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O saneamento básico e o federalismo à brasileira:

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4. ADI 1.842: postulações, manifestações e votos[54]

O Partido Democrático Trabalhista – PDT, em 10 de junho de 1998, ajuizou a citada ADI 1.842[55] postulando a decretação da inconstitucionalidade de preceitos normativos da Lei Complementar n. 87[56] e da Lei Ordinária n. 2.869[57], promulgadas respectivamente em 16 e 18 de dezembro de 1997, ambas do Estado do Rio de Janeiro, sendo que a primeira (LC 87/1997) instituiu a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, indicando vários Municípios, inclusive a cidade do Rio de Janeiro, com vistas à organização, ao planejamento e à execução de funções públicas e serviços de interesse metropolitano ou comum, e a segunda (Lei 2.869/1997) dispôs sobre o regime de prestação do serviço público de transporte ferroviário e metroviário de passageiros no Estado do Rio de Janeiro, e sobre o serviço público de saneamento básico no Estado do Rio de Janeiro.

Segundo o partido requerente, nos citados diplomas normativos fluminenses há violações aos seguintes mandamentos da Constituição Federal: princípio democrático e do equilíbrio federativo, autonomia municipal, princípio da não intervenção dos Estados nos Municípios, e competência comum da União, do Estado e do Município. Os dispositivos constitucionais, apontados pelo requerente, como supostamente agredidos são os seguintes:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

 Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

...

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:

Art. 60...

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.        

§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

O argumento central esgrimido pelo requerente consiste na tese segundo a qual os serviços públicos de saneamento básico são de interesse local e a titularidade desses serviços pertence aos Municípios, não estando os Estados autorizados a usurpar essa titularidade, ainda que utilizando do expediente de criação de regiões metropolitanas.

O então governador do Estado do Rio de Janeiro defendeu a validade da legislação impugnada.[58] Segundo o requerido, a Constituição Federal autoriza uma interpretação favorável à competência comum e à criação de regiões metropolitanas visando a redução de custos e ao aumento da eficiência na prestação de serviços públicos complexos e caros, como o saneamento básico, razão pela qual não se trata apenas de serviços de “interesse local”, mormente em regiões de conurbação, mas de interesse comum que exigem a intervenção do Estado e dos Municípios, e não apenas destes. Na mesma toada as informações prestadas pelo então presidente da Assembleia Legislativa respectiva. [59]

O advogado-geral da União[60] e o procurador-geral da República[61] se manifestaram pela improcedência do pleito. Para o AGU a instituição de regiões metropolitanas possui respaldo constitucional e se justificam pela oportunidade de transferir obras e serviços públicos de alto custo e complexidade para uma administração mais aparelhada e eficiente, e que esses serviços não são de exclusivo interesse local municipal, mas de interesse regional. Para o PGR a Constituição Federal autoriza a criação de regiões metropolitanas e que essas podem conviver com as respectivas autonomias municipais, sendo que não há óbice constitucional a imposição do dever municipal ao acatamento das diretrizes da respectiva região metropolitana.

Na qualidade de amici curiae, oficiaram o Estado da Bahia[62], o Estado do Rondônia[63] e a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo[64]. Nas manifestações ofertadas, esses amici curiae defenderam a possibilidade de convivência entre a autonomia municipal e as regiões metropolitanas, e que o direito constitucional de autonomia dos Municípios deve estar em harmonia com as diretrizes e deveres impostos pelas leis estaduais relativas às regiões metropolitanas, de sorte que os interesses comuns regionais não devem ser afastados em desfavor dos interesses locais municipais.

Após todas essas manifestações processuais, ora em favor da validade da legislação combatida ora em desfavor dessa legislação, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou o mérito da controvérsia e por maioria deu parcial procedência aos pedidos deduzidos e, por uma questão de conveniência, resolveu modular os efeitos de sua decisão nos seguintes termos:

Em razão da necessidade  de continuidade da prestação da função de saneamento básico, há excepcional interesse social para vigência excepcional das leis impugnadas, nos termos do art. 27 da Lei n. 9.868/1998, pelo prazo de 24 meses, a contar da conclusão do julgamento, lapso temporal razoável dentro do qual o legislador estadual deverá reapreciar o tema, constituindo modelo de prestação de saneamento básico nas áreas de integração metropolitana, dirigido por órgão colegiado dos municípios pertinentes e do próprio Estado do Rio de Janeiro, sem que haja concentração do poder decisório nas mãos de qualquer ente. [65]

No mérito, superadas as preliminares processuais que não interessam neste artigo, da ementa do acórdão extraem-se as seguintes e mais relevantes passagens, que sumarizam os entendimentos que prevaleceram na Corte:

3. Autonomia municipal e integração metropolitana.

A Constituição Federal conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os estados e o Distrito Federal (art. 18 da CF/1988).

A essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo.

O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.12.1999).

O interesse comum inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais.

4. Aglomerações urbanas e saneamento básico.

O art. 23, IX, da Constituição Federal conferiu competência comum à União, aos estados e aos municípios para promover a melhoria das condições de saneamento básico.

Nada obstante a competência municipal do poder concedente do serviço público de saneamento básico, o alto custo e o monopólio natural do serviço, além da existência de várias etapas – como captação, tratamento, adução, reserva, distribuição de água e o recolhimento, condução e disposição final de esgoto – que comumente ultrapassam os limites territoriais de um município, indicam a existência de interesse comum do serviço de saneamento básico.

A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal.

Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante o arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal 11.445/2007 e o art. 241 da Constituição Federal, como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas.

A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos. Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal.

5. Inconstitucionalidade da transferência ao estado-membro do poder concedente de funções e serviços públicos de interesse comum.

O estabelecimento de região metropolitana não significa simples transferência de competências para o estado.

O interesse comum é muito mais que a soma de cada interesse local envolvido, pois a má condução da função de saneamento básico por apenas um município pode colocar em risco todo o esforço do conjunto, além das consequências para a saúde pública de toda a região.

O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre municípios e estado. É necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos municípios.

Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse colegiado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto.

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Nada obstante, o relator originário do feito, ministro Maurício Corrêa[66], votou pela improcedência dos pedidos deduzidos e pela validade constitucional da legislação impugnada. Segundo Maurício Corrêa, o interesse comum regional prevalece sobre o restrito interesse local. E que as regiões metropolitanas estariam muito mais habilitadas a encontrarem as soluções para os problemas, de modo integrado, do que os Municípios de modo isolado. Isso, inclusive, iria ao encontro de fortalecer o pacto federativo, em uma interação conjunta e harmônica entre os Estados e os respectivos Municípios da região metropolitana.

Em favor de seu entendimento, Maurício Corrêa evoca o art. 25, § 3º, CF:

Art. 25 - Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

(....)

§ 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios 1imítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções publicas de interesse comum.

Fiando-se em precedente do STF (ADI 1.841) que reconheceu como válida a possibilidade de integração metropolitana compulsória, Maurício Corrêa assentou:

12. Por óbvio, esse agrupamento de Municípios, que decorre inicialmente da necessidade física concreta de formação de conglomerado urbano único, não se dá para fins meramente acadêmicos, geográficos ou algo parecido, mas efetivamente para cometer ao Estado a responsabilidade pela implantação de políticas unificadas de prestação de serviços públicos, objetivando ganhar em eficiência e economicidade, considerados os interesses coletivos e não individuais. Os problemas e os interesses de cada núcleo urbano passam a interagir de tal modo, que acabam constituindo um sistema sócio-econômico integrado, sem que com isso possa admitir-se a ocorrência de violação à autonomia municipal, tendo em vista o comando constitucional autorizador.

...

14. Indaga-se, no caso desses aglomerados, o que se pretende com a delimitação de uma área de serviços unificados. Busca-se a personificação de um ente para fins de administração centralizada, que planeje a atuação pública sobre território definido e que coordene e execute obras e serviços de interesse comum de toda a área, de sorte que a população seja atendida com eficiência. Por outro lado, a complexidade das obras e dos serviços metropolitanos, invariavelmente de altíssimo custo, não permite que os Poderes Executivos municipais, de forma isolada, os satisfaçam. Como o interesse da sociedade, aliás direito público oponível contra o Estado, é de âmbito regional e não apenas local, a Constituição autorizou a instituição desses aglomerados, sempre por lei complementar pela relevância de que se revestem.

Louvando-se nas manifestações da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União, Maurício Corrêa votou, no mérito, pela improcedência dos pedidos e pela constitucionalidade da legislação impugnada, entendendo que o interesse comum regional prevalece sobre o interesse local municipal.

