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À procura da definição de República

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Agenda 25/12/2020 às 13:29

O texto aponta as diferentes definições da república que surgiram ao longo de sua evolução histórica e, coloca que contemporaneamente ainda procuramos a sua cristalina definição.

Palavras-Chave: Ciência Política. Direito Constitucional.
República. Forma de Estado. Constituição Federal brasileira.

Dentro da moderna tipologia das formas de Estado, ab initio, o termo “república” se contrapõe à monarquia. E, onde o Chefe do Estado que pode ser uma só pessoa ou mesmo um colégio de pessoas (Suíça) que é eleito pelo povo, seja de forma direta ou indireta (assembleias primárias ou representativa).

No entanto, o significado do termo “república” muda constantemente e profundamente, vindo a adquirir conotações diversas conforme o contexto onde é inserido.

De fato, com a res publica dos romanos que definiam uma nova forma de organização de poder após a exclusão dos reis. O termo corresponde ainda na cultura grega, a uma das acepções de politeia.

Põe em relevo a coisa pública, a coisa do povo, o bem comum, a comunidade enquanto se cogita em monarquia, aristocracia, a democracia realça o princípio do governo[1] (archia).

Devemos a Cícero[2] ser o pioneiro em definir a res publica, ao demonstrar que por povo se há de entender no monis hominum coetus quoquo modo congutus, se molitudenis iuris consensus et utilitaris communione sociatus.

Ao sublinhar os elementos distintivos da República o interesse comum e, principalmente, a conformidade com a lei comum, o único direito pelo qual a comunidade afirma a sua justiça.

Portanto, os conceitos de república, democracia e justiça estão profundamente ligados.

Qualquer debate sobre a república brasileira deve principiar com uma reflexão sobre o conceito de República sob o âmbito histórico. O que necessariamente acarreta análise em torno de três eixos principais e interrelacionados, a saber: a definição do termo  República, a inserção do conceito em seu contexto originário (greco-romano), buscando apreender  a caracterização da produção político-ideológica da sociedade clássica, dentro da perspectiva de longa duração e sublinhando os aspectos que tanto distanciam e os que aproximam do mundo moderno e contemporâneo.

Primeiramente, um conceito em acepção universal corresponde a uma representação mental de um objeto, feita por meio de suas gerais características. Todo conceito nos remete a um que só pode ser avaliado na sua relação com outros termos ou no contexto cultural.

Afinal, a linguagem deve ser concebida como um elemento integrante da vida social e cotidiana, ainda que que esta, não seja capaz de traduzir fielmente a realidade em sua plenitude e verdade.

E, visto deste ângulo, o conceito é relevante material para profícua análise histórica, posto que seja parte do código simbólico e linguístico, expresso num sistema de signos construídos e materializados socialmente e amplamente reconhecidos pelos membros da comunidade.

A descodificação desse sistema nos permite a reconstrução do imaginário coletivo, das ideologias, dos hábitos e valores relativos à sociedade que o engendrou e às suas formas de permanência em outros contextos históricos.

O dicionário trivialmente indica que a filiação etimológica do termo "república" com latim res publica, ou seja, coisa pública, evidenciando raízes históricas dessa palavra tão contemporânea e, simultaneamente, tão antiga que remonta ao mundo latino, e, por extensão, à Grécia Antiga, substrato da cultura romana.

Em verdade, não se pode ignorar que muitas vezes, que os fundamentos políticos, jurídicos e filosóficos do mundo ocidental e, ipso facto, do Brasil, foram edificados na tradição greco-romano-judaico-cristã.

Daí surgiram e se afirmaram os processos racionais de organização comunitária que deram origem às noções de cidadania e participação do ovo, aos princípios filosóficos e éticos de conduta, às primeiras leis escritas, as regras consagradas do direito romano e, naturalmente, à experiência republicana.

Já tão incorporada definitivamente à civilização ocidental, tais criações são de tal maneira atuantes em nosso cotidiano político, social e mental que só nos cabe admitir a sua atualidade.

A importância do conceito república, na prática política ocidental é exemplo dessa vitalidade, pois nenhum elemento simbólico pode subsistir amparado do fenômeno real. Um vocábulo, nessas condições, se tornaria letra morta, rapidamente.

Geralmente, nos voltamos para o passado clássico e o interrogamos, sobre os nossos dilemas habituais, buscando ouvir aquelas vozes que ecoam nosso presente. A recuperação do diálogo entre o mundo greco-romano e a modernidade, incluindo o mundo contemporâneo, significa promover exercício de autoconhecimento e a ampliação da crítica política e social[3], através da investigação cuidadosa de certos postulados ideológicos, nas condições em que estes foram postos inicialmente.

