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História da Emenda Constitucional nº 1, de 1969

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O estudo do processo de elaboração da Emenda Constitucional nº 1/1969 fornece novos elementos para a interpretação do período de governos militares que se instaurou em março de 1964.

INTRODUÇÃO

"Está para se escrever a história da reforma constitucional de 1969. Sofreu intermináveis marchas e contramarchas, fruto de um entrechocar constante das duas tendências referidas." (Chagas, 1979)

O processo de elaboração da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, cuja peça central, as "Atas da Comissão de Alto Nível para a reforma da Magna Carta de 24 de janeiro de 1967", vem a público por iniciativa do Senado Federal, fornece novos elementos para a interpretação do período de governos militares que se instaura, no País, em março de 1964.

Em primeiro lugar, por constituir um espaço de discussão interna a respeito do ordenamento legal do País, num momento em que o regime caminhava nitidamente no rumo do endurecimento. Em segundo lugar, por apresentar, de maneira condensada, as mesmas linhas de conflito que acompanharam todo o período e que, ao fim, determinaram a maneira particular de sua superação.

Para compreender, portanto, em sua plenitude, o significado do processo de reforma constitucional que tem lugar em 1969, é necessário discutir as tensões internas ao regime, assim como os tipos de relação com a oposição que essas tensões propiciaram.

A heterogeneidade das forças que promoveram o golpe militar de 1964 é constatada na literatura. Para os fins a que se propõe este estudo, no entanto, não interessa especular sobre os distintos projetos para o País, que se agruparam na aliança contrária ao Presidente João Goulart. Nosso enfoque será dirigido a uma tensão fundamental, presente no ideário do movimento e imediatamente transposta para uma divisão entre seus partidários: aquela que opõe moderados e linha dura.

Desde seu início, o movimento combinava dois objetivos diferentes, que muitas vezes revelaram-se antagônicos, nos 21 anos que durou o regime. Combater a ameaça, real ou imaginária, representada pela esquerda, e criar as condições para o retorno a uma ordem democrática, depurada dos elementos de subversão e corrupção que teriam florescido à sombra da Constituição de 1946.

A linha dura considerava prioridade o combate à esquerda, que justificaria a adoção de inúmeras medidas "revolucionárias", de restrição progressiva da democracia. Os moderados defendiam a intervenção cirúrgica, não continuada, e o retorno breve a uma situação de normalidade.

Nas palavras de um dos partidários do movimento: "As divergências aos poucos definiriam duas linhas distintas nas hostes revolucionárias. Uma radical, ortodoxa, convicta de que o êxito da revolução seria medido pela amplitude e pela energia das punições. Essa facção, que defendia uma ação mais drástica do governo, ficou conhecida como linha dura. Outra, liberal ou constitucionalista, que via nas punições um meio, nunca um objetivo da revolução." (Agnaldo Augusto, 2001, p. 156)

A tensão entre as duas concepções, mais legalidade ou mais revolução, marcou o período inteiro. Determinou a forma que veio a tomar a superação do regime, forma singular se comparada aos demais regimes militares latino–americanos. Na verdade, quase sempre as ações governamentais resultaram de compromissos entre ambos os grupos e deram a pauta para a interação com as diversas formas de oposição ao regime.

A divisão entre moderados e linha dura repercutia no campo da oposição, nele traçando uma fronteira móvel que separava os partidários da oposição institucional, nos espaços de legalidade deixados pelo regime, e os adeptos do abandono desses espaços, em razão de sua manifesta inutilidade. Durante muito tempo, a cada avanço da oposição correspondeu uma mudança nas regras do jogo, de maneira a retornar à situação anterior. Para muitos, portanto, o abandono da luta institucional aparecia como conseqüência lógica a ser extraída da experiência recente.

Nessa última vertente encontravam-se os partidários da oposição armada, mas não somente eles. Enquadraram-se nesse campo também todas as propostas de voto nulo, assim como todos os momentos em que o MDB discutiu sua autodissolução.

