2. DA ORIGEM DA CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO
A Cédula de Crédito Bancário foi criada pela lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, com o intuito de atribuir força executiva aos contratos de crédito oferecidos pelos bancos. É claro que as instituições financeiras foram as maiores precursoras na busca desse objetivo, pois são elas que movimentam a atividade financeira do país e são responsáveis pelo bem estar social em matéria financeira, já que gerem o capital aplicado por aqueles que confiam seus rendimentos a essas instituições. É o que observou Humberto Theodoro Júnior:
A criação da cédula de crédito bancário veio ao encontro da necessidade premente e urgente de inovação no cenário nacional à época, em que os financiamentos bancários se tornavam cada dia mais caros e restritos, devido à insegurança e instabilidade das decisões dos pretórios nacionais que fragilizavam os vínculos contratuais. As instituições financeiras vinham enfrentando grande resistência de devedores inadimplentes, tomadores de crédito sob a difundida modalidade de cheque especial ou contrato de abertura de crédito, que, sem retornar sequer o capital recebido ou a parte incontroversa de suas dívidas, postergavam anos a fio as ações executivas sob a alegação de ausência de título executivo líquido, certo e exigível[19].
Na época em que a lei foi criada, o país enfrentava grandes inadimplências nos financiamentos bancários, prejudicando o mercado nacional, pois esses financiamentos ficavam cada dia mais caros e mais difíceis de serem tomados, causando recessão econômica e dificuldade na circulação do crédito.
Isso porque, o judiciário brasileiro não reconhecia, de forma pacífica, que o contrato de abertura de crédito bancário possuía força executiva, mesmo quando acompanhado dos extratos da conta corrente, portanto, as ações executivas perduravam anos a fio, impossibilitando às instituições financeiras a retomada do capital aplicado em favor do tomador do serviço.
Isso porque, havia divergência jurisprudencial quanto ao reconhecimento do contrato de abertura de crédito como título executivo fundamentada no artigo 585 da Lei 5.869/1973 – anterior Código de Processo Civil.
A discussão deu origem à Sumula nº 233 do Superior Tribunal de Justiça, através dos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 148.290-RS de 24/02/1999, que possui o seguinte enunciado: “o contrato de abertura de crédito, ainda que acompanhado de extratos da conta corrente, não é título executivo”.
Diante da impossibilidade de cobrança dos créditos de forma mais rápida e célere, através de uma ação executiva, o que prejudicava o mercado financeiro e causava a recessão econômica, o Poder Executivo resolveu editar a Medida Provisória nº 1925/99, a qual passou por diversas reedições até ser definida pelo nº 2.160-25 de 23 de agosto de 2001, criando a Cédula de Crédito Bancário como título de crédito, com força executiva, passando a ser um documento escrito com conteúdo e forma prescritos em lei, portanto, titulo esse dotado de liquidez e exigibilidade, podendo ser cobrado por meio de ação executiva.
Essa MP vigorou até o ano de 2004 e foi revogada pela aprovação e promulgação da Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004, que, em seu artigo 26, define a Cédula de Crédito Bancário como sendo: “título de crédito emitido, por pessoa física ou jurídica, em favor da instituição financeira ou de entidade a esta equiparada, representando promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade”.
Portanto, com a MP 1925/1999, posteriormente transformada na Lei Ordinária nº 10.931/2004, o contrato de abertura de crédito passou a ser reconhecido como título executivo extrajudicial, possuindo força executiva, pondo fim à discussão quanto a sua certeza e liquidez. Para isso, dispõe o artigo 28 da citada Lei:
Art. 28. A Cédula de Crédito Bancário é título executivo extrajudicial e representa dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível, seja pela soma nela indicada, seja pelo saldo devedor demonstrado em planilha de cálculo, ou nos extratos da conta corrente, elaborados conforme previsto no § 2º.
