folha salarial dos empresários do comércio. Portanto, dinheiro público.”

As investigações partiram da Operação Jabuti, aberta em 2018, e reuniram dados compartilhados de apurações da Receita, Tribunal de Contas da União, da Operação Zelotes, quebras de sigilos telefônico, telemático, fiscal e bancário, e também informações de Orlando Santos Diniz, ex-gestor das entidades paraestatais e delator, diz a Procuradoria.

Entre os alvos de mandados de busca e apreensão estão os advogados do ex-presidente Lula, Cristiano Zanin e Roberto Teixeira, acusados de liderar o esquema. Os dois já se tornaram réus pelo caso.

O advogado Frederick Wassef, ex-defensor da família do presidente Jair Bolsonaro, também é alvo de busca e apreensão.

Ele é suspeito de peculato e lavagem de dinheiro em uma outra frente de investigação sobre supostos desvios, segundo informou o site da Folha.

Segundo a força-tarefa da Lava Jato, o esquema incluía ‘o uso de contratos falsos com escritórios daqueles acusados ou de terceiros por eles indicados, em que serviços advocatícios declarados não eram prestados, mas remunerados por elevados honorários’.

“As apurações comprovaram que Diniz era persuadido pelos integrantes da organização criminosa no sentido de que novos contratos (e honorários) eram necessários para ter facilidades em processos em curso no Conselho Fiscal do Sesc Nacional, no TCU e no Judiciário. Como os contratos eram feitos com a Fecomércio/RJ, entidade privada, o seu conteúdo e os seus pagamentos não eram auditados pelos conselhos fiscais do Sesc e do Senac Nacional, pelo TCU ou pela CGU, órgãos que controlam a adequação dos atos de gestão das entidades paraestatais com a sua finalidade institucional”, indicou o MPF em nota.


II – A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA JULGAR DELITOS NO ÂMBITO DO SISTEMA S

Observo dois pontos com relação ao fato.

A uma, a competência da Justiça Comum Estadual para instruir e julgar crimes cometidos no âmbito do chamado Sistema S.

A duas, porque não há falar que empregado de entidade do sistema S seja servidor público. Ele é empregado sujeito às regras da Consolidação das Leis do Trabalho.

A jurisprudência do Supremo é firme no sentido de que é competência da Justiça estadual o processamento e julgamento de causa em que umas das partes seja entidade paraestatal pertencente ao chamado sistema “S”. Súmula 516.

[ARE 966.048 AgR, rel.min. Edson Fachin, 1ª T, j. 30-9-2016, DJE 221 de 18-10-2016.]

I - O SENAI, a exemplo do Serviço Social da Indústria - SESI, está sujeito à jurisdição da Justiça estadual, nos termos da Súmula 516 do Supremo Tribunal Federal. Os serviços sociais autônomos do denominado sistema "S", embora compreendidos na expressão de entidade paraestatal, são pessoas jurídicas de direito privado, definidos como entes de colaboração, mas não integrantes da Administração Pública. II - Quando o produto das contribuições ingressa nos cofres dos Serviços Sociais Autônomos perde o caráter de recurso público. Precedentes. III - Seja em razão da pessoa, seja em razão da natureza dos recursos objeto dos autos, não se tem por justificativa a atuação do Ministério Público Federal, posto que não se vislumbra na hipótese a incidência do art. 109 da Constituição Federal.

[ACO 1.953 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, P, j. 18-12-2013, DJE 34 19-2-2014.]

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É certo que o SESI e o SENAI, como Serviço Social Autônomo que são, deve prestar contas dos recursos recebidos perante o Tribunal de Contas da União. Todavia, o simples fato de ter suas contas fiscalizadas por esta Corte de Contas não transforma a sua natureza de pessoa jurídica de direito privado em pessoa de direito público, e, tampouco tem o condão de fixar a competência da Justiça Federal, a qual, como é cediço, é fixada em numerus clausus pelo art. 109 da Constituição Federal.

Os entes que compõem o Sistema 'S', chamados entes de cooperação, tem sua personalidade de direito privado, e, embora oficializada pelo Estado, não integra a Administração Direta ou Indireta. Atuam, apenas, em cooperação com o Estado, sendo sua vinculação apenas para fins de controle finalístico e de prestação de contas; é, por excelência, uma entidade paraestatal.