Parece claro que, nesse complexo campo de forças, as ações da linha dura e da oposição não institucional reforçavam-se mutuamente. A oscilação do governo para o fechamento empurrava os oposicionistas para fora do espaço, cada vez menor, da institucionalidade. Toda oposição não institucional e boa parte da oposição parlamentar e eleitoral era, em contrapartida, percebida como pretexto para reforçar o fechamento.

Por outro lado, o diálogo entre a oposição institucional e os setores liberais do regime demorou até encontrar seu ponto de reforço mútuo. No entanto, o que pareceu por muito tempo improvável – e mesmo contrário a toda lógica – acabou por acontecer, e a normalidade democrática foi alcançada num processo que culminou com uma aliança formal entre ambos os grupos, em 1985, no âmbito do colégio eleitoral. A fresta de legalidade que o regime havia deixado foi progressivamente ampliada, num jogo de pressões e concessões, até a instauração do Estado de Direito.

Até esse momento decisivo, o vetor resultante da oposição entre moderados e linha dura pode ser sintetizado da seguinte forma. O regime recorria ao arbítrio sempre que as necessidades do movimento o exigissem. No entanto, a aparência de democracia deveria ser preservada ao máximo. Em outras palavras, os Presidentes tinham mandatos definidos, o Congresso funcionava sempre que possível, o Judiciário mantinha alguma margem de decisão. Mesmo o arbítrio na sua forma pura devia ser institucionalizado, e, pelo menos no início, obedecer a regras e prazos para sua utilização. Daí o recurso aos atos institucionais e complementares, o apego à legalidade formal num período de exceção, que tanta estranheza causa a estudiosos estrangeiros, como Skidmore (1988).

Essa preservação das formas da democracia, mesmo nos momentos menos plausíveis, pode ser atribuída a duas fontes distintas, embora relacionadas entre si. A primeira remete ao ethos da corporação militar brasileira, já constituído no tempo do Império. Para os militares, a diferenciação em relação às forças armadas hispano-americanas, às práticas dos "pronunciamentos" e das ditaduras personalizadas, constituía ponto de honra. Essa preocupação revelou-se na proclamação da República e as críticas dos monarquistas, particularmente de Eduardo Prado (1890), encaminharam-se justamente nessa direção.

A segunda diz respeito à inspiração liberal de parte dos conspiradores, civis e militares, de 1964. Formados na escola da UDN, seu liberalismo encontrava-se mesclado, desde 1945, de elementos golpistas, do recurso, sempre presente, a medidas de força para "salvar" as instituições, salvá-las, na verdade, do povo que as punha em risco ao eleger corruptos e subversivos.

No entanto, o fato de o liberalismo da UDN haver sido complacente com movimentações golpistas – e mesmo tê-las estimulado – não autoriza sua condenação simples como discurso vazio, de fachada, sem conseqüências históricas de peso.

A história da Comissão de Alto Nível, assim como a história de todo o processo de redemocratização do País apontam, como veremos, na direção contrária.


Antecedentes

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é o que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação. Preâmbulo do Ato Institucional nº 1.

a) A Constituição de 1967

Justificado como uma necessária e curta intervenção para defender a ordem e a democracia, que setores militares e civis consideravam ameaçadas pela corrupção e pela agitação de sindicalistas e comunistas, o movimento de 31 de março de 1964 durou mais do que previam seus mentores e fez mais do que combater essas ameaças. Com o apoio dos grupos mais conservadores da sociedade, as Forças Armadas assumiram o poder de Estado em nome da segurança e do desenvolvimento, calaram ou eliminaram oposicionistas, suprimiram direitos individuais e deixaram um espaço variável, embora cada vez mais restrito, para a manifestação política da sociedade.

A tensão entre a manutenção da ordem legal e sua transformação por atos de força manifesta-se nos primeiros dias do movimento. Após a deposição de João Goulart, o movimento militar exige a indicação de um novo Presidente. O Presidente do Senado, Auro de Moura Andrade declara, sem qualquer amparo legal, a vacância da Presidência da República. Assume imediatamente, dessa vez dentro da legalidade, o Presidente da Câmara, Ranieri Mazzili. O poder real está nas mãos dos militares. O comando militar do movimento exige do Congresso poderes para expurgar e remodelar o ordenamento legal do País, para combater a ação subversiva.