Contudo, o parágrafo 2º do mesmo dispositivo dispõe que a Cédula de Crédito Bancário deve vir acompanhada de planilha de cálculo e, quando for o caso, dos extratos da conta corrente, cujos documentos devem obedecer a forma prevista nos incisos I e II, senão, vejamos:
§ 2º Sempre que necessário, a apuração do valor exato da obrigação, ou de seu saldo devedor, representado pela Cédula de Crédito Bancário, será feita pelo credor, por meio de planilha de cálculo e, quando for o caso, de extrato emitido pela instituição financeira, em favor da qual a Cédula de Crédito Bancário foi originalmente emitida, documentos esses que integrarão a Cédula, observado que:
I - os cálculos realizados deverão evidenciar de modo claro, preciso e de fácil entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e despesas contratuais devidos, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela de atualização monetária ou cambial, a parcela correspondente a multas e demais penalidades contratuais, as despesas de cobrança e de honorários advocatícios devidos até a data do cálculo e, por fim, o valor total da dívida; e
II - a Cédula de Crédito Bancário representativa de dívida oriunda de contrato de abertura de crédito bancário em conta corrente será emitida pelo valor total do crédito posto à disposição do emitente, competindo ao credor, nos termos deste parágrafo, discriminar nos extratos da conta corrente ou nas planilhas de cálculo, que serão anexados à Cédula, as parcelas utilizadas do crédito aberto, os aumentos do limite do crédito inicialmente concedido, as eventuais amortizações da dívida e a incidência dos encargos nos vários períodos de utilização do crédito aberto.
O contrato de abertura de crédito possui duas modalidades, sendo estas a de crédito fixo e a de crédito rotativo e, ainda que o artigo 26 da Lei 10.931/2004 preveja que a Cédula de Crédito Bancário seja um título de crédito decorrente de operação de crédito de qualquer modalidade, não é sensato, data venia aos que entendem de modo contrário, ser esta modalidade de crédito considerada – sem qualquer ressalva – como sendo um título executivo líquido e certo, tendo em vista que se trata este de um crédito incerto, não previsto no contrato, sendo que a disponibilização do crédito – que sequer constava no contrato – pode ser alterado de forma unilateral pela instituição financeira.
Ademais, quando a Lei retrata a necessidade da Cédula de Crédito Bancário vir acompanhada de planilha de cálculo e dos extratos da conta corrente mediante, formalização específica prevista na norma, ela está se referindo ao contrato de abertura de crédito rotativo, que se trata de um título executivo complexo e não simples, que deve ser elaborado de acordo com os ditames legais.
Há, assim, a necessidade de se elaborar esses documentos de acordo com o previsto na citada Lei e, quando não elaborados da forma prescrita em lei, não podem ser considerados títulos executivos, visto que, nesse caso, não possuirão certeza e liquidez.
2.1. DA ILIQUIDEZ DA CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO ORIUNDA DA MODALIDADE DE CRÉDITO ROTATIVO QUANDO INEXISTENTES REQUISITOS FORMAIS PREVISTOS NO ARTIGO 28, § 2º, I E II DA LEI 10.931/2004
Sabe-se que na modalidade de contrato de empréstimo de quantia fixa, o Banco entrega um crédito ao tomador, estabelecendo no contrato o valor – liberado de uma só vez –, o termo final ou termo inicial e final para pagamento, quando parcelado, e os encargos e despesas contratuais a serem aplicados.
Já o contrato de abertura de crédito rotativo em conta corrente se apresenta como um crédito previamente aprovado e disponibilizado ao tomador, para utilização conforme necessidade do consumidor, ou seja, um limite de crédito que ficará disponível para o tomador, num determinado período de tempo.
Na verdade, a instituição financeira disponibiliza um crédito em favor do financiado e vincula esse crédito a uma conta em nome do mesmo, cujo crédito – disponibilizado – poderá ser utilizado pelo tomador por meio de cheques, saques, recibos, ordens de pagamento, cartas, entre outros, na forma e tempo previstos nestes documentos.
Assim, os valores – efetivamente utilizados pelo financiado – obviamente não estarão previstos no contrato no momento de sua assinatura, mas tão somente o valor total aprovado (disponibilizado) para a referida transação.
Desse modo, como se trata de um crédito disponibilizado – entenda-se, não necessariamente utilizado pelo tomador, pois será posteriormente tomado mediante a necessidade do financiado – não se sabe quanto de dinheiro será efetivamente utilizado ao longo do período de contratação do serviço.
