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A impossibilidade de vacinação compulsória contra o covid-19 às luzes das normas internacionais de direitos humanos

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Agenda 28/01/2022 às 16:20

Ante a declaração da vice-diretora da OMS não recomendando a realização da vacinação compulsória, verifica-se que, nos termos do Regulamento Sanitário Internacional, o Brasil estaria proibido de adotar essa medida, salvo esclarecimento posterior da OMS.

Resumo: A pandemia gerada pelo vírus SARS-CoV-2 provocou transtornos internacionais e gerou, no âmbito da administração pública interna dos mais variados países, a adoção de medidas para a prevenção, bem como o tratamento da doença que é transmitida justamente por este vírus. Uma das medidas mais relevantes em âmbito nacional consiste na possibilidade da realização da vacinação compulsória da população com o intuito de imunizar as pessoas das doenças causadas pela COVID-19. Sob a ótica dos direitos humanos internacionais, o presente artigo pretende demonstrar que inexiste viabilidade jurídica, ao menos momentaneamente, para a adoção dessas medidas, tornando-se, ao final das contas, neste caso em específico, escolha a cargo do indivíduo submeter-se à vacinação ou não, sendo inviável o Estado tomar medidas coercitivas para fazer valer a dita pretensão.

Palavras-Chave: Direitos humanos. Vacinação compulsória. COVID-19. OMS. Constituição Federal. Normas supralegais.

Sumário: 1. Introdução. 2. Normas legais, constitucionais e supralegais. 3. A relação da saúde com os Direitos Humanos Internacionais. 4. Da especificidade acerca da vacinação compulsória contra o COVID-19. 5. Dos mecanismos de proteção contra violações de Direitos Humanos: Sistema Interamericano de Direitos Humanos. 6. Conclusões. 7. Referências bibliográficas.


1. Introdução

De início, cumpre destacar que o presente artigo não versará em momento algum sobre qualquer tipo de vertente negacionista acerca da vacinação individual ou coletiva no âmbito dos Estados, nem tampouco com a impossibilidade de se concretizar eventual vacinação compulsória acerca de doenças conhecidas, constantes no calendário nacional de vacinação e em consonância com a Organização Mundial da Saúde (OMS), que já foram resolvidas por intermédio deste procedimento.

O que o presente artigo analisará será a impossibilidade de, neste caso específico sobre o COVID-19, que o Estado concretize eventual pretensão de vacinação compulsória, tendo em vista que, conforme se demonstrará, tal medida afronta de forma direta determinados estatutos internacionais que refletem os Direitos Humanos, mais notadamente aqueles relacionados à saúde individual.

A doença foi encontrada pela primeira vez no dia 1 de dezembro de 2019, em Wuhan, uma província da República Popular da China, mas o caso somente foi relatado às autoridades internacionais no dia 31 de dezembro de 2019.

Dado que o vírus SARS-CoV-2, transmissor do COVID-19, possui um alto grau de transmissibilidade de pessoa a pessoa, no dia 22 de janeiro de 2020 a OMS reuniu um comitê de emergência para discutir se a referida doença constituía um cenário de Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional, sendo que, em um primeiro momento, a entidade internacional entendeu que não seria o caso de se declarar uma emergência imediata. Contudo, no dia 30 de janeiro de 2020, a OMS decidiu rever o seu posicionamento e declarar que o surto de fato era uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional. Em decorrência disto, no dia 11 de março de 2020 a OMS declarou que a Emergência era, de fato, uma pandemia de âmbito global.

Em decorrência desses eventos, antes mesmo que fosse declarado o estado de pandemia por parte da OMS, o governo federal editou a Lei n.º. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavirus, responsável pelo surto de 2019. Dentre as medidas a serem adotadas por parte das autoridades federais, estaduais e municipais, está, justamente, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas (art. 3º, III, d, da referida lei).

A referida fundamentação legal está sendo invocada por uma série de autoridades nos mais variados níveis federativos como forma a possibilitar uma eventual vacinação compulsória de toda a população contra a doença gerada pelo vírus SARS-CoV-2 (COVID-19), mesmo com a comprovação de mortes em voluntários em decorrência dos efeitos adversos causados por essas vacinas que ainda estão em fase de teste[2].

A questão inclusive ganhou espectros políticos quando o chefe do poder executivo do Estado de São Paulo disse que vacinaria, de forma obrigatória, toda a população deste Estado, enquanto o chefe do poder executivo federal disse que a vacina deveria ser voluntária.

O caso inclusive foi judicializado no âmbito do Supremo Tribunal Federal nas ADIs 6.586 e 6.587, bem como pela ADPF 754.

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É certo que no âmbito da jurisdição interna, ao realizar uma análise superficial da questão, exista a possibilidade de que se efetive a vacinação compulsória contra o COVID-19 em toda a população, contudo, de acordo com os tratados internacionais que versam justamente sobre a questão da interferência do Estado no âmbito da saúde individual e coletiva, tem-se que a questão encontra um grave óbice, impedindo, justamente, a possibilidade de que o Estado concretize as tais medidas coercitivas.