As primeiras mudanças institucionais ocorrem por meio de atos institucionais, entendidos como manifestações do poder constituinte inerente a todas as revoluções. Solicitado a colaborar, o Congresso prepara um ato que, considerado manifestamente insuficiente, é rejeitado em favor do Ato Institucional n° 1, editado a 9 de abril de 1964, pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Que prevê o Ato? A manutenção da Constituição de 1946 com várias modificações, assim como o funcionamento do Congresso. Estabelece eleições indiretas imediatas para Presidente e Vice-Presidente da República. Também concede aos chefes militares autores do ato, "no interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição", poderes para suspender os direitos políticos pelo prazo de dez anos e para cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, e de suspender direitos políticos, mediante atos imunes a apreciação judicial. Prevê ainda a apresentação de emendas constitucionais pelo Presidente, com prazo definido para sua apreciação; a iniciativa exclusiva do Executivo para projetos que impliquem despesas; a declaração, quando necessário, de estado de sítio pelo Presidente, por 30 dias, prorrogáveis por mais 30; a suspensão, por seis meses, das garantias de vitaliciedade e de estabilidade, conferidas aos servidores públicos, para facilitar o expurgo no setor.

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Como se lê em vários dos textos que introduziam os atos institucionais, o regime militar quase nunca assumiu expressamente sua feição autoritária. A violação dos princípios básicos da democracia era defendida como parte de medidas necessárias e demandadas pela nação, justamente para a defesa da ordem democrática. O Congresso continuou funcionando, com pequenos intervalos de fechamento, e as normas, em sua maioria restritivas dos direitos dos cidadãos, eram apresentadas como temporárias. O AI 1 limitou sua vigência até 31 de janeiro de 1966.

Muitos de seus dispositivos tinham por objetivo reforçar o Poder Executivo e reduzir o campo de ação do Congresso. O Presidente da República ficava autorizado a enviar ao Congresso projetos de lei que deveriam ser apreciados no prazo de trinta dias na Câmara e em igual prazo no Senado; com aprovação por decurso de prazo. As votações eram obstruídas no Congresso com relativa facilidade e seus trabalhos normalmente se demoravam, o que tornou corriqueira a aprovação de projetos do Executivo sem apreciação.

Por pressão da linha dura militar, que defende o aprofundamento da revolução e a remoção dos vestígios do regime derrotado e que se aglutina, no momento, em torno do ministro da Guerra, Costa e Silva, Castello Branco institui, por decreto-lei, em 27 de abril, os Inquéritos Policial-Militares (IPM), para investigação dos responsáveis "pela prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio, contra a ordem política e social, ou por atos de guerra revolucionária", ou seja, pela prática de atividades consideradas subversivas. São criadas comissões de inquérito nas universidades e nos órgãos governamentais.

A natureza da relação, extremamente conflituosa, que se estabeleceu entre os militares e o Congresso, estava definida já no preâmbulo do AI 1. Nos seus parágrafos iniciais, os Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica definiam o movimento como revolucionário e seu poder como constituinte:

"O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução."

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"A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da nação em sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe."

Dotado desses poderes excepcionais, o movimento militar passou a promover perseguições aos adversários do regime. Grande número de prisões foi efetuado e surgiram as primeiras denúncias de torturas. No entanto, o sistema ainda não estava inteiramente fechado. Era possível utilizar o recurso do habeas corpus perante os tribunais, e a imprensa ainda se mantinha relativamente livre.

Em junho, é criado o Serviço Nacional de Informações (SNI), cujo idealizador e principal chefe é o general Golbery do Couto e Silva. Eram objetivos do órgão "coletar e analisar informações pertinentes à Segurança Nacional, à contra-informação e à informação sobre questões de subversão interna." O órgão transformou-se rapidamente num centro de poder quase tão importante quanto o Executivo, passando logo a agir por conta própria no combate ao "inimigo interno". Segundo relata Costa Couto (1998), o General Golbery tenta justificar-se, anos mais tarde, dizendo que, sem querer, havia criado um monstro.