Veja-se a diferença do contrato de abertura de crédito rotativo para o contrato na modalidade de empréstimo de quantia fixa, pois neste, o valor foi disponibilizado e tomado de uma única vez, formulando e se aplicando em cima desse valor, todos os encargos e taxas já previstas no contrato e que podem ser facilmente verificados pelo financiado, como juros, comissão de fiscalização, comissão de permanência, entre outras devidamente contratados, já que esses encargos podem ser verificados quase que no mesmo momento em que o dinheiro foi lançado em favor do contratante, sendo, portanto, um título executivo simples, de fácil constatação, verificação e compreensão.
Contudo, no que se refere ao contrato de abertura de crédito rotativo, este se trata de um título executivo complexo[20] –, pois necessita de uma conta gráfica devidamente elaborada pelo agente financiador, demonstrando o valor liberado e disponibilizado, o valor efetivamente utilizado e a forma de sua utilização e, por fim, os encargos e a forma de incidência desses encargos lançados de acordo com o previsto no instrumento e sobre os valores utilizados, ou seja, não necessariamente sobre o valor total do crédito disponibilizado.
Assim, no caso da Cédula de Crédito Bancário oriunda do contrato de abertura de crédito rotativo, só será certo e líquido o débito que vier acompanhado de conta gráfica devidamente elaborada, nos termos do artigo 28, § 2º, incisos I e II da Lei 10.931/2004.
Isto é, para se tornar um título executivo, a Cédula de Crédito Bancário deve vir acompanhada de conta gráfica, contendo cálculos claros, precisos e de fácil entendimento e compreensão, precisa constar o valor principal da dívida, os encargos e despesas contratuais aplicados, as parcelas de juros e os critérios de sua incidência, multas e demais penalidades, a discriminação das parcelas utilizadas, os aumentos do limite do crédito inicialmente concedido, as amortizações da dívida, e incidência dos encargos nos períodos de utilização do crédito aberto, caso contrário, a Cédula de Crédito Bancário não poderá ser considerada um título executivo, pois inexistente a certeza e liquidez do instrumento.
Os extratos de movimentação da conta devem vir acompanhados de cálculos e liquidação da dívida de forma objetiva, conforme determinado pelos incisos I e II, § 2º do artigo 28 da Lei 10.931/2004.
Além disso, se a cédula de crédito bancário é fundamentada na Lei 10.931/2004 e a respectiva Lei prevê formas especificas de elaboração de cálculos e extratos da operação de crédito contratada na modalidade de crédito rotativo, ao assinar o respectivo contrato o creditado está anuindo com aquilo que está previsto em Lei. Sendo assim, os cálculos e extratos aplicados devem ser aprovados pelo creditado antes de serem lançado na conta, visto que, se a Lei assim determina, não cabe o lançamento desses valores de forma unilateral pela instituição financeira.
Até porque, sendo a cédula de crédito oriunda de um contrato de abertura de crédito rotativo – crédito que será disponibilizado e tomado posteriormente ante a necessidade do contratante – não existe nela – no momento de sua assinatura – nenhuma afirmação do tomador dizendo-se devedor de uma importância certa e determinada que lhe teria sido creditada, visto que nesse tipo de contrato os valores serão devidos apenas após a disponibilização, que somente será realizada posteriormente.
Portanto, a aplicação de encargos e despesas contratuais não podem ser aplicados de forma unilateral pela instituição financeira.
A forma de elaboração desses cálculos e extratos estão previstos na norma justamente para evitar a incerteza e iliquidez desses instrumentos, já que, na modalidade de crédito rotativo, a aplicação desses encargos e despesas ocorrem após a formalização desses contratos e durante o período de utilização dos créditos.
Desse modo, a necessidade de aprovação dos extratos pelo creditado se trata de uma imposição legal, consubstanciando em fase pré-executiva, a fim de dar efetividade ao título – título extrajudicial complexo – que será posteriormente levado a juízo, por meio da ação de execução.