O ministro Joaquim Barbosa[67] divergiu e colocou a questão nos seguintes termos: a região metropolitana viola a autonomia municipal?

Portanto, é preciso examinar o problema por dois prismas complementares : (i) a restrição à autonomia dos       municípios metropolitanos dá-se desde a configuração normativa constitucional, e não a partir da criação individual de cada região metropolitana, e (ii) a autonomia municipal realiza-se quando o município, num contexto metropolitano, tem preservada a capacidade de decidir efetivamente sobre os destinos da região.

Assim, a criação de uma região metropolitana não pode, em hipótese alguma, significar o amesquinhamento da autonomia política dos municípios dela integrantes, materializado no controle e na gestão solitária pelo estado das funções públicas de interesse comum. Vale dizer, a titularidade do exercício das funções públicas de interesse comum passa para a nova entidade público-territorial administrativa, de caráter intergovernamental, que nasce em conseqüência da criação da região metropolitana. Em contrapartida, o exercício das funções normativas, diretivas  e administrativas do novo ente deve ser compartilhado com paridade entre o estado e os municípios envolvidos.

Nessa perspectiva, segundo Joaquim Barbosa, a transferência direta ou oblíqua de competências tipicamente locais para o Estado, em consequencia da criação de uma região metropolitana, não é compatível com a Constituição. Daí que o referido ministro entendeu como inconstitucional a prestação estadual dos serviços públicos de saneamento básico.

O ministro Nelson Jobim[68] acompanhou a divergência inaugurada pelo ministro Joaquim Barbosa. Segundo Jobim:

Estamos diante de um problema que transborda os limites da interpretação literal da Constituição. A questão exige do Supremo, mais do que tudo sensibilidade política, econômica e social para uma solução que seja constitucionalmente aceitável e que não inviabilize por completo o setor e prejudique o cidadão – usuário do serviço. Muitas decisões políticas e administrativas estão no aguardo do julgamento dessa questão e da fixação da titularidade do serviço.

Na construção de seu voto, Jobim principia formulando as seguintes indagações: o Estado pode se atribuir parte da competência executiva e legislativa dos Municípios com base no art. 25, § 3º da CF? O que consiste uma região metropolitana? Qual a sua função e seu papel no sistema constitucional brasileiro?

Após resgatar as origens das regiões metropolitanas, analisando aspectos históricos e de direito comparado, Jobim avança na evolução das autonomias constitucionais dos entes federados brasileiros, com especial destaque à municipal. E alcança uma conceituação de região metropolitana como “organismo administrativo de viabilidade de funções públicas de interesse comum que seria naturalmente de competência do Município”. E conclui que o “Município continua a ser o titular das funções executadas pela região, muito embora seja, por imposição de lei estadual, uma titularidade que somente pode ser exercida em acordo ou em consenso com os demais Municípios”. Daí que não cabe ao Estado se atribuir competências exclusivas dos Municípios mediante a instituição de região metropolitana.

Nesse caminho, Jobim visita o tema do saneamento básico e, segundo ele, é um dos tópicos mais espinhosos do direito constitucional e administrativo brasileiro, que tem oferecido, ainda segundo o citado ministro, dificuldades fundamentais quanto ao que constituem as atividades relacionadas ao saneamento básico e a forma diversificada como o problema vem sendo enfrentado no Brasil. Resgatando a história das políticas de saneamento básico no Brasil, das competências municipais e das ações públicas federais e estaduais na criação das empresas estaduais de saneamento básico, Jobim toca no delicado assunto dos “subsídios cruzados” como estratégia para a prestação de serviços nas localidades menos lucrativas. E, segundo ele, esse modelo, que feria a autonomia municipal, permitiu a expansão do serviço público de saneamento básico, ainda que de modo desigual. E assinala que o serviço tem sido prestado, segundo a abrangência, no Brasil da seguinte maneira: prestação de abrangência estadual, regional e municipal.

Em seu voto, Jobim discorre sobre as várias possibilidades de prestação dos serviços de saneamento básico, os seus modelos técnicos e operacionais, bem como a questão da sustentabilidade financeira, demonstrando a complexidade normativa e operacional da questão, como uma das mais relevantes políticas públicas brasileiras, assinalando que o saneamento básico é serviço público indivisível, mesmo que beneficiando vários Municípios.