O significado do conceito de república[4] é escrito ao longo da história, buscando as permanências entre as culturas humanas, entre momentos cronologicamente distintos. E, entendê-lo como elemento simbólico que, tornado objeto de análise, nos conduz a uma compreensão melhor não só do grupo particular que o construiu a sociedade greco-romana, mas de todos aqueles que o elegeram como modelo político.

As heranças culturais clássicas não devem ser consideradas meras "sobrevivências" de uma sociedade remota e amorfa, condenada ao desaparecimento; ao contrário. elas constituem vivências vigorosas, sempre renovadas no decorrer da dinâmica histórica, cuja atualização vai refletir as especificidades de contextos sociais diferenciados, que obedecem a racionalidades distintas.

Não podemos comparar stricto sensu sociedades pré-industriais, como o mundo greco-romano, e a sociedade brasileira, inserida nos quadros do capitalismo internacional; é sabido que cada cultura deve ser considerada na sua peculiaridade, o que torna imperativa a elaboração de um campo teórico coerente sobre o mundo antigo.

Por outro lado, não podemos subestimar as evidências de que "existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Tais questões foram colocadas pela Nova História, sobretudo, a partir dos anos sessenta, e, em especial, pela História das Mentalidades, que trata da psicologia coletiva, fazendo fronteira com a psicanálise, mas não se confundindo com esta.

As mentalidades se ocupam das estruturas mentais de base, da maneira de sentir e pensar de um povo[5], de um grupo, nos seus traços mais gerais e não estritamente racionais, subjacentes à realidade material, mas a esta necessariamente ligados.

A sua investigação não se coloca na esfera dos fenômenos sociais objetivos, mas se dirige à representação desses fenômenos, expressos nos documentos e monumentos construídos a partir do imaginário coletivo[6].

Na linha proposta por Georges Duby[7] e Jacques Le Goff[8], as mentalidades são colocadas no centro do corpo social, utilizadas como o meio esclarecimento do real. Nesse caso, estas estão assentadas numa totalidade histórica que inclui, simultaneamente, a civilização material (o trabalho, a economia, as leis) e os aspectos espirituais (sonhos, mitos, crenças, representações), articuladas numa mesma estrutura e integradas no movimento histórico global.

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Assim, cada sociedade particular, cada micro-história é integrada numa duração global, recuperando a ideia básica da história como processo social e, dessa forma, preservando a própria historicidade, do ponto de vista de sua capacidade de síntese.

O berço da res publica é a cidade-Estado aristocráticas, sendo a república definida dicionarizadamente como uma organização política de um Estado com vistas a servir à coisa pública, ao interesse comum.

A política compreendida como métodos e táticas formais e informais, como o governo é conduzido e as decisões são tomadas e ainda a ideologia dominante situa-se entre as atividades mais excepcionais do mundo clássico.

Com efeito, esta foi uma invenção grega, ou talvez, invenções separadas dos gregos, etruscos e/ou romanos, no âmbito da cidade-Estado, uma comunidade autogovernada, composta de centro cívico e/ou econômico (centro urbano) e um território adjacente, do qual tirava seus meios de subsistência. Por ser pequena em área e população convencionou-se denominá-la de cidade-Estado.

A cidade-Estado[9] é considerada a espinha dorsal da sociedade de clássica, o elemento catalisador sem o qual essa civilização permaneceria ininteligível.

A despeito da associação frequentemente estabelecida entre exercício político e democracia, verificamos que não há uma relação unívoca entre ambos, do ponto de vista histórico. A cidade-Estado de Roma (diferentemente de algumas cidades gregas) não só desconheceu a democracia, como conduziu a sua República até o Império despótico.

A República nasceu[10] e se desenvolveu em solo aristocrático, o que não invalida o caráter do avanço histórico ocorrido com a sua instalação. Isto porque a ordem republicana se sustentava através de regras predominantemente laicas, racionais e construídas socialmente, configurando um grau de elaboração bem mais sofisticado, se comparado à simplicidade da estrutura monárquica, sagrada e mítica.

No entanto, as cidades democráticas e aquelas aristocráticas eram regidas por uma ideologia, comum, até certo ponto, às duas formas de regime. Assim, a proposição interminavelmente afirmada por gregos e romanos é que a condição essencial para uma   verdadeira polis e para a “vida boa” pressupõe “o governo pelas leis, não pelos homens”.