Depois dos expurgos que o AI 1 permitiu, o grupo castelista, que assumiu o poder em 15 de abril de 1964, pretendia instituir uma "democracia restringida" e conter a ameaça comunista, mediante a reforma da economia nacional. Era preciso, para isso, alterar a caótica situação econômico-financeira que vinha dos últimos meses do governo Goulart, reformar o aparelho do Estado e controlar os trabalhadores do campo e da cidade.

Foi então elaborado o Programa de Ação do Governo (PAEG) sob a responsabilidade dos ministros do Planejamento, Roberto Campos, e da Fazenda, Octávio Gouveia de Bulhões. Voltado para a redução do déficit do setor público, a contração do crédito privado e a compressão dos salários, previa também aumento da arrecadação de impostos em decorrência de um melhor aparelhamento da máquina do estado; compressão de salários por meio de fórmulas de reajuste inferiores à inflação; medidas para impedir greves (lei de greves – 1964) e facilitar a rotatividade da mão-de-obra, no interesse das empresas; fim da estabilidade no emprego, substituída por um mecanismo compensatório, o FGTS.

No campo, a repressão aos movimentos sociais fêz-se acompanhar de propostas de solução para o problema da terra, como a aprovação do Estatuto da Terra em 1964. Na área de política externa, a proposta era aumentar as exportações de matérias primas e de promover os bens manufaturados em geral.

Um dos problemas sérios que o regime enfrentava era a montagem de uma base parlamentar confiável. Feitos os expurgos, o quadro não se alterou inteiramente, porque no sistema representativo da época, os suplentes assumiam logo depois da cassação do mandato do titular e eram, em sua maioria, oposicionistas, por motivos partidários e por discordarem das medidas de exceção e da dura política econômica. Os espaços para negociação eram fechados pelo próprio governo, que combatia os focos de resistência, na área institucional, mediante a edição de atos, decretos e leis.

Um Congresso enfraquecido, esvaziado de expoentes políticos, votou, por 205 votos a favor e 96 contra, a Emenda Constitucional n° 9, de 22 de julho de 1965, que prorrogava o mandato de Castello Branco até 15 de março de 1967 e marcava a escolha de seu sucessor para 15 de novembro de 1966, fixando o mandato presidencial em quatro anos.

Manteve-se por algum tempo a crença de que a dose do remédio contida no AI 1 seria suficiente. No entanto, o resultado das eleições para governador, em outubro de 1965, detonou uma segunda crise, mostrando que, mesmo precários, os limites impostos pela legalidade eram estreitos para os propósitos dos revolucionários.

A eleição de governadores oposicionistas em Minas e na Guanabara desencadeou um forte movimento militar que pressionou o Presidente para impedir sua posse. Os militares da linha dura, adversários dos castelistas, criticavam sua complacência com os inimigos do regime. Para esses setores, deveria ser implantado um controle militar estrito do sistema de decisões, para dar continuidade à luta contra o comunismo e a corrupção. Castello Branco manteve-se, no entanto, firme na resolução de dar posse aos eleitos, em troca de um compromisso com a linha dura: novas regras deveriam ser estabelecidas, de maneira a evitar a repetição de derrotas como essas. Veio o Ato Institucional n° 2, em outubro de 1965, menos de um mês depois das eleições estaduais.

O AI 2 determinou a eleição indireta para Presidente e vice–Presidente da República, extinguiu os partidos políticos, ampliou os poderes do Presidente da República, que passou a legislar sobre assuntos importantes por meio de decretos-leis. O conceito de segurança nacional foi ampliado.

Mais uma vez, o governo tivera o cuidado de pedir ao Congresso os poderes que depois se outorgaria com o Ato. Novamente, os parlamentares, principalmente do PSD, recusaram.