Nelson Jobim externou as seguintes respostas às perguntas iniciais que formulou: que o Estado não pode, com base no art. 25, § 3º, CF, se atribuir parte das competências dos Municípios; que a região metropolitana é uma associação de Municípios, determinada por lei complementar estadual, que, por equivalência de interesse, devem atuar em certos temas de maneira coordenada, integrada e consensual; que a criação de região metropolitana é importante avanço na unificação e planejamento de políticas públicas em aglomerados urbanos, mas não pode servir de pretexto para a limitação da autonomia municipal em benefício da competência estadual.

Daí que, na conclusão de seu voto, Jobim assinalou:

A competência estadual em matéria de aglutinações municipais se exaure na instituição e na criação de uma estrutura de organização e funcionamento dentro dos critérios trazidos pela Constituição.

Assim, é claramente responsabilidade do Estado criar condições econômicas e técnicas para que toda a população receba um serviço universal e de qualidade: a) por meio de aproximações de Municípios superavitários e deficitários; e b) aproximação de Municípios com abundância de recursos hídricos com pouca oferta de água em relação à sua demanda.

São inconstitucionais os dispositivos que regulem, como se fosse competência estadual, o regime jurídico de concessionárias ou permissionárias de serviços públicos de natureza municipal, como o saneamento básico.

São ainda inconstitucionais os artigos que atribuam o controle e a  fiscalização desses serviços a órgãos vinculados à administração estadual, salvo se isso advir de autorização dos Municípios que compõe o aglomerado e por meio de convênio de cooperação.

No voto que proferiu, o ministro Gilmar Mendes[69] propôs a modulação dos efeitos da decretação de inconstitucionalidade para que não houvesse prejuízo aos usuários dos serviços públicos de saneamento básico, em medida de boa razão e judiciosa prudência, visto que a nulidade da legislação impugnada, com a sua imediata execução, poderia provocar o caos nesse relevante e valioso serviço público.

Após longa manifestação, Gilmar Mendes assim concluiu o seu voto:

Nesses termos, entendo que o serviço de saneamento básico – no âmbito de regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerados urbanos – constitui interesse coletivo que não pode estar subordinado à direção de único ente, mas deve ser planejado e executado de acordo com decisões colegiadas em que participem tanto os municípios compreendidos como o estado federado.

Portanto, nesses casos, o poder concedente do serviço de saneamento básico nem permanece fracionado entre os municípios, nem é transferido  para o estado federado, mas deve ser dirigido por estrutura colegiada – instituída por meio da lei complementar estadual que cria o agrupamento de comunidades locais – em que a vontade de um único entes não seja imposta a todos os demais entes políticos participantes.

Esta estrutura colegiada deve regular o serviço de saneamento básico de forma a dar viabilidade técnica e econômica ao adequado atendimento do interesse coletivo.

Ressalte-se que a mencionada estrutura colegiada pode ser implementada tanto por acordo, mediante convênios, quanto de forma vinculada, na instituição dos agrupamentos de municípios. Ademais, a instituição de agências reguladoras pode se provas como forma bastante eficiente de estabelecer padrão técnico na prestação e concessão coletiva do serviço de saneamento básico.

Segundo Gilmar Mendes a controvérsia estava centrada em dois valores constitucionais: a autonomia municipal e a integração por meio das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Na construção de seu voto, Gilmar Mendes resgata o relevo histórico da autonomia municipal na experiência brasileira que seria, inclusive, anterior à autonomia estadual e ao próprio federalismo. Também analisa os vários sentidos normativos possíveis do termo autonomia municipal, com lastro em respeitável magistério doutrinário, inclusive com excursões no direito comparado.

Pondera Gilmar Mendes, após dissertar sobre a evolução urbana e das cidades, que duas dificuldades agravam-se nas novas estruturas: i) a inviabilidade econômica e técnica de os municípios implementarem isoladamente determinadas funções públicas e ii) a possibilidade de um único município obstar o adequado atendimento dos interesses de várias comunidades.

Tocando no ponto nevrálgico da controvérsia (a questão da titularidade do serviço público de saneamento básico), Gilmar Mendes defende que não pode ser exclusiva do Município contido em região metropolitana, mas compartilhada entre os Municípios e o Estado, de sorte a impedir a concentração do poder decisório e regulatório, seja no Estado, via órgão estadual na região metropolitana, seja exclusivamente no Município, com lastro no interesse local.

