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Uma nomeação que afronta a lei

Agenda 02/01/2021 às 09:35

O artigo discute divulgada nomeação para a ANTT, diante dos princípios que regem o funcionamento das agências reguladoras e a Constituição.

I – O FATO

Segundo o RD Diário, em 1 de janeiro de 2021, “o governo ignorou as restrições da Lei das Agências Reguladoras e indicou o nome de um ex-deputado estadual e dirigente partidário para a diretoria da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Arnaldo Silva Júnior foi deputado estadual em Minas Gerais entre 2015 e 2019 e comanda o diretório municipal do DEM em Uberlândia (MG). Ele também é funcionário do gabinete do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) – escolhido por Davi Alcolumbre (DEM-AP) para disputar a sucessão na Presidência do Senado e apoiado pelo governo Jair Bolsonaro. Pacheco é herdeiro de empresas de ônibus, o que também levantou questionamentos sobre a indicação.”

II – AS AGÊNCIAS REGULADORAS

As agências reguladoras foram criadas para fiscalizar e regular setores que sofreram o processo de privatização e que passaram a ter seus serviços prestados mediante concessão às empresas privadas licitadas para oferecerem o serviço público, bem como para regular o exercício das atividades econômicas.

Conforme o art. 52, f, III da Constituição Federal de 88 c/c art. 5º da Lei 9.986/00 (18/07/00), que trata dos recursos humanos das agências reguladoras, os conselheiros são indicados pelo Presidente da República após aprovação pelo Senado, eles devem possuir conhecimento técnico sobre a matéria regulamentada pela agência, possuindo mandatos fixos e não são demissíveis ad nutum, isto é, seus cargos não são de livre exoneração, eis que só os perdem em caso de renúncia, condenação transitada em julgado ou quando respondem a processo administrativo disciplinar na dicção do art. 9º da referida lei.

Assim dita a Lei:

Art. 52 - Compete privativamente ao Senado Federal:

III - aprovar previamente, por voto secreto, após arguição pública, a escolha de:

f) titulares de outros cargos que a lei determinar;

Art. 5o O Presidente ou o Diretor-Geral ou o Diretor-Presidente (CD I) e os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria (CD II) serão brasileiros, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados, devendo ser escolhidos pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso III do art. 52 da Constituição Federal.

Parágrafo único. O Presidente ou o Diretor-Geral ou o Diretor-Presidente será nomeado pelo Presidente da República dentre os integrantes do Conselho Diretor ou da Diretoria, respectivamente, e investido na função pelo prazo fixado no ato de nomeação.

Acrescento que a lei exige:

 - ter experiência profissional de, no mínimo:   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

a) 10 (dez) anos, no setor público ou privado, no campo de atividade da agência reguladora ou em área a ela conexa, em função de direção superior; ou   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

b) 4 (quatro) anos ocupando pelo menos um dos seguintes cargos:   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

1. cargo de direção ou de chefia superior em empresa no campo de atividade da agência reguladora, entendendo-se como cargo de chefia superior aquele situado nos 2 (dois) níveis hierárquicos não estatutários mais altos da empresa;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

2. cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 ou superior, no setor público;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

3. cargo de docente ou de pesquisador no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa; ou   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

c) 10 (dez) anos de experiência como profissional liberal no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa; e   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

II - ter formação acadêmica compatível com o cargo para o qual foi indicado.

Art. 8º-A. É vedada a indicação para o Conselho Diretor ou a Diretoria Colegiada:   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

I - de Ministro de Estado, Secretário de Estado, Secretário Municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados dos cargos;  (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

II - de pessoa que tenha atuado, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

III - de pessoa que exerça cargo em organização sindical;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

IV - de pessoa que tenha participação, direta ou indireta, em empresa ou entidade que atue no setor sujeito à regulação exercida pela agência reguladora em que atuaria, ou que tenha matéria ou ato submetido à apreciação dessa agência reguladora;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

V - de pessoa que se enquadre nas hipóteses de inelegibilidade previstas no inciso I do caput do art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

VI -  (VETADO);   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

VII - de membro de conselho ou de diretoria de associação, regional ou nacional, representativa de interesses patronais ou trabalhistas ligados às atividades reguladas pela respectiva agência.   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

Parágrafo único. A vedação prevista no inciso I do caput estende-se também aos parentes consanguíneos ou afins até o terceiro grau das pessoas nele mencionadas.   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019) 

Art. 8º-B.  Ao membro do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada é vedado:   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

I - receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

II - exercer qualquer outra atividade profissional, ressalvado o exercício do magistério, havendo compatibilidade de horários;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)    Vigência

III - participar de sociedade simples ou empresária ou de empresa de qualquer espécie, na forma de controlador, diretor, administrador, gerente, membro de conselho de administração ou conselho fiscal, preposto ou mandatário;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