O Ato extinguiu os partidos e criou condições que, na prática, implantavam o bipartidarismo. Instituíam-se eleições indiretas para os pleitos seguintes de governador e Presidente da República. Abria-se, também, nova temporada de expurgos, a perdurar até o fim do mandato presidencial, quando o Ato cessaria de vigorar.

Extintos os partidos políticos criados com o fim do Estado Novo, organizaram-se então duas novas agremiações: ARENA – Aliança Nacional Renovadora, formada por antigos partidários do governo (UDN e PSD) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição, formado por partidários do PTB e do PSD. A medida satisfazia os meios militares, onde o pluripartidarismo era visto como fonte de crises políticas e de dificuldades para governar.

No mesmo dia do registro dos dois partidos no TSE, 24 de março de 1966, a imprensa divulgava uma primeira notícia de confrontos entre estudantes e a polícia, no Rio de Janeiro, na verdade o início das manifestações de rua que atingiriam seu ápice em 1968.

A vinda ao Brasil do ex-Presidente Juscelino, para comemorar a vitória de Israel Pinheiro ao Governo de Minas e de Negrão de Lima para a Guanabara, ambos seus antigos colaboradores, provocou a edição de uma lei que limitava os movimentos de cidadãos com mandatos cassados e/ou direitos políticos suspensos. O projeto de Castello Branco de retorno à democracia é contido pela pressão da linha dura, que avança cada vez mais em suas exigências. Com tantas mudanças nas regras políticas, impunha-se a atualização do ordenamento legal do País.

Depois de desgastante processo de articulações e disputas, Costa e Silva se lança candidato à Presidência, contra a vontade de Castello Branco, e se elege por 295 votos, dos 472 senadores e deputados presentes no Congresso Nacional, em 3 de outubro de 1966. Segue-se nova onda de cassações de direitos políticos e mandatos parlamentares, o que provoca mais uma crise entre o governo e o Congresso, invadido pelos militares, na madrugada de 15 de outubro, e imediatamente colocado em recesso.

Depois de relatar como Castello Branco perdeu o controle do processo que levou à indicação de Costa e Silva como candidato único à Presidência, Costa Couto (1998) faz uma interessante observação, que vale a pena registrar:

"Para entender a lógica desse processo, é preciso relembrar que os generais-Presidentes do golpe de 1964 não têm, isoladamente, os plenos poderes do ditador ´´clássico´´. Eles são escolhidos dentro do conjunto de generais-de-exército, os ´´quatro-estrelas´´, para governar em nome do sistema militar. Não é uma ditadura pessoal, como a de Getúlio Vargas no Estado Novo. A sucessão é um momento especial nesse processo, envolvendo articulações no universo militar para a indicação do ´´quatro-estrelas´´ que vai presidir a República, após a ratificação formal do Congresso, importante para manter as aparências dentro e fora do país. Foi assim, de certo modo, no caso do próprio Castello Branco, escolhido por consenso. É essa regra tácita que está sendo quebrada." (Costa Couto, op. cit., p. 76)

O mesmo autor assinala que Castello Branco "passa o poder ao sucessor com a institucionalização autoritária avançada, a doutrina da segurança nacional implantada e a pleno vapor, as reformas amadurecidas, a casa economicamente arrumada. O país está em ordem e reconstitucionalizado, dentro da visão, limites e parâmetros do poder militar. Distante de um regime aberto, democrático, mas também longe do estereótipo das voluntariosas ditaduras latino-americanas. (...) Há um ditador de fato, mas eleito pelo Congresso que, formalmente, funciona. Com limitações, mas funciona. Assim como o Judiciário. Os Presidentes têm mandato definido, não se eternizam no poder. Mas o cargo é privativo dos generais-de-exército. Tudo isso, claro, desloca a essência da atividade política para o meio militar. É inegável, contudo, que, no final do governo, há progressos, concessões, liberalização.

