REVISÃO DA VIDA TODA
Para aqueles que são mais entusiastas do Direito Previdenciário, já tiveram alguma notícia sobre uma tal de Revisão da Vida Toda. Se esse não é o seu caso, não se preocupe, esta é a oportunidade para conhecer acerca de um direito altamente rentável na seara da Previdência Social, seja para os operadores do direito ou para os titulares de determinado benefício previdenciário. Então vem comigo conhecer um pouco mais sobre esse tema.
De tempos em tempos, o Poder Legislativo realiza algumas reformas a fim de adequar o regramento previdenciário às necessidades e às possibilidades daquela determinada época. A mudança mais recente foi a Reforma da Previdência, por ocasião da Emenda à Constituição de número 103/2019. Mas não se engane, mudanças, em termos previdenciários, não é uma novidade para quem milita com essa área do direito.
Em 29 de novembro de 1999, entrou em vigor a Lei 9.876 que alterou a redação do art. 29 da Lei 8.213/91. Essa mudança inovou a forma de cálculo do benefício previdenciário, especificamente da aposentadoria e da pensão. Anteriormente o parâmetro aplicado pelo INSS para identificar o valor da aposentadoria, ou melhor, o valor da Renda Mensal Inicial (RMI), termo técnico utilizado, tinha a seguinte redação:
Art. 29. O salário-de-benefício consiste na média aritmética simples de todos os últimos salários-de-contribuição dos meses imediatamente anteriores ao do afastamento da atividade ou da data da entrada do requerimento, até o máximo de 36 (trinta e seis), apurados em período não superior a 48 (quarenta e oito) meses.
Observe, caro leitor, que, de forma prática, nessa modalidade de cálculo, priorizava-se a média aritmética simples dos últimos salários de contribuição. Isso era muito importante a título de planejamento previdenciário. O trabalhador que vinha contribuindo com um salário baixo ao longo da sua história laboral, poderia realizar uma complementação do salário de contribuição ao final de sua vida contributiva e, com isso, aumentar o valor da RMI.
Ocorreu que, com a intenção de ajustar o equilíbrio financeiro e atuarial do fundo previdenciário, em virtude do aumento progressivo de aposentados, o legislador editou a Lei de nº. 9876 de 26 de novembro de 1999. A alteração que nos interessa se refere ao art. 29, o qual disciplinava que:
Art. 29. O salário-de-benefício consiste:
I – para os benefícios de que tratam as alíneas b e c do inciso I do art. 18, na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo, multiplicada pelo fator previdenciário;
II – para os benefícios de que tratam as alíneas a, d, e e h do inciso I do art. 18, na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo. (grifo nosso)
Veja que agora, para fins de cálculo do Salário Benefício, a média aritmética simples passou a considerar 80% dos maiores salários de contribuição de todo o período contributivo. Esse destaque em negrito é proposital. O modelo de planejamento previdenciário mudou radicalmente. Perceba o desespero de quem estava as vésperas de se aposentar, cujo foco de contribuição estava nas últimas 36 parcelas. Na hipótese de se aplicar todo o período contributivo, a média seria drasticamente reduzida, haja vista as parcelas de menor valor vertidas antes do período básico de cálculo de 48 meses.
A fim de corrigir uma injustiça com a mudança das regras do jogo, como diríamos em um linguajar futebolístico, “aos 45 minutos do segundo tempo”, criou-se uma regra de transição, nos termos abaixo:
Art. 3º Para o segurado filiado à Previdência Social até o dia anterior à data de publicação desta Lei, que vier a cumprir as condições exigidas para a concessão dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, no cálculo do salário-de-benefício será considerada a média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição, correspondentes a, no mínimo, oitenta por cento de todo o período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994, observado o disposto nos incisos I e II do caput do art. 29 da Lei no 8.213, de 1991, com a redação dada por esta Lei. (grifo nosso)
Como a nova regra de cálculo passou a vigorar em 28/11/1999, com a finalidade de atenuar os efeitos dessa inovação legislativa, o Período Básico de Cálculo (PBC), em outras palavras, os salários de contribuição, considerados para a média de cálculo, iniciariam em julho de 1994. Assim, para aqueles na iminência de se aposentar, em termos práticos, não haveria muito prejuízo, uma vez que de 07/1994 a 11/1999 teríamos 63 meses.