Essa pretensão à virtude é defendida por Platão na sua   obra “Politeia”, mais conhecida como “A República” devido, provavelmente, às traduções romanas posteriores.  Democracia e oligarquia compartilhavam essa mesma pretensão.

Mas devemos esclarecer que o critério que exigia leis fixas e publicamente conhecidas era marcado por um raciocínio eminentemente prático e pela prudência: a crença no interesse comum significava a promessa de estabilidade, a capacidade de evitar o conflito frequente e sua forma extrema, a guerra civil.

O princípio do interesse comum[11] foi a base da teoria política grega e iria nortear o pensamento romano e toda reflexão política ocidental.   A reflexão política se iniciou, efetivamente, com os gregos, cuja mentalidade foi profundamente marcada pelo racionalismo[12].

Diferentemente de seus contemporâneos orientais, cuja visão de mundo era rigorosamente ditada pela religião, os gregos trilharam o caminho do pensamento intelectual, procurando apreender a realidade sob o ponto de vista da razão, e especulando sobre tudo aquilo que lhes causava espanto e admiração. 

Ainda assim, não podemos nos esquecer de que, conforme assinala Finley[13], “todo ato público na Antiguidade era precedido de uma tentativa de obter ‘apoio’ sobrenatural, através de preces, sacrifícios e promessas”, inclusive na Grécia e em Roma.

Platão e Aristóteles[14] foram os primeiros pensadores sistemáticos e os primeiros teóricos políticos autênticos da Antiguidade. Os primeiros a tentarem uma descrição completa e coerente da organização ideal da sociedade, assente na metafísica, na epistemologia, na psicologia e na ética.  Tais pensadores trabalharam e   escreveram num nível de abstração, refinamento e generalização filosófica tão elevado, que, frequentemente, colocava-se fora do alcance de seus compatriotas.

Na reflexão política grega, o Estado era concebido como uma associação ética para a busca da virtude, como também um instrumento de justiça.

A ciência política[15], nesse caso, deveria determinar o que era o “Bem” para a sociedade, concretizado através da ação política. “A República” de Platão reflete bem esse espírito, trazendo uma preocupação em salvaguardar o princípio vital do interesse comum, seriamente abalado com a crise da democracia (no século IV a.C.) e o lento esfacelamento de suas instituições. 

Acredito mesmo contemporaneamente, permanecemos à procura do conceito de república.

Platão apontou como principal malefício do regime democrático a manipulação da Assembleia por demagogos que, com sua oratória brilhante, monopolizavam os debates e obtinham os votos necessários para aprovação de seus projetos e de suas ambições   pessoais. 

Dessa forma, “A República”[16] platônica apresentava soluções para o aperfeiçoamento do sistema, indicando, entre outras, a criação de uma classe especializada de governantes e um órgão para a realização do bem comum. A República funcionava como uma espécie de manual para o estadista, papel reservado aos filósofos, na divisão de funções estabelecida por Platão.

Esse cunho prático pode ser sempre encontrado no pensamento grego. Como Aristóteles, Platão buscava o Estado ideal em que os conflitos fossem transcendidos no interesse da vida boa para todos, mas insistia em afirmar que nenhum Estado, passado ou presente, atingirá ou se aproximará desse nobre objetivo.

Os gregos foram muito lidos em Roma e o modelo democrático chegou mesmo a servir de inspiração para alguns legisladores e tribunos, como os Gracos, embora sua implementação esbarrasse nos ditames da estrutura aristocrática.

Conforme já foi sublinhado anteriormente, a República romana permaneceu aristocrática ao longo de sua história, não tendo a mesma necessidade de enfrentar o complexo quebra-cabeça de disposições constitucionais, que caracterizaram a democracia grega.

Talvez, por isso, os romanos jamais tenham desenvolvido a teoria e a discussão políticas de modo tão exuberante como ocorrera na Península Balcânica. Foi somente no século I a.C. (quando a república agonizava), com Cícero, que Roma pôde presenciar uma reflexão política do gênero da que os gregos tinham estado familiarizados   desde o século V.  Cícero estabeleceu os fundamentos da república, calçados, a exemplo das cidades gregas, no princípio do interesse comum, embora se   distinguisse daquelas na execução prática do conceito. 

