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O conflito da vacinação e os direitos da personalidade

06/01/2021 às 12:35
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A decisão do STF acerca da aplicação de medidas restritivas é envolta em polêmica, e clarifica a interpretação da Corte diante das discussões do tradicional conflito sobre os direitos da personalidade e da coletividade.

A recente decisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o estabelecimento de medidas à vacinação contra o Covid-19 pelos governos locais é envolta em polêmica. Medidas restritivas poderão ser utilizadas para incentivar e promover uma vacinação, embora a mesma não seja obrigatória.

Alvos da discussão, os direitos da personalidade tornaram-se coadjuvantes diante de uma prevalência dos direitos da coletividade e que denotam uma semelhança da tradicional disputa entre a liberdade de imprensa e de intimidade na sociedade de informação. Diante de um ponderamento e conflito de princípios constitucionais que visam a combater o cenário pandêmico que assola o país, o posicionamento demonstrou-se irredutível e denotou um caráter utilitarista da Suprema Corte, perpetuada nas interpretações constitucionais, enfatizando que o direito individual não deva frustrar o direito da coletividade.

Desde o seu desenvolvimento positivado na Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789, com fundamentos filosóficos pós-revolução francesa, os direitos da personalidade foram gradativamente aprimorados para um bem-estar coletivo, no qual as profundas transformações sociais possibilitaram uma administração da sociedade pautada pelo interesse público, fundamentando o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

Visível na interpretação constitucional, resta-nos saber quais serão as medidas restritivas em prol da coletividade, uma vez que o subjetivismo permeia situações como o uso do transporte público, a restrição de eventos e acesso a determinados estabelecimentos, e mesmo, às relações laborais[1].

Uma obrigatoriedade da medida, vislumbrada na singular interpretação do Ministro Nunes Marques, tem características diversas do exercício do poder de polícia já positivado e estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para crianças menores de 12 anos, ainda que também pautada no direito à saúde. O surgimento das novas vacinas, desenvolvidas neste contexto peculiar, em tempo recorde e com nítidas pressões internas à certificação pelo órgão fiscalizador, não vislumbra a mesma receptividade das comumente indicadas e exigidas no Plano Nacional de Vacinação (PNV).

Nesse sentido, uma obrigatoriedade da medida poderia desencadear em preocupações capazes de gerar um efeito-reverso, produzindo um negacionismo e teorias conspiratórias, no que ficou conhecido de anti-vaccination movements. Além disso, a discussão acerca da garantia constitucional dos direitos da personalidade poderia ter impacto negativo nas medidas, ao vislumbrar o que destaca o próprio Código Civil em seu Art. 15º: Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Ainda que estabelecidos no sistema normativo brasileiro com limitações, os direitos da personalidade são frequentemente alvo de inúmeras críticas da doutrina, uma vez que as definições e significados em torno da pessoa e sua personalidade pautam-se na dignidade da pessoa humana, ocupando o centro normativo constitucional que deve ser garantido pelo Estado Democrático de Direito. Como exemplo, o jurista Daniel Sarmento salienta a importância de uma autonomia individual, fundada na dignidade da pessoa humana em contraponto aos interesses da coletividade diante de um direito individual e inalienável[2].

No entanto, percebe-se, paulatinamente, uma mitigação dos direitos da personalidade diante de direitos que visem a uma proteção e à prevenção da coletividade, perpetuado recentemente como uma medida sanitária à saúde pública.

Ante o conflito de uma obrigatoriedade com diferentes interpretações, as discussões pautavam-se na recente Lei nº 13.979 de 2020, instituída para o enfrentamento decorrente da Covid-19, na qual evidenciava a vacinação como uma de suas competências, e, no Art. 196º da Constituição Federal, no qual abrangia o dever do Estado à redução do risco da doença, fazendo-se do caso uma decisão cujo impacto nacional remonta à relação do Estado e o indivíduo.

Evidentemente, as altas taxas de contaminações no país, e a aplicação das vacinas internacionalmente, ensejaram uma resposta imediata do poder judiciário, inclusive, com a determinação do prazo de 72 horas para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) avaliar a vacina, além de posicionar-se contra a possibilidade de os pais deixarem de vacinar seus filhos em razão de questões filosóficas, religiosas ou existenciais[3].

Retira-se, daí, embora no peculiar momento de calamidade, que, apesar de uma decisão sobre o caráter facultativo da vacinação, as problemáticas de uma obrigatoriedade em um cenário jurídico-social conturbado, inviabilizariam ou dificultariam a vacinação compulsória, sendo adequadas às medidas restritivas. Embora não saibamos quais serão, o anseio de instituí-las gradualmente, e em cenários que tangenciam situações cotidianas, é evidente, na medida em que há uma prioridade ao incentivo da vacinação e a intenção gradual de sua exigência, pelos altos índices de contaminação e propagação da doença.

Em suma, mais do que nunca, estamos diante de interpretações que positivam, diante do conflito de direitos da personalidade, a escolha por um direito da coletividade, clarificado nas decisões da Suprema Corte. Ainda que tenhamos a abrangência desses direitos, ampliadas e salvaguardadas pela Constituição Cidadã, a interpretação da atual conjuntura pandêmica pode externalizar outras situações futuras que envolvam o conflito fundado no célebre princípio da dignidade da pessoa humana.

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Notas

[1] Disponivel em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/trabalho/empresas-podem-obrigar-seus-funcionarios-a-se-vacinarem-contra-a-covid-19-22122020

[2] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

[3] Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/barroso-vota-para-que-pais-nao-possam-deixar-de-vacinar-filhos-17122020

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Sobre o autor
Salus Henrique Silveira Ferro

Mestrando em Direito e Ciência Jurídica na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas e Pós-graduando em Direito Intelectual, ambas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Especialista em Derechos de Daños pela Universidad de Salamanca (USAL). Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e em Direito pela Universidade Franciscana (UFN). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERRO, Salus Henrique Silveira. O conflito da vacinação e os direitos da personalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6398, 6 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87683. Acesso em: 22 dez. 2024.

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