Nesse momento, o prezado leitor poderia estar pensando que a regra de transição, trazida pelo art. 3º da Lei de n.º 9.876/91, foi justa com os trabalhadores prestes a se aposentar. Sob uma certa perspectiva, sim! Suavizou-se as consequências prejudiciais para aqueles trabalhadores que se planejaram pela regra anterior. CONTUDO, esqueceu-se de um pequeno grupo de trabalhadores, cujo planejamento previdenciário era outro. Para esses trabalhadores completamente ignorados pelo legislador da época, surge a REVISÃO DA VIDA TODA.
Mas o que há de tão peculiar nesse grupo de trabalhadores para terem direito a essa revisão previdenciária? Muitos empregados, de vários setores, como por exemplo bancários, metalúrgicos, técnicos de empresas de telecomunicações, entre outros, no início da atividade laboral, acabaram vertendo contribuições superiores, comparadas às posteriores de 07/1994, inclusive sob o valor do teto do salário de contribuição. Os motivos são vários. Em alguns casos, a empresa acabou falindo e o trabalhador, por fatores estranhos a sua vontade, viu-se obrigado a se submeter a um emprego com um valor bem abaixo do que estava acostumado a receber. Um fator que julgo importante para explicar o declínio dos salários contribuições desse grupo de trabalhadores é que, em razão do plano Real, algumas empresas não se adaptaram muito bem, encerrando suas atividades e promovendo a demissão de seus empregados.
Nesse cenário descrito acima, em que houve um retrocesso dos valores de salário contribuição, a mencionada regra de transição foi extremamente prejudicial, afastando-se de sua finalidade, qual seja, suavizar a restrição de direitos.
Com o objetivo de melhor esclarecer a noção de regra de transição, peço licença para citar o ensinamento de Melissa Folmann e João Marcelino Sores (2011, p. 195):
As regras de transição existem para atenuar os efeitos das novas regras aos segurados já filiados ao regime, que detinham expectativa de direito com base nas regras anteriores. Quando nova regra surge, dividem-se os segurados em três grandes grupos:
a) o segurado que preencheu os requisitos para determinado benefício com fulcro nas regras revogadas – neste caso existe o direito adquirido, incidindo as regras revogadas, se mais benéficas ao segurado.
b) o segurado que iria preencher os requisitos para determinado benefício com base nas regras revogadas – nesta hipótese o segurado não tem direito adquirido, mas tão somente, expectativa de direito.
c) o segurado que se filiou ao regime após a alteração – neste caso, aplica-se somente as regras novas.
É justamente para o segurado que não tinha direito adquirido, mas que tinha expectativa de direito, é que as regras de transição são criadas. Trata-se de maneira diferente o segurado que se encontra em uma situação intermediária, para que o mesmo não seja tratado da mesma forma que os segurados com direito adquirido nem da mesma foram que os segurados que se filiaram ao regime após o advento da regra alteradora.
Exemplo disso ocorreu com as alterações na aposentadoria por tempo de contribuição operadas pela EC20/98. Quem preencheu 25-30 de serviço (se mulher ou se homem) até 15.12.1998, tem direito a aposentação pela regra anterior; quem se filiou ao regime a partir de 16.12.1998 terá direito à aposentação apenas com 30-35 anos (se mulher ou se homem); agora, quem já se encontrava filiado antes de 16.12.1998 e que não preencheu os requisitos da regra anterior, aplica-se a facultativamente as regras de transição do art. 9º,§1º, da EC 20/98. Assim, a regra de transição é facultativa, pois existe para beneficiar o segurado; em nenhuma hipótese pode ser retirado do segurado a possibilidade de optar pela nova regra.