Os chamados Serviços Sociais Autônomos são de natureza jurídica privada e eventuais irregularidades cometidas em seu âmbito, sejam de natureza cível ou criminal, atraem a competência da Justiça Estadual.

Sirvo-me dos argumentos trazidos pelo TRF- 1ª Região, no julgamento dos embargos de declaração no agravo de instrumento nº 007333528.2016.4.01.0000/DF; Processo nº 0005839-91.2016.4.01.3100/AP, em decisão de 12/9/2017. .

É certo que a Segunda Câmara de Revisão e Coordenação do MPF, em apreciação no voto nº 9091/2017, Processo nº 1.16.000.001234/2017-13, entendeu que a competência para esses casos é da Justiça Federal e da atribuição do Ministério Público Federal.

Fala-se que dirigente de entidade ligada ao Sistema S não pratica crime contra a Administração.

Themistocles Cavalcanti (Curso de direito administrativo, 1958, pág. 347, V, pág. 219) expõe:

“Algumas entidades existem que escapam à estrutura geral dos órgãos administrativos. São organizações privadas, mas criadas por lei, e que gozam de certas prerrogativas e a que se atribuem finalidades mais próximas dos serviços públicos, do que mesmo privados e lucrativos. Não se confundem com o serviço público quanto à sua estrutura de subordinação aos órgãos hierarquizados da administração, mas dele se aproximam quanto aos objetivos e finalidades. Vivem, essas entidades, dentro da zona cinzenta que sobre a influência do direito administrativo, embora privadas, por natureza, origem e estrutura jurídica”.

Ainda Themistocles Cavalcanti (obra citada, pág. 347 e 348) citou como entes de cooperação, “os serviços criados pelas Confederações da Indústria – Serviço Social do Comércio – Serviço Nacional da Indústria”.

São órgãos que tiveram sua organização regulada por lei, estatutos aprovados por decreto; fiscalização por parte do Poder Público; nelas há participação de particulares, pessoas físicas ou jurídicas na sua instituição, manutenção, gestão e funcionamento, como ensinou Miguel Seabra Fagundes (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 1967, pág. 41); têm personalidade jurídica de direito privado, podem ser subvencionadas pelo Estado, arrecadando, muitas vezes, em seu favor, contribuições parafiscais, como é o caso do SESC, SESI, SENAI, por exemplo.

Serão esses empregados tratados como funcionários públicos?

O Código Penal afastando controvérsias, determinou com segurança o que se deve entender, para fins de direito penal, diante dos crimes praticados contra a Administração, por seus agentes.

Assim entende-se por funcionário público, aquele que, embora transitoriamente e sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. estão aí concluídos, portanto, não só os funcionários que desempenham cargos criados por lei, regularmente investidos e nomeados, remunerados pelos cofres públicos, como também os que exercem emprego público (contratados, mensalistas, diaristas, tarefeiros, nomeados a título precário), e, ainda, todos os que de qualquer forma, exercem função pública. É realmente o exercício da função pública o que caracteriza o funcionário público perante o direito penal.

Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, parte especial, volume II, 5ª edição, pág. 385) trouxe a lição de Maggiore (II, 111):

“é toda atividade que realiza os fins próprios do Estado, mesmo quando exercida por pessoas estranhas à administração pública. a publicidade da função é, assim avaliada objetivamente, fazendo-se abstração das pessoas que nela são investidas. O que conta não é a qualidade do sujeito, público ou privado, mas a natureza da função. Se esta é tal que o sujeito forme ou concorra para que se forme a vontade do Estado para a obtenção de fins públicos, quem nela está investido se transforma em órgão da administração pública e, somente por isso, torna-se funcionário público”.

Essa noção de função pública gravita em torno da atividade do Estado e não de particulares.

Por certo pode esse exercício da função pública ser voluntário ou obrigatório; permanente ou eventual; gratuito ou remunerado, e sua natureza específica é irrelevante.