Um abrandamento que não vai durar muito. Nos anos seguintes, haverá radicalização política. O regime vai se fechar de vez, sob a liderança da linha dura." (Costa Couto, 1998, pp. 82-83)

De qualquer modo, o governo Castello Branco deixa a seu sucessor uma nova ordem legal, materializada numa Lei de Segurança Nacional, numa Lei de Imprensa e, principalmente, numa nova Constituição, com a incorporação dos mandamentos dos Atos Institucionais. O Congresso estava em recesso, com a oposição cada vez mais enfraquecida, quando foi reconvocado para elaborar a nova Constituição. O governo edita, para tanto, o AI 4, em 7 de dezembro de 1966, atribuindo poderes constitucionais ao Congresso, que passa a se reunir em caráter extraordinário.

Para elaborar a nova Carta, foi constituída, em 1966, comissão integrada por Levy Carneiro, Temístocles Cavalcanti, Orozimbo Nonato e Miguel Seabra Fagundes, que renunciaria antes do término dos trabalhos. O texto final, revisado, num viés mais autoritário, por Carlos Medeiros, foi remetido ao Congresso Nacional em 17 de dezembro de 1966. No dia 24 de janeiro a Constituição estava aprovada. Segundo Skidmore, sem alterações. Costa Couto, no entanto, relata uma verdadeira maratona legislativa, com o objetivo de salvar o possível de um texto considerado inaceitável. Entre outras modificações, todo o capítulo referente a direitos e garantias individuais teria sido incluído no Congresso.

Também é de Costa Couto o resgate da história dessa maratona, a partir de depoimento que lhe foi prestado, em 1995, por Carlos Chagas, e de onde se destaca o seguinte trecho:

"Ele [Castello Branco] pegou aquele Congresso em final de mandato, baixou o ato Institucional n° 4, transformando-o em Constituinte, e mandou para lá o projeto do Carlos Medeiros, que era execrável. Basta dizer que não tinha o capítulo dos direitos e garantias individuais. Ele, o Medeiros, defendia que aquilo era assunto de legislação ordinária, que não era matéria constitucional. Em novembro de 1966, mandou para aquele congresso em final de linha, presidido pelo Auro de Moura Andrade."

Segue-se o relato do esforço dos congressistas para a aprovação do projeto. Quase ao final dos trabalhos, o Presidente do Congresso verifica que o tempo está se esgotando e não vai dar para terminar.

"Não vai dar, vai valer o projeto do Carlos Medeiros, aquela coisa horrorosa."

Auro Moura Andrade dirige-se ao chefe dos contínuos e lhe ordena que atrase todos os relógios do Plenário em seis horas. "Isso é absolutamente verdadeiro. Aconteceu. Ele atrasou os relógios. O Castello ficou sabendo, é claro. Riu, mas deixou. Porque também ficou empolgado pelo projeto mais liberal, o do Congresso. E a Constituição foi feita." (Costa Couto, 1998, pp. 81–82)

Ao fim, a Constituição incorporou o conteúdo dos Atos: eleições indiretas, concentração no Executivo de poderes de apuração e repressão e também das decisões sobre gasto público. Mesmo depois de incorporar a legislação que ampliara os poderes do Executivo, especialmente em matéria de segurança nacional, a Constituição veio a ser, em pouco tempo, considerada insatisfatória.

Seja como for, Costa e Silva assume a Presidência com poderes menores que os de Castello. Uma nova Constituição encontrava-se vigente, estavam esgotados os prazos dos Atos Institucionais. No entanto, os acontecimentos sucederam-se e revelaram, em pouco tempo, a insuficiência da Constituição, do ponto de vista dos integrantes da linha dura.