A sua obra dileta, De Res Publica, pelo título e pela forma dialogada, revela a marca do texto homônimo de Platão. A obra incluía comentários sobre o funcionamento e o “espírito” do sistema político romano, notadamente os métodos pelos quais a plebe era tão   completamente mantida sob controle.  Nesta encontramos a definição clássica de República, citada nos livros I e III.

“É pois a  República  coisa  do  povo, considerando  tal,  não  todos  os  homens  de  qualquer  modo  congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum (...) aquilo que tem o seu funcionamento na igualdade dos direitos e na comunhão de interesses (...) a ‘coisa pública’ é verdadeiramente coisa do povo, sempre que administrada com justiça e sabedoria”.

O vocábulo “povo”[17] se refere, nesse caso, exclusivamente ao conjunto dos cidadãos na posse plena dos seus direitos cívicos. O termo “República”, ou “Res Publica”, tem o significado de coisa pública. 

Nos Dicionários Latino-Português e Latino-Vernáculo res é tratado como coisa, objeto, ser, e publica, palavra feminina, traz o sentido original de meretriz, ou seja, aquela que pertence a todos. As formas publicus, publicum correspondem ao que é geral, ordinário, vulgar, do que concerne ao povo e ao bem comum.

Essas noções, ao que parece, se constituíram em oposição aos privilégios políticos de uma elite religiosa que dominara por muito tempo os destinos da comunidade, quando esta ainda era conduzida sob o signo do sagrado e do mistério.

O conceito res publica, ao contrário, sugere um momento de abertura da participação cívica, simbolizada na formulação de uma terminologia   claramente popular, cujo significado, profundamente arraigado nas mentalidades, gozava de ampla ressonância na cultura romana.

Como afirmamos anteriormente, a vitalidade de um conceito depende de sua integração na práxis social[18]. Mas, em solo romano, a marcha da consolidação da cidadania pobre e de suas reivindicações não teve prosseguimento, tendo sido interrompida em algum momento de sua história.

Os seus fundamentos básicos, no entanto, eram os mesmos que haviam inspirado a democracia grega; os critérios eram semelhantes e o princípio do governo da lei se mantinha.

A grande linha divisória entre as cidades-Estados democráticas e as oligárquicas girava mais em torno de suas formas de governo e a condução da política, do que sobre os princípios que as norteavam. Diante do exposto, torna-se possível uma segunda constatação conclusiva:  a estrutura republicana é grega, mas o conceito de república é romano (grifo meu).

Os gregos introduziram os mecanismos essenciais ao funcionamento da República: o regime da lei, a noção de cidadania, a eleição dos magistrados pela Assembleia, o caráter colegiado e rotativo dos cargos públicos, noções essas capitaneadas pelo princípio do interesse comum, que sustentava a legitimidade política e o arcabouço institucional.

Couberam aos romanos a criação da terminologia res publica e a sistematização do conceito, fazendo da civita latina uma experiência republicana efetiva, calcada na ideia fundamental do interesse comum e nos princípios da res publica na modernidade[19].

A concepção moderna de República  –  que  atravessa  a  contemporaneidade – preserva parte dos princípios originais mencionados, conforme indica a definição atual, encontrada no Novo Dicionário Aurélio: a República  é  uma  “organização  política de um Estado com vista a servir ao interesse comum”, ou ainda, “um sistema  de  governo  em  que  um  ou vários  indivíduos  eleitos  pelo  povo exercem o poder supremo por tempo determinado”.

Parece que o grande diferencial entre a concepção clássica e a moderna está no seu fundamento ético. A polis grega, núcleo original da reflexão política, era uma sociedade funda mentada numa ética coletiva. O interesse comum e o bem comum foram tratados como uma coisa só.

O Estado, confundido com o governo, tinha, para Aristóteles, um estatuto ontológico, imbuído de espírito moral, não se resumindo a uma composição de funções. A racionalidade política clássica era essencialmente teleológica: as teorias, de Platão a Cícero, trazem o finalismo da ideia do Bem.

A melhor constituição seria, nesse caso, aquela que ordenasse as condições mais adequadas para a realização de um fim que é a justiça, na cidade onde une a ciência do bem e a ação política, a ética e a política[20], segundo a mesma razão.

Essa associação se desfez, de acordo com o Padre Henrique Vaz[21], na teoria política moderna. Maquiavel, a exemplo de Platão, descreveu certas regras de ação para o chefe de Estado, na obra intitulada “O Príncipe”, com a finalidade de consolidar o seu poder.