São equiparados aos funcionários públicos aqueles que exercem funções, cargos ou empregos em entidades paraestatais, pois estas constituem órgãos descentralizados da administração pública.

Os estudiosos que se debruçaram sobre o tema entendiam que a equiparação a que se refere o parágrafo primeiro do artigo 327 é tão-somente para os efeitos penais correspondentes aos crimes em que o funcionário é sujeito ativo. Sendo assim essa equiparação não prevaleceria para os crimes definidos nos capítulos II e III deste título, limitando-se aos crimes funcionais, como revelaram Nelson Hungria, Magalhães Noronha. Todavia, pensava Heleno Fragoso que os argumentos apresentados em prol dessa limitação não convenciam, pois ela claramente contrastava com o alcance do dispositivo legal.

Observe-se o caso de empregado, de diretor de entidade ligada ao Sistema S, que envolve entidades de direito privado com nítido propósito de colaboração para com o Estado.

Recentemente a Quinta Turma do STJ enfrentou, no julgamento do RHC 111.060.

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu parcial provimento ao recurso em habeas corpus de Lázaro Luiz Gonzaga, ex-presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Minas Gerais (Fecomércio-MG), para afastar a sua condição de servidor público e, em consequência, trancar a ação penal que tramita contra ele em relação aos crimes de peculato, corrupção passiva e fraude à licitação.

O colegiado ressaltou, contudo, que a decisão não impede eventual enquadramento das condutas atribuídas ao réu em outras figuras penais, se for o caso.

Segundo o Ministério Público de Minas Gerais, à época em que era presidente da Fecomércio, Lázaro Gonzaga liderava uma organização criminosa responsável por desviar recursos das entidades integrantes do "Sistema S" – que abrange o Serviço Social do Comércio (Sesc) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) –, bem como da própria federação, além de simular negócios posteriores com a finalidade de falsear a origem do dinheiro.

O ex-dirigente da Fecomércio foi denunciado por associação criminosa, falsidade ideológica, supressão de documentos (por quatro vezes), peculato (quatro vezes), corrupção passiva (quatro vezes), coação no curso do processo (três vezes), fraude à licitação (duas vezes) e lavagem de dinheiro (oito vezes), todos na forma dos artigos 29 e 69 do Código Penal.

Ao STJ, a defesa argumentou que a ação penal deveria ser trancada quanto aos delitos de corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro, diante da inépcia da denúncia, bem como em relação ao crime de fraude à licitação, em virtude da atipicidade material do fato.

Ora, a jurisprudência da Quinta Turma, alinhada a decisões do Supremo Tribunal Federal, entende que não se aplicam aos dirigentes do "Sistema S" a Lei 8.666 /1993 (Lei das Licitações) e o capítulo I do Título XI do Código Penal (o qual tipifica os crimes praticados por funcionários públicos contra a administração em geral).

Em um dos precedentes mencionados (RHC 90.847), a Quinta Turma assinalou que o artigo 327, parágrafo 1º, do Código Penal equipara a servidores públicos quem exerce cargo, emprego ou função em entidades paraestatais, mas estas não integram a administração pública. "Ademais, o produto das contribuições, ao ingressar nos cofres dos Serviços Sociais Autônomos, perde o caráter de recurso público, não havendo se falar em dinheiro público ou particular, mas sim próprio", consignou o colegiado naquele julgamento.

Dessa forma, segundo o ministro Paciornik, não podem ser imputados ao recorrente os delitos de peculato, corrupção passiva e fraude à licitação, bem como não é possível processá-lo pelo crime do artigo 335 do Código Penal (impedir, perturbar ou fraudar concorrência pública), uma vez que a norma foi revogada pela Lei 8.666/1993.

Acrescento, outrossim, que particular, como é o caso de advogado, só comete crime de peculato, crime contra a Administração Pública se é coautor ou partícipe em crime cometido por funcionário público. Ora, nas entidades do Sistema S não há que falar em funcionário público.

Sendo assim, com o devido respeito, considero que não cabe à Justiça Comum Federal, mas à Justiça Comum Estadual, o julgamento dos ilícitos ali imputados, lembrando que os empregados e dirigentes de entidades do sistema S não são funcionários públicos para efeitos penais.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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