b) a insuficiência da Constituição

Costa e Silva, ao assumir, declarara seu intento de governar dentro da legalidade e da Constituição, humanizando a Revolução e democratizando o poder. Os fatos se anteciparam a suas boas intenções e ele acabou por representar os setores mais duros das Forças Armadas no poder. Mesmo participando do governo, os moderados perderam o comando do processo para os duros. Num ministério de composição, são considerados de linha dura os ministros militares Jaime Portella, do Gabinete Militar; Garrastazu Médici, do SNI; Augusto Rademaker, da Marinha; Márcio de Souza e Mello, da Aeronáutica, e Afonso de Albuquerque Lima, do Interior. O Ministro do Exército, Lyra Tavares, fica entre a linha dura e os moderados. Dos ministros civis, Gama e Silva, da Justiça, é o principal linha dura. São liberais, moderados, o Vice-Presidente, Pedro Aleixo, Rondon Pacheco, do Gabinete Civil, Hélio Beltrão, do Planejamento, Magalhães Pinto, do Itamaraty, e Tarso Dutra, da Educação. Os duros se distinguem dos moderados pela radicalização de suas crenças e pela ação anticomunista. A maioria defende a permanência dos militares no poder (Costa Couto, 1998).

O ano de 1968 é politicamente agitado, dentro e fora do Brasil, principalmente em razão de mobilização da juventude. Nos Estados Unidos, as manifestações combatem a guerra do Vietnã. Na França, um movimento pela melhoria do sistema educacional se transforma em ameaça à estabilidade do governo do General De Gaulle. Rejeita-se o velho, a ordem, o estabelecido, em prol do novo, de idéias libertárias. Esse movimento repercute no Brasil e influencia os acontecimentos, principalmente porque prega uma utopia libertária em tudo oposta aos valores básicos do regime militar.

Em 1967 e, principalmente, 1968, o País assistiu à reorganização do movimento estudantil e seu sucesso em arregimentar a classe média em manifestações de rua; ao renascimento do movimento operário, com as greves de Contagem e Osasco; ao deslocamento progressivo da Igreja para a oposição ao regime; à aglutinação dos políticos da velha ordem num movimento oposicionista, a Frente Ampla; à afirmação da oposição parlamentar, com os deputados autênticos do MDB; e, finalmente, aos primeiros ensaios da oposição armada.

A explosão de uma bomba no consulado americano em São Paulo e os assaltos a bancos eram fatos suficientes para reforçar a certeza da linha dura com relação aos perigosos rumos que a Revolução estava tomando, perdendo-se de seu traçado inicial. Por isso, defendia a criação de novos instrumentos para acabar com a subversão.

O estopim que mostrou a insuficiência da novíssima Constituição foi o caso do Deputado pelo MDB Márcio Moreira Alves. Seu discurso, que poucos ouviram, foi considerado ofensivo às Forças Armadas. Era na verdade um texto de repúdio à invasão da Universidade de Brasília por tropas militares. O trecho que mais desagradou às Forças Armadas dizia:

"Quando pararão as tropas de metralhar na rua o povo? Quando uma bota, arrebentando uma porta de laboratório, deixará de ser a proposta de reforma universitária do governo? Quando teremos, como país, ao ver nossos filhos saírem para a escola, a certeza de que eles não voltarão carregados em uma padiola, esbordoados ou metralhados? (...) Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores? Quando se dará o governo federal a um mínimo de cumprimento do dever, como é para o bem da República e para a tranqüilidade do povo?" (Costa Couto, op. cit., p. 94)

Amplamente divulgado nos quartéis, o discurso desencadeou a crise. As Forças Armadas exigiam a punição, a licença para o processo foi solicitada e negada pela Câmara, com a participação de parcela significativa da ARENA. Expoentes do partido do governo, como Daniel Krieger e Djalma Marinho, recusaram, por razão de consciência, o voto no governo. O Congresso negou-se a conceder a solicitada licença, o que provocou seu fechamento e a edição do AI 5, após tensa reunião do Conselho de Segurança Nacional.