O ministro Ricardo Lewandowski[70] acompanhou, em linhas gerais, o entendimento externado pelo ministro Gilmar Mendes. Segundo Lewandowski:

A questão básica que se discute neste julgamento é saber a qual dos entes  federados deve ser atribuída a titularidade das funções públicas de interesse comum nas regiões metropolitanas e em outras entidades territoriais de natureza assemelhada, com todas as consequências que a solução a essa indagação acarreta.

Há três possíveis soluções para tal questão: (i) conferi-la integralmente ao Estado instituidor; (ii) deferi-la, de modo exclusivo, aos Municípios que as integram; ou (iii) permitir o seu compartilhamento entre o Estado e os Municípios.

Na mesma toada dos outros votos, Lewandowski faz um recorte histórico e conceitual da região administrativa, da autonomia municipal, das competências constitucionais e do federalismo. E no concernente a questão da região metropolitana, assinalou:

... para a efetivação dos valores constitucionais em jogo, segundo entendo, basta que nenhum dos integrantes do ente regional seja excluído dos processos decisórios que nele ocorrem, ou possa, sozinho, definir os rumos de gestão deste. Também não me parece aceitável, do ponto de vista constitucional, que a vontade do conjunto dos Municípios prevaleça sobre a do Estado instituidor do ente regional ou vice-versa.

O ministro Teori Zavascki[71] acompanhou a linha perfilhada pelo ministro Gilmar Mendes. Em seu voto conciso, preciso e objetivo, Teori Zavascki suscitou reflexão que merece ser recordada:

O certo é que, independentemente da definição, aqui, sobre o sistema constitucionalmente mais adequado para a gestão das regiões metropolitanas, essa matéria, no meu entender, está reservada, em grande medida, à discrição política do legislador estadual, que deverá levar em consideração as circunstâncias territoriais, sociais, econômicas e de desenvolvimento próprios de cada agrupamento de municípios. Aqui nós temos que reservar o tema à avaliação política do legislador, que, obviamente, poderá ser submetida, se for o caso, ao crivo de um exame de constitucionalidade. Todavia, independentemente do critério que se venha a adotar - que no meu entender deve ficar, em grande medida, reservada ao legislador complementar estadual -,independentemente desse sistema, repito, é certo que ele não pode se constituir em pura e simples transferência de competências municipais para o âmbito do Estado-membro, como ocorreu no caso em exame. Esse fundamento é, por si só, suficiente para um juízo de procedência da declaração de inconstitucionalidade das normas.

A ministra Rosa Weber[72] também secundou o voto do ministro Gilmar Mendes. Em seu voto assinalou Rosa Weber:

Em tal contexto, pode-se compreender nação como uma abstração que ganha concretude quando a vida social e política ultrapassa as relações locais, porquanto é no Município que se operam as interações sociais face a face, que se adquire uma identidade social, que a interação social sai da esfera privada da família, que os interesses e necessidades públicos podem ser sentidos concretamente e que se percebe a ideia de bem comum, além de outros exemplos.

...

O Município, portanto, na sociedade moderna, é a forma política da comunidade. A preservação da autonomia político-administrativa municipal é uma forma de proteção da autodeterminação política, pois no espaço do Município o cidadão comum está próximo dos seus representantes, tem a chance de conhecê-los pessoalmente, pode demandar as suas necessidades pessoais e discutir as coletivas. Não é por acaso que a Constituição reserva ao Município a competência para tratar daquilo que é o interesse local (art. 30 da Lei Maior).

Esses são os votos escritos constantes no acórdão da ADI 1.842 que enfrentaram o mérito da controvérsia sobre a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico e sobre os modelos de prestação desses serviços, à luz do federalismo brasileiro.

Sobre os autores
Christianne Dias Ferreira

Presidente da Agência Nacional de Águas; professora universitária, mestra e doutoranda em Direito das Políticas Públicas, Centro Universitário de Brasília.

Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Christianne Dias; ALVES JR., Luís Carlos Martins. O saneamento básico e o federalismo à brasileira:: Uma breve análise acerca da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.842. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6383, 22 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87319. Acesso em: 22 nov. 2024.

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