Mas, “O Príncipe” como expressão da mentalidade veiculada pela Renascença, no contexto de afirmação do individualismo burguês e do sentimento nacionalista, mas, não traz as razões de ordem moral do tipo grego, pois o objetivo básico se tornara a obtenção de uma eficácia dos resultados, perseguida no exercício do poder.

A política passou a ser identificada com a técnica do poder: “O fazer e o produzir se tornaram fins em si, submetendo todos os meios e rejeitando os fins propriamente éticos.”.

Por conseguinte, podemos dizer, na forma de uma constatação final, que a ideia da vida política no Ocidente moderno não pôde renunciar aos princípios fundamentais da herança clássica: a legitimidade, a realização da justiça[22] e o interesse comum.

Tais princípios estão presentes no modelo democrático burguês, que caracteriza grande parte das Repúblicas Ocidentais contemporâneas. Mas aqui estes seguem uma orientação distinta, desviando-se do postulado ético original.

Alguns teóricos atribuem a esse hiato a responsabilidade, ao menos parcial, dos sintomas de crise generalizada por que passa a sociedade ocidental, agravada, nos últimos anos, pelos conflitos políticos, étnicos, religiosos e socioeconômicos. 

Hannah Arendt[23], por exemplo, no seu livro “Entre o Passado e o Futuro” apontou para o impasse do pensamento contemporâneo, decorrente da dissolução dos padrões clássicos greco-romanos e a sua transformação em valores “funcionais”.

Segundo a doutrinadora, como advento da modernidade, os conceitos formulados na tradição clássica se apartaram da realidade fenomênica, tornando “formas ocas” as palavras-chaves da linguagem política, o que gera uma profunda lacuna, a ser, necessariamente, corrigida. 

Por isso, ela propõe o resgate de parte dessa tradição, numa nova perspectiva metodológica, que promova a circularidade entre fatos e teorias, retornando a certos conceitos básicos “tais como liberdade e justiça, autoridade e razão, responsabilidade e virtude, poder e glória”.

Esse exercício intelectual poderia contribuir para o alargamento da reflexão política do século XX, através da inserção de perguntas relevantes no quadro da perplexidade contemporânea. No Brasil, tal impasse atinge contornos muito exacerbados, haja vista a gratuidade de certas falas político-partidárias, em que a consistência cede lugar a uma retórica oportunista.

No Estado brasileiro[24],  os  postulados  democráticos se  afirmam no plano do discurso  e  da  teoria,  principalmente a prática política que parece estar  mais  próxima  do  modelo republicano  clássico-romano, voltada para os  interesses privados  de  uma  elite  econômica  e burocrática, que ignoram a grande massa de excluídos, aviltados nos seus direitos de participação política efetiva  e de igualdade de oportunidades. 

Esse panorama se expressa no arcaísmo de nossos quadros institucionais, tradicionalmente marcados pelo fisiologismo, pelo nepotismo e outras posturas discutíveis, num contexto dramático dentro de crise social e econômica agudas.

Trata-se também de uma crise ética[25] que exige uma redefinição dos valores e das regras para uma ação política eficiente, consciente e conhecedora das demandas públicas mais urgentes.

Uma tarefa que ainda se encontra na sua fase embrionária de implementação e que envolve a sociedade brasileira no seu conjunto, ou seja, a sociedade política e a sociedade civil.

O redimensionamento da república brasileira requer, na dicção de Hannah Arendt, um aprofundamento radical do conceito de república e, de seu fundamento ético, do sentido coletivo nele implícito, ou seja, a realização da justiça social[26] e do interesse comum dos cidadãos.

Quem sabe, num futuro próximo, possamos fazer da nossa res publica uma democracia de fato, à serviço de necessidades da maioria de uma população, de modo a integrá-la no exercício pleno da cidadania.

O tema é além de extenso, muito complexo e, não se esgota nessas parcas considerações levantadas. Todavia, valendo-nos da lição de Ciro Flamarion Cardoso[27], que: “Os exemplos apresentados devem ter sido suficientes para mostrar que a temática da cidade-Estado e sua racionalidade intrínseca constitui o ponto focal do conjunto de estudos e pesquisas que se voltam para a elucidação da história da Antiguidade Clássica”.

Entre nós, no Brasil, a vigente conjuntura política tem provocado um novo interesse por tal história, por ter sido a civilização da cidade-Estado a primeira a se colocar as questões relativas à legitimidade do poder, à participação e à democracia.

As respostas que lhes deram diferem das que hoje são propostas, mas o fato de tê-las formulado pela primeira vez garantem-lhe uma atualidade reconhecida.

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

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