A recente decisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o estabelecimento de medidas à vacinação contra o Covid-19 pelos governos locais é envolta em polêmica. Medidas restritivas poderão ser utilizadas para incentivar e promover uma vacinação, embora a mesma não seja obrigatória.
Alvos da discussão, os direitos da personalidade tornaram-se coadjuvantes diante de uma prevalência dos direitos da coletividade e que denotam uma semelhança da tradicional disputa entre a liberdade de imprensa e de intimidade na sociedade de informação. Diante de um ponderamento e conflito de princípios constitucionais que visam a combater o cenário pandêmico que assola o país, o posicionamento demonstrou-se irredutível e denotou um caráter utilitarista da Suprema Corte, perpetuada nas interpretações constitucionais, enfatizando que o direito individual não deva frustrar o direito da coletividade.
Desde o seu desenvolvimento positivado na Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789, com fundamentos filosóficos pós-revolução francesa, os direitos da personalidade foram gradativamente aprimorados para um bem-estar coletivo, no qual as profundas transformações sociais possibilitaram uma administração da sociedade pautada pelo interesse público, fundamentando o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
Visível na interpretação constitucional, resta-nos saber quais serão as medidas restritivas em prol da coletividade, uma vez que o subjetivismo permeia situações como o uso do transporte público, a restrição de eventos e acesso a determinados estabelecimentos, e mesmo, às relações laborais[1].
Uma obrigatoriedade da medida, vislumbrada na singular interpretação do Ministro Nunes Marques, tem características diversas do exercício do poder de polícia já positivado e estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para crianças menores de 12 anos, ainda que também pautada no direito à saúde. O surgimento das novas vacinas, desenvolvidas neste contexto peculiar, em tempo recorde e com nítidas pressões internas à certificação pelo órgão fiscalizador, não vislumbra a mesma receptividade das comumente indicadas e exigidas no Plano Nacional de Vacinação (PNV).
Nesse sentido, uma obrigatoriedade da medida poderia desencadear em preocupações capazes de gerar um efeito-reverso, produzindo um negacionismo e teorias conspiratórias, no que ficou conhecido de anti-vaccination movements. Além disso, a discussão acerca da garantia constitucional dos direitos da personalidade poderia ter impacto negativo nas medidas, ao vislumbrar o que destaca o próprio Código Civil em seu Art. 15º: Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Ainda que estabelecidos no sistema normativo brasileiro com limitações, os direitos da personalidade são frequentemente alvo de inúmeras críticas da doutrina, uma vez que as definições e significados em torno da pessoa e sua personalidade pautam-se na dignidade da pessoa humana, ocupando o centro normativo constitucional que deve ser garantido pelo Estado Democrático de Direito. Como exemplo, o jurista Daniel Sarmento salienta a importância de uma autonomia individual, fundada na dignidade da pessoa humana em contraponto aos interesses da coletividade diante de um direito individual e inalienável[2].
No entanto, percebe-se, paulatinamente, uma mitigação dos direitos da personalidade diante de direitos que visem a uma proteção e à prevenção da coletividade, perpetuado recentemente como uma medida sanitária à saúde pública.
Ante o conflito de uma obrigatoriedade com diferentes interpretações, as discussões pautavam-se na recente Lei nº 13.979 de 2020, instituída para o enfrentamento decorrente da Covid-19, na qual evidenciava a vacinação como uma de suas competências, e, no Art. 196º da Constituição Federal, no qual abrangia o dever do Estado à redução do risco da doença, fazendo-se do caso uma decisão cujo impacto nacional remonta à relação do Estado e o indivíduo.
Evidentemente, as altas taxas de contaminações no país, e a aplicação das vacinas internacionalmente, ensejaram uma resposta imediata do poder judiciário, inclusive, com a determinação do prazo de 72 horas para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) avaliar a vacina, além de posicionar-se contra a possibilidade de os pais deixarem de vacinar seus filhos em razão de questões filosóficas, religiosas ou existenciais[3].
Retira-se, daí, embora no peculiar momento de calamidade, que, apesar de uma decisão sobre o caráter facultativo da vacinação, as problemáticas de uma obrigatoriedade em um cenário jurídico-social conturbado, inviabilizariam ou dificultariam a vacinação compulsória, sendo adequadas às medidas restritivas. Embora não saibamos quais serão, o anseio de instituí-las gradualmente, e em cenários que tangenciam situações cotidianas, é evidente, na medida em que há uma prioridade ao incentivo da vacinação e a intenção gradual de sua exigência, pelos altos índices de contaminação e propagação da doença.
Em suma, mais do que nunca, estamos diante de interpretações que positivam, diante do conflito de direitos da personalidade, a escolha por um direito da coletividade, clarificado nas decisões da Suprema Corte. Ainda que tenhamos a abrangência desses direitos, ampliadas e salvaguardadas pela Constituição Cidadã, a interpretação da atual conjuntura pandêmica pode externalizar outras situações futuras que envolvam o conflito fundado no célebre princípio da dignidade da pessoa humana.
Notas
[1] Disponivel em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/trabalho/empresas-podem-obrigar-seus-funcionarios-a-se-vacinarem-contra-a-covid-19-22122020
[2] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[3] Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/barroso-vota-para-que-pais-nao-possam-deixar-de-vacinar-filhos-17122020