Fica clara que a omissão da lei, com relação a esses aposentados com direito à Revisão da Vida Toda, não foi intencional. Houve, de fato, um esquecimento por parte do legislador que, em direito, nomeia-se como lacuna. Em casos de lacuna legislativa cabe ao Poder Judiciário realizar a integração, termo técnico para preencher um “buraco” da lei.
Em uma situação parecida com a da Revisão da Vida Toda, apenas para elucidar o entendimento sobre a intenção da lei, discutiu-se acerca da criação do Divisor Mínimo. Aqui, nesse ponto, o importante não é saber sobre o que é esse conceito, mas perceber a finalidade do existir da regra de transição: atenuar, suavizar a retirada de direitos. Observe esse trecho de Mario Kendy Miyasaki e Elisangela Cristina de Oliveira (2010, p. 80-81):
“a intenção do legislador quando introduziu a alteração contemplada pela Lei 9.876/99 foi elastecer o período básico de cálculo para alcançar um benefício mais justo, bem como previu o mínimo divisor para evitar que o segurado aumente a contribuição às vésperas da aposentadoria, não é defeso ao interprete, quando necessário buscar contribuições fora do período fixado pelo legislador. Esse entendimento não compromete o equilíbrio financeiro e atuarial, vez que utilizará as contribuições já vertidas pelo segurado, e a renda final mantém coerência ao que foi contribuído pelo segurado”.
Como o Poder Judiciário tem enfrentado esse tema da Revisão da Vida Toda? De modo geral, a jurisprudência tem acolhido essa tese, tendo os advogados que militam com o Direito Previdenciário conquistado sentenças e acórdãos favoráveis em todo o Brasil, tanto no Juizado Especial Federal quanto na Justiça Federal Comum.
Tendo em vista uma certa quantidade de ações versando sobre essa revisão, bateu as portas do Superior Tribunal de Justiça essa discussão sob o Tema 999, por ocasião do julgamento do REsp Representativo de Controvérsia 1.554.596/SC, o qual se reconheceu o direito, firmando o presente dispositivo:
Aplica-se a regra definitiva prevista no art. 29, I e II da Lei 8.213/1991, na apuração do salário de benefício, quando mais favorável do que a regra de transição contida no art. 3o. da Lei 9.876/1999, aos Segurado que ingressaram no Regime Geral da Previdência Social até o dia anterior à publicação da Lei 9.876/1999.
Inconformado com a decisão do STJ, o INSS interpôs Recurso Extraordinário, alegando matéria constitucional. Em que pese um grande número de juristas afirmarem não haver controvérsia constitucional na Revisão da Vida Toda, mas somente infraconstitucional, o Supremo Tribunal Federal, em juízo de admissibilidade, acolheu os argumentos do Recorrente, estabelecendo o Tema 1102 que será enfrentado e julgado pelo STF. Não há prazo o julgamento.
Até a data da publicação desse artigo, a Revisão da Vida Toda se encontra suspensa, aguardando o julgamento final.
É importante frisar que, embora o julgamento do Tema 1102 se encontre suspenso, os aposentados ou os pensionais que suspeitarem ter direito a essa revisão, devem procurar um advogado especialista em direito previdenciário para que esse possa proceder com o cálculo. Apenas depois desse cálculo, será possível identificar o direito. São documentos indispensáveis para esse cálculo os seguintes: a) Carta de Concessão e b) Extrato CNIS.
Em suma, recomenda-se que o interessado não perca tempo, pois trabalha contra ele o prazo decadencial, ou seja, há o prazo de 10 anos a contar da Data do Início do Benefício. Depois dos 10 anos não será possível ingressar em juízo.
- FOLMANN, Melissa e SORES João Marcelino. Revisões de Benefícios Previdenciários, Juruá Editora. São Paulo. 2011.
- MIYASAKI, Mario Kendy; OLIVEIRA, Elisangela Cristina. Revisão Previdenciária do Mínimo Divisor. Curitiba:Juruá, 2010.