IV - emitir parecer sobre matéria de sua especialização, ainda que em tese, ou atuar como consultor de qualquer tipo de empresa;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)    Vigência

V - exercer atividade sindical;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

VI - exercer atividade político-partidária;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

VII - estar em situação de conflito de interesse, nos termos da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013.    (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)

O objetivo da norma é evitar que a estrutura dessas agências reguladoras seja coaptada por interesses político-partidários. Daí a intepretação, como norma proibitiva, que deve ser dada ao artigo 8- A, II, cuja redação repito aqui:

II - de pessoa que tenha atuado, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;   (Incluído pela Lei nº 13.848, de 2019)    Vigência

As decisões das agências reguladoras se enquadram num regime de tecnicidade.

Utiliza-se a tecnicidade da agência como um instrumento legítimo para acobertar o atendimento de caprichos políticos, revestindo-os com critérios aparentemente apropriados, consubstanciados na falsa discricionariedade administrativa.

Os dirigentes são impedidos de exercerem cargos nas empresas reguladas ao término de seu mandato por um período denominado quarentena, a fim de impedir que durante o lapso de quatro meses, haja incursões nas decisões da empresa, impedindo benefícios políticos em razão da prévia vinculação ao órgão regulador, e que portanto, deve ser preservada a distância por este período entre o ex diretor regulador e a empresa regulada, sob pena de cominação no crime de advocacia administrativa, conforme art. 8º, §4º da Lei 9.986/00.

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Sendo assim há absoluto interesse em que essas atividades não se tornam meros “cabides eleitorais”.

A esse respeito tem-se a lição de Justen Filho(O direito das agências reguladoras independentes, São Paulo: Dialética, pág. 359):

“(...) a competência para produção de regulação propicia a formação de grandes núcleos de poder político. A função regulatória reservada a determinados cargos torna-os especialmente relevantes no quadro da partilha de poder político-partidário. Como decorrência, incrementa-se a disputa pela titularidade dos aludidos cargos e funções. O acesso aos cargos públicos correspondentes e a permanência neles deixa de ser dependente de virtudes ou qualidades pessoais do ocupante, para transformar-se em vicissitude política. Aquilo que se poderia identificar como geopolítica partidária resulta numa espécie de feudalização das estruturas burocráticas. Determinados partidos políticos aderem ao governante mediante a obtenção do controle político sobre os órgãos encarregados da regulação. Os correligionários são indicados para ocupação de certas áreas (regulatórias, inclusive), independentemente de maior ou menor qualificação pessoal. Daí deriva a consagração de uma filosofia regulatória trágica, consistente na sua instrumentalização para projetos políticos individuais ou partidários. A regulação se configura, então, eivada de subjetivismo, parcialidade e de contradição com a técnica.”

Como tal devem ter: a independência administrativa, a autonomia financeira, a ausência de subordinação hierárquica e a previsão de estabilidade e mandato fixo de seus dirigentes. Salientando que as três primeiras se enquadram em todas as autarquias, e apenas a última a difere das demais.

 Por opção política, decidiu-se conferir a tais entes uma maior liberdade decisória, imune a contingências políticas difusas e contraditórias. Com todas as restrições que são necessárias para a utilização deste termo, outorgou-se às agências uma certa independência.

São poderes no exercício por essas autarquias especiais:

  1. Poder normativo e de controle;
  2. Poder fiscalizador;
  3. Poder de solucionar conflitos;
  4. Poder regulador econômico e social.

Essa função reguladora é própria de uma atividade que envolve a discricionariedade técnica.

Não cabe ao legislador primário uma função regulatória. Esta cabe às agências reguladoras. Disse bem Justen Filho (Direito das Agências Reguladoras Independentes, 2002) que" a função regulatória (ou reguladora) visa realizar o gerenciamento dos múltiplos e antinômicos interesses da sociedade, traduzindo "em restrições à autonomia privada para evitar que o exercício abusivo de certas prerrogativas ponha em risco a realização de outros valores".

Daí porque bem resumiu Carlos Roberto Siqueira Castro (A Constituição aberta e os direitos fundamentais, pág. 213) que a competência normativa exercida pelas Agências Reguladoras, inserida no sistema de separação de poderes e considerando-se a proeminência da instituição legislativa para a positivação das regras jurídicas, é inconfundível com o "poder regulamentar", primário, de competência do chefe do Poder Executivo, que se faz através de regulamentos de execução (reproduzindo de forma analítica a lei, ampliando-a, se for o caso, e completando-a segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos e detalhes que a lei expressa ou implicitamente outorga à esfera regulamentar). O poder regulamentar do Executivo, lembre-se, envolve regulamentos (decretos) de regulamentação e regulamentos de organização, não autônomos, pois a Constituição não os permite.