2. Normas legais, constitucionais e supralegais

Antes de perscrutar o mérito sobre a impossibilidade que o Estado efetive medidas coercitivas com o intuito de obrigar a população a se vacinar especificamente contra o COVID-19, é de extremo rigor deixar claros alguns conceitos jurídicos fundamentais acerca das normas legais, constitucionais e supralegais.

De acordo com a teoria da hierarquia normativa estatuída por Hans Kelsen, adotada pelo ordenamento jurídico pátrio, tem-se que a Constituição Federal ocupa a posição de norma suprema em relação as demais, ou seja, todas as outras normas deverão, de forma obrigatória, obedecer às regras ali previstas.

Exsurgindo a interpretação acerca da hierarquia das normas, tem-se que toda a norma inferior à Constituição Federal será inconstitucional e deverá ser extirpada do ordenamento jurídico caso as suas pretensões estejam em desacordo com as diretrizes emanadas pelo Diploma Supremo. Indo além: será inconstitucional inclusive as Emendas Constitucionais que, futuramente, forem tidas como violadoras dos preceitos estatuídos pelo Poder Constituinte Originário.

Logo, as normas de natureza constitucional são aquelas que ocupam o topo da hierarquia jurídica, e as normas legais são justamente as leis infraconstitucionais e os tratados internacionais comuns, que ocupam a base do ordenamento jurídico.

Contudo, é certo que a disciplina dos Direitos Humanos ocupa um âmbito de destaque global, no sentido de procurar garantir, em âmbito global, o devido respeito às liberdades individuais, bem como de outros preceitos de vertente jusnatural atinentes à dignidade da pessoa humana. Além disso, de acordo com o art. 4º, II da Constituição Federal, tem-se que A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: prevalência dos direitos humanos.

Observa-se que o Poder Constituinte Originário deu fundamental importância à disciplina dos Direitos Humanos ao transcrever um princípio de atuação do próprio Estado no sentido de defender, respeitar e fazer valer os Direitos Humanos em âmbito internacional.

Analisando-se o conceito de hierarquia de normas com os tratados ratificados pela nação relacionados aos Direitos Humanos, tem-se, por óbvio, que essas normas não podem ocupar um nível semelhante ao das normas infraconstitucionais, sob pena de infringir o próprio texto constitucional que se comprometeu em respeitar e defender essas disciplinas.

E é justamente por este motivo que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, no RE 466.343, o caráter da supralegalidade das normas que versarem sobre Direitos Humanos, ou seja, reconheceu que essas normas seriam superiores àquelas de caráter infraconstitucional, mas inferiores à Constituição Federal, localizando-se em um meio-termo entre ambas.

Os tratados internacionais, quando qualificados como direito supralegal, obviamente são colocados em grau de hierarquia normativa superior à da legislação infraconstitucional, embora inferior à da Constituição.

O acórdão proferido no RE 466.343, ao reconhecer a ilegitimidade da legislação infraconstitucional que trata da prisão civil do depositário infiel em face do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), enfatizou que, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Vale dizer que a legislação infraconstitucional, para produzir efeitos, não deve apenas estar em consonância com a Constituição Federal, mas também com os tratados internacionais dos direitos humanos. Nessa perspectiva, existem dois parâmetros de controle e dois programas de validação do direito ordinário: além da Constituição, o direito supralegal está a condicionar e a controlar a validade da lei.

Isso significa que a lei, nesta dimensão, está submetida a novos limites materiais, postos nos direitos humanos albergados nos tratados internacionais, o que revela que o Estado contemporâneo – que se relaciona, em recíproca colaboração, com outros Estados constitucionais inseridos numa comunidade – tem capacidade de controlar a legitimidade da lei em face dos direitos humanos tutelados no País e na comunidade latino-americana.[3]

Importante dizer que as convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais, por conta do §3º do art. 5º da Constituição Federal incluído pela Emenda Constitucional n.º. 45 de 2004.

Tem-se, desta forma, que matérias que versem sobre Direitos Humanos serão hierarquicamente superiores às legislações infraconstitucionais, e que, de acordo com o art. 4º, II da Constituição Federal, a nação brasileira deverá pautar as suas atitudes com base na prevalência dos direitos humanos.


3. A relação da saúde com os Direitos Humanos Internacionais

É de crucial importância diferenciar os direitos da personalidade dos direitos fundamentais, e, por fim diferenciá-los com os Direitos Humanos.

Direitos da personalidade são aqueles previstos na parte Geral do Código Civil de 2002, constituem atributos inerentes à vida humana, e estão dispostos no referido Código para possibilitar a eventual responsabilização pela prática de algum dano de natureza extrapatrimonial.

Conceituam-se os direitos da personalidade como aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais.

A ideia a nortear a disciplina dos direitos da personalidade é a de uma esfera extrapatrimonial do indivíduo, em que o sujeito tem reconhecidamente tutelada pela ordem jurídica uma série indeterminada de valores não redutíveis pecuniariamente, como a vida, a integridade física, a intimidade, a honra, entre outros.