No entanto, atualmente as instituições financeiras ajuízam ações de execução de cédulas de crédito bancário sem obedecer os critérios definidos em Lei, ou seja, incluindo no débito encargos, despesas, juros e demais consectários sem aprovação prévia do creditado, sem definição alguma dessas aplicações e sem qualquer critério objetivo, impossibilitando ao consumidor a verificação do montante devido.
O judiciário, por sua vez, vem aceitando essas execuções e colocando obstáculos à defesa do executado, em total dissonância e afronta ao direito do consumidor, sob o fundamento de que as cédulas de crédito bancário agora são consideradas títulos executivos que não comportam discussão.
Não se discute a validade desses instrumentos, como sendo efetivos títulos de crédito e títulos executivos extrajudiciais, no entanto, o que se discute é a certeza e liquidez desses títulos quando não obedecidas as disposições legais que os regem.
A Lei 10.931/2004 não retirou os requisitos obrigatórios dos títulos executivos, requisitos esses que devem estar presentes em todo e qualquer instrumento de cobrança de crédito, dando-lhes força executiva, mas simplesmente possibilitou a medida judicial executiva de um instrumento de crédito amplamente utilizado, desde que esse instrumento seja elaborado da forma prescrita em Lei, pois, quando presente as imposições legais de elaboração, estarão também presentes os requisitos normativos dos títulos executivos constantes no artigo 783 da Lei 13.105/2015 – Código de Processo Civil.
Como bem ponderado por Humberto Theodoro Júnior:
Ocorre a certeza em torno de um crédito quando, em face do título, não há controvérsia sobre a sua existência; a liquidez, quando é determinada a importância da prestação (quantum); e a exigibilidade, quando o seu pagamento não depende de termo ou condição, nem está sujeito a outras limitações[21].
Dessa forma, a Lei 10.931 não conferiu certeza e liquidez para qualquer cédula de crédito bancário, mas somente àquelas elaboradas de acordo com o imposto no artigo 28, § 2º, I e II, forma essa que dará força executiva às cédulas de crédito bancário, pois, nesse caso, estarão de acordo, também, com os requisitos legais esculpidos no artigo 783 da Lei 13.105/2015 – Código de Processo Civil, sendo estes obrigação certa, líquida e exigível.
No julgamento do Recurso Especial nº 1.291.175[22] oriundo do estado do Paraná e de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, este aduziu que a lei 10.931/04 não permite a utilização da Cédula de Crédito Bancário como mera roupagem do antigo contrato de abertura de crédito. Ao invés disso, deixou claro que o novo título de crédito (CCB), para ostentar exequibilidade, deve vir acompanhado de claro demonstrativo acerca dos valores utilizados pelo tomador. O ministro Relator firmou a seguinte tese:
A Cédula de Crédito Bancário é título executivo extrajudicial, representativo de operações de crédito de qualquer natureza, circunstância que autoriza sua emissão para documentar a abertura de crédito em conta-corrente, nas modalidades de crédito rotativo ou cheque especial. O título de crédito deve vir acompanhado de claro demonstrativo acerca dos valores utilizados pelo cliente, trazendo o diploma legal, de maneira taxativa, a relação de exigências que o credor deverá cumprir, de modo a conferir liquidez e exequibilidade à Cédula (art. 28, § 2º, incisos I e II, da lei 10.931/04).
Dessa maneira, ainda que a Lei 10.931/2004 atribua à cédula de crédito bancário força executiva, não poderá essa cédula ser reclamada em execução se lhe faltarem os mencionados requisitos legais.
Como se sabe, por meio da Súmula 297[23] do Superior Tribunal de Justiça, o Código de Defesa do Consumidor é aplicável nas relações oriundas com instituições financeiras.
Diante disso, a não observância dos requisitos formais para validade da cédula de crédito bancário pelo credor afronta o direito do consumidor, parte vulnerável na relação contratual entre o financiador e financiado, prejudicando o seu direito de ampla defesa, pois, ajuizada a execução, será este instado a pagar a dívida imediatamente sob pena de penhora, conforme previsto no artigo 829 da Lei 13.105/2015 – Código de Processo Civil.