As Agências Reguladoras, verdadeiras autarquias têm o poder de exercer uma função normativa secundária, desde que observadas as normas hierarquicamente superiores. Essa função normativa é secundária, repita-se.

III – UMA AFRONTA À LEI

Volto ao assunto citado com relação a nomeação noticiada.

Trata-se de afronta à norma proibitiva, inserida no artigo 8º - A, inciso II, da Lei que rege as Agências regulatórias.

Proibitivas são as normas coercitivas que impedem a prática de um ato, ou, no juízo de Del Vecchio(Lezioni di Filosofia de Diritto, 1950, pág. 221) “nos impõem a omissão”.

Estamos diante de verdadeiras normas coercitivas, imperativas, direito que constrange, exigindo o seu exercício sem qualquer opção.

A norma citada não deixa também, como norma coercitiva, seu aspecto preceptivo por determinar a prática de um ao, ou como ainda ensinou Giorgio Del Vecchio(obra citada, pág. 221), “nos impõem a execução de ato determinado”.

IV – CONSEQUÊNCIAS

É certo que a nomeação envolve um ato administrativa complexo, por contar com a participação do presidente da República e do Senado Federal, a teor do art. 52, f, III da Constituição Federal de 88 c/c art. 5º da Lei 9.986/00 (18/07/00),

Caso confirmado a prática do noticiado ato de nomeação, há diversas consequências.

Entenda-se que essa nomeação não se pode dar por critérios meramente políticos, mas, sim, técnicos.

Primeiro de índole político-criminal por parte do presidente da República, a teor da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950.  

Tem-se que:

Art.  4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:

........

V - A probidade na administração;

A nomeação de dirigente de entidade reguladora obedecerá a princípios dirigentes da Administração pública, dentre os quais: legalidade, moralidade, impessoalidade.

O princípio da legalidade da função executiva, de que a legalidade da Administração é simples aspecto, desdobra-se nos princípios da preeminência da lei e o princípio da reserva de lei.

O princípio da preeminência da lei, princípio da legalidade em sentido amplo, fórmula negativa ou regra da conformidade, traduz-se na proposição de que cada ato concreto da Administração é inválido, se e na medida em que contrária uma lei material.

Por sua vez, o princípio da reserva de lei, princípio da legalidade em sentido restrito, surgiu originalmente com o sentido de que cada ato concreto da administração que intervém na liberdade ou propriedade do cidadão, carece de autorização de uma lei material, mas veio mais tarde a evoluir no sentido de exigir a mesma autorização para todo e qualquer ato administrativo, ainda que, de forma direta, não contendesse na aludida esfera privada dos particulares.

Entende-se pela experiência doutrinária que, se o princípio da preeminência da lei representa muito mais a defesa da própria ideia de generalidade numa fase de evolução do poder administrativo concebido essencialmente como uma ampla esfera de autonomia ou mero âmbito da licitude, o princípio da reserva legal desempenha uma função de garantia dos particulares contra as intervenções do poder.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014), o princípio da impessoalidade tem desdobramento em dois prismas, o primeiro com relação a igualdade de atuação em face dos administrados, por meio da qual busca-se a satisfação do interesse público; o segundo com referência a própria Administração, de modo que os atos não são atribuídos aos seus agentes, mas ao órgão responsável, não cabendo àqueles promoção pessoal mediante publicidade de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos, assim destaca-se:

[...] Exigir impessoalidade da Administração tanto pode significar que esse atributo deve ser observado em relação aos administrados como à própria Administração. No primeiro sentido, o princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento. [...] No segundo sentido, o princípio significa, segundo José Afonso da Silva (2003:647), baseado na lição de Gordillo que “os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da Administração Pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal”. Acrescenta o autor que, em consequência “as realizações governamentais não são do funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as produzira. A própria Constituição dá uma consequência expressa a essa regra, quando, no § 1º do artigo 37, proíbe que conste nome, símbolo ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridade ou servidores públicos em publicidade de atos programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos”. 

Aplica-se o princípio da moralidade, em resumo, sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado, que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia comum de honestidade.

Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta; “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”

Será caso, pois, do Ministério Público Federal, em primeira instância, caso confirmada a nomeação noticiada, repita-se, ajuizar ação civil de improbidade administrativa, com base nos ditames do artigo 11 da Lei nº 8.429/92, que exige respeito aos princípios constitucionais que norteiam a administração pública e a Lei, objetivando as sanções devidas e a suspensão desse ato administrativo que deve ser considerado nulo.  

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma nomeação que afronta a lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6394, 2 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87680. Acesso em: 22 dez. 2024.

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