A matéria está prevista expressamente pelo CC/2002, no Capítulo II do Livro I, Título I, da sua Parte Geral.

Não há a menor dúvida de que o ser humano é o titular por excelência da tutela dos direitos da personalidade.[4]

Os direitos fundamentais são aqueles valores inatos à vida humana, que, porém, encontram-se positivados no próprio texto constitucional, que elenca princípios como os da liberdade, igualdade, segurança, propriedade, dentre outros.

Por fim, os Direitos Humanos são aqueles reconhecidos como inatos à vida humana, que, porém, encontram-se positivados por intermédio de tratados e convenções aceitos pelas comunidades internacionais. O caráter internacional dos Direitos Humanos se deu principalmente por conta da necessidade de se parametrizar o trato do indivíduo contra um eventual Estado violador de garantias individuais mínimas.

Os Direitos Humanos de âmbito internacional jamais são impostos contra os Estados, tendo em vista que, em âmbito internacional, a soberania desses entes devem ser respeitadas, contudo, caso o Estado ratifique normas que versem de alguma forma sobre disciplinas íntimas desse escopo que pretende defender os valores do indivíduo, a troco da limitação de sua própria atuação, este deve, por óbvio, respeitar a sua própria decisão. Não há, em hipótese alguma, a verificação da violação da soberania do Estado quando este é punido justamente por violar normas de Direitos Humanos que voluntariamente decidiu assumir para si.

Surge, desta forma, o enigma da internacionalização dos direitos humanos[5], pensado pelo professor André de Carvalho Ramos, no sentido de se indagar: por qual razão um Estado soberano limitaria as suas próprias ações, criando obrigações para si mesmo, e, em muitos casos, até mesmo se submetendo a jurisdições de âmbito internacional em prol da defesa do indivíduo? Muitas são as razões, principalmente aquelas de ordem política, contudo, tem-se que, se um Estado exerce a sua soberania e ratifica uma norma dessa natureza, este obviamente deverá respeitá-la, em razão de manter a própria lógica de sua decisão, inclusive em âmbito interno, avaliando, por intermédio do poder judiciário, a convencionalidade de aplicação de determinada norma internacional de Direitos Humanos no caso concreto.

E dentre os Direitos Humanos, temos aqueles de primeira geração, relacionados com a liberdade do indivíduo, os de segunda geração, relacionados com a igualdade dos indivíduos, e os de terceira geração, voltados à fraternidade social que deve ser mantida dentro de um Estado Democrático. Dentre a segunda geração de direitos, temos, aqueles vetores relacionados à efetiva atuação do Estado perante o desenvolvimento do indivíduo, sendo de seu dever assegurar a assistência social, educação, cultura, trabalho, e, igualmente, a saúde.

Nos termos do artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem-se que:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.[6]

Já em âmbito interno, o Brasil ratificou a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que, em seu artigo XI do capítulo primeiro, dispõe que toda pessoa tem direito a que sua saúde seja resguardada por medidas sanitárias e sociais relativas à alimentação, roupas, habitação e cuidados médicos correspondentes ao nível permitido pelos recursos públicos e os da coletividade[7].

O próprio Decreto n.º. 3.321, de 30 de dezembro de 1999, que promulgou o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, previu que o Estado deveria garantir, como direito subjetivo do indivíduo, a proteção à sua saúde:

Direito à Saúde

1. Toda pessoa têm direito à saúde, compreendendo-se como saúde o gozo do mais alto nível de bem-estar físico, mental e social.

2. A fim de tomar efetivo o direito à saúde, os Estados-Partes comprometem-se a reconhecer a saúde como bem público e, especialmente, a adotar as seguintes medidas para garantir esse direito:

a) assistência primária a saúde, entendendo-se como tal à assistência médica essencial ao alcance de todas as pessoas e famílias da comunidade;

b) extensão dos benefícios dos serviços de saúde a todas as pessoas sujeitas à jurisdição do Estado;

c) total imunização contra as principais doenças infecciosas;

d) prevenção e tratamento das doenças endêmicas, profissionais e de outra natureza;

e) educação da população com referência à prevenção e ao tratamento dos problemas da saúde; e

f) satisfação das necessidades de saúde dos grupos de mais alto risco e que, por sua situação de pobreza, sejam mais vulneráveis.

Desta forma, verifica-se a íntima relação do direito à saúde com os Direitos Humanos, principalmente aqueles de segunda geração, sendo reconhecidos desde o passado de acordo com a Constituição Mexicana de 1917, a Constituição de Weimar de 1919 e o Tratado de Versalhes de 1919 que fundou a OIT, e ratificados pelo Brasil.

Sobre o autor
Rodrigo Nunes Sindona

Advogado, mestre em direito pela FADISP, especialista em direito tributário, previdenciário e empresarial pela EPD, direito penal e constitucional pela Faculdade LEGALE, Defensor Dativo junto ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SINDONA, Rodrigo Nunes. A impossibilidade de vacinação compulsória contra o covid-19 às luzes das normas internacionais de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6785, 28 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87465. Acesso em: 24 nov. 2024.

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