A pressão militar foi forte e Costa e Silva correu ali o risco da deposição. Decidiu, no entanto, acompanhar a maioria, pela aprovação do Ato, com o único voto contrário do Vice-Presidente Pedro Aleixo. Durante a reunião, o Presidente pede a opinião dos ministros, que se manifestam favoravelmente ao ato. Pedro Aleixo, o último a falar, discursa em defesa de remédios institucionais mais brandos, como a utilização do estado de sítio, previsto na Constituição. Enquanto falava, todos conversavam e riam, segundo relato de Carlos Chagas, que presenciou a reunião. Gama e Silva interrompe Pedro Aleixo com a pergunta: "Mas, doutor Pedro, o senhor desconfia das mãos honradas do Presidente Costa e Silva, aqui presente? É ele que vai aplicar o Ato. O doutor Pedro tinha uma raiva danada do Gama e Silva e respondeu: "Não, Ministro, das mãos honradas do Presidente eu não desconfio, eu desconfio é do guarda da esquina." (Costa Couto, 1998, p. 95)

Principal fonte da legislação autoritária e do autoritarismo, sem prazo de vigência, o AI 5 concedeu ao Presidente da República poderes para fechar provisoriamente o Congresso, cassar mandatos e suspender direitos políticos, demitir ou aposentar servidores públicos. "A partir do AI 5, o núcleo militar do poder concentrou-se na chamada comunidade de informações, isto é, naquelas figuras que estavam no comando dos órgãos de vigilância e repressão. Abriu-se um novo ciclo de cassação de mandatos, perda de direitos políticos e de expurgos no funcionalismo, abrangendo muitos professores universitários. Estabeleceu-se na prática a censura dos meios de comunicação; a tortura passou a fazer parte integrante dos métodos do governo." (Boris Fausto, 2001, p. 265). Nas palavras de Costa Couto, "era o golpe dentro do golpe. O aprofundamento do militarismo. A ditadura dura." (op. cit., p. 85)

O Congresso entrou em recesso por tempo indeterminado, inaugurou-se novo ciclo de cassações, eleições foram suspensas, inventou-se o artifício da sublegenda para assegurar a vitória do governo. O Presidente da República tem plenos poderes para estabelecer unilateralmente medidas mais repressivas, decretar o recesso do Congresso, das assembléias estaduais e câmaras municipais; intervir nos estados e municípios; censurar a imprensa, cancelar habeas corpus, limitar garantias individuais, dispensar e aposentar servidores públicos, suspender mandatos e cassar direitos políticos. Os órgãos de repressão ganham mais poder. Dentro da legalidade, não há como protestar contra o governo, sequer opor-se a seus atos.

"Até o Congresso é condenado ao regime do medo, da delação e da afiada espada do AI 5 no peito; a censura à imprensa alcança o ápice; a repressão espalha-se, inclusive pelo sistema educacional. Muitos opositores do regime militar, sobretudo jovens, não vêm outra saída para atuarem que não a clandestinidade e a luta armada." (Costa Couto, p. 96)

O quadro político havia fugido por completo dos marcos da Carta de 1967. Como diz Skidmore, considerando a "...propensão dos militares brasileiros para a legitimidade formal, era inevitável uma nova Constituição".

Não foi, portanto, o desejo de aperfeiçoar a Constituição que determinou o início do processo de revisão. Responsabilizada pela crise que culminou no AI 5, a carta de 67 "voltou ao estaleiro para que fosse reajustada ao novo surto revolucionário, assegurando-se nível constitucional, ainda que transitório, a disposições políticas de exceção. Esse o significado da reforma para o governo. Quanto aos políticos e juristas que nela colaboram, tudo indica que o fazem na convicção de contribuírem para devolver ao país perspectivas de normalidade institucional a prazo médio. (...)As circunstâncias o levaram (Costa e Silva), como se sabe, a promover a reforma, não no sentido preconizado, mas precisamente para reduzir a área de interferência política e parlamentar no sistema de poder nacional." (Castelo Branco, 1979, p. 276)

Sobre os autores
Caetano Ernesto Pereira de Araújo

consultor legislativo do Senado Federal

Eliane Cruxên Barros de Almeida Maciel

consultora legislativa do Senado Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Caetano Ernesto Pereira; MACIEL, Eliane Cruxên Barros Almeida. A comissão de alto nível.: História da Emenda Constitucional nº 1, de 1969. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1137, 12 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8779. Acesso em: 27 dez. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado no site da Consultoria Jurídica do Senado (<a href="http://www.senado.gov.br/conleg/">http://www.senado.gov.br/conleg/</a>).

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