I - ADI 2435
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade da Lei estadual 3.542/2001, do Rio de Janeiro, que concedia descontos de até 30% aos idosos para aquisição de medicamentos em farmácias no estado. O fundamento da decisão foi que, apesar de sua finalidade social louvável, a regra invade a competência da União para a regulação do setor e pode gerar desequilíbrios nas políticas públicas federais.
A decisão, por maioria de votos, foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2435, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), concluído na sessão encerrada em 18/12 de 2020. Prevaleceu, no julgamento, o entendimento do ministro Gilmar Mendes de que a lei estadual extrapolou a sua competência supletiva e invadiu a competência da União para legislar sobre normas gerais de proteção e defesa da saúde, direito econômico e proteção do consumidor. O ministro explicou que, embora a União e os Estados tenham competência comum para estabelecer políticas públicas de saúde, a previsão da norma estadual vai de encontro ao planejamento e à forma de cálculo estabelecida em nível federal para a definição do preço de medicamentos e para a formação de um equilíbrio econômico-financeiro no mercado farmacêutico.
II – A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS NO ÂMBITO FEDERAL NO BRASIL
Competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. Competências são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções.
Isso permite falar em espécies de competências, visto que as matérias que compõem o seu conteúdo podem ser agrupadas em classes, segundo sua natureza, sua vinculação cumulativa a mais de uma entidade e seu vínculo a função do governo. Sob esses critérios, e observando a lição de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 413), pode-se classificar as competências, primeiramente, em dois grandes grupos com suas subclasses: 1 - competência material, que pode ser: a) exclusiva (artigo 21); b) comum, cumulativa ou paralela (artigo 23); II - competência legislativa, que pode ser: a) exclusiva (artigo 25, §§ 1º e 2º); b) privativa (artigo 22); c) concorrente (artigo 24); d) suplementar (artigo 24, § 2º).
Essas competências, sob outro prisma, podem ser classificadas quanto à forma, conteúdo, extensão e origem.
Quanto à forma, lembrou José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 414) que a competência será: a) enumerada ou expressa, quando estabelecida de modo explícito, direto pela Constituição para determinada entidade (artigos 21 e 22, por exemplo); b) reservada ou remanescente e residual, a que compreende toda a matéria não expressamente incluída numa enumeração, reputando-se sinônimas as expressões reservadas e remanescentes com o significado de competência que sobra a uma entidade após a enumeração da competência de outra (artigo 25, § 1º, cabem aos Estados as competências não vedadas pela Constituição), enquanto a competência residual consiste no eventual resíduo que reste após as competências de todas as entidades; c) implícita ou resultante (ou inerente ou decorrente, porque decorre da natureza do ente) quando se refere à exercício de poderes expressos, ou reservados.
Quanto ao conteúdo, a competência distingue-se em econômica, social, político-administrativa, financeira e tributária.
Quanto à extensão, que é o tema da presente discussão, ou seja, quanto à participação de uma ou mais entidades na esfera da normatividade ou da realização material, a competência se distingue em: a) exclusiva, quando é atribuída a uma entidade com exclusão das demais (artigo 21); b) privativa, quando enumerada como própria de uma entidade, com possibilidade, no entanto, de delegação e de competência suplementar (artigo 22 e seu parágrafo único, e artigo 23 e seus parágrafos); a diferença entre a exclusiva e privativa está nisso, porquanto aquela não admite suplementariedade nem delegação; c) comum, cumulativa ou paralela; d) concorrente, sendo que aqui a redação original da CF de 1988, compreendia:
d.1) possiblidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa; d2) primazia da União no que tange à fixação de normas gerais (artigo 23, §§ 1º, 4º).
Extensão de norma jurídica é o seu campo de incidência, que varia com a destinação da norma.
Extensão territorial é o fato de a norma incidir em todo ou em parte do território nacional. É fenômeno peculiar ao Estado federal, onde coexistem três atividades legiferantes – a federal, a estadual e a municipal – e, em consequência, três tipos de atos normativos: as normas federais, as estaduais e as municipais, como se lê de W.B. Munro, The government of the United States, 1932, páginas 332, 557 e 684). Estas normas são rigidamente hierarquizadas, de tal modo que a norma municipal não deve colidir com a estadual, nem esta com a norma federal. A colisão, porventura, ocorrente entre a norma federal e a estadual ou municipal, resolver-se-á pela prevalência da norma federal, como a manifestada entre a norma estadual e a municipal, pela subsistência da norma estadual. É a aplicação do velho postulado alemão Bundesrecht brich Landesrecht (o direito federal corta o direito local), assecuratório do primado da legislação federal sobre a estadual ou municipal, como se lê de T. Maunz, Deutsches Staatsrecht, 1957, § 162, n. VI).
Quanto à origem, a competência pode ser: a) originária, quando, desde o início, é estabelecida em favor de uma entidade; b) delegada, quando a entidade recebe sua competência por delegação daquela que a tem originalmente. Sua possibilidade consta no artigo 22, que comete à lei complementar autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo, e, também, do parágrafo único do artigo 23, que determina à lei complementar fixar normas para a cooperação entre a União e os Estados, Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
III – A COMPETÊNCIA QUANTO A MATÉRIA DE SAÚDE
Fixo-me na temática de caber à União Federal legislar sobre matéria de saúde com relação a normas gerais.
Observo o artigo 23 da Constituição:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
.......
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Nessa linha de pensamento, trago à elucidativa lição de Dalmo Dallari (Normas gerais sobre saúde: cabimento e limitações):
“No caso da Constituição brasileira de 1988 pode-se dizer que, em linhas gerais, mesmo sem atribuir superioridade à União sobre as unidades federadas, foram estabelecidos critérios que dão ao Legislativo federal a competência para legislar quando se considera conveniente uma disciplina legislativa uniforme para toda a Federação, o que implica certa centralização. Entretanto, não foi esquecida a hipótese de competência concorrente, ou seja, competência que não é exclusiva da União, além de se ter reconhecido que em determinados casos a competência pode ser exclusiva dos Estados ou dos Municípios. Para conhecimento do assunto, convém começar examinando a competência legislativa da União.
No artigo 22 são enumeradas as matérias sobre as quais a União tem competência para legislar com exclusividade, ficando, portanto, eliminada a hipótese de legislação estadual ou municipal sobre tais matérias. Abre-se apenas uma possibilidade de exceção, através do parágrafo único acrescentado a esse artigo, dispondo que, através de lei complementar, a União poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo. O artigo 24 faz a enumeração de matérias sobre as quais a União, os Estados e o Distrito Federal poderão legislar concorrentemente, tendo-se acrescentado alguns parágrafos a esse artigo, fixando regras visando a prevenir o risco de conflitos que poderiam decorrer da hipótese de haver lei federal e outra dispondo sobre o mesmo assunto. É muito importante o conhecimento dessas regras, sobretudo pelo fato de que a Constituição contém, no artigo 23, uma longa enumeração de matérias que são de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Como é óbvio, aquele que é competente para cuidar de certa matéria será, forçosamente, obrigado a legislar sobre ela, pois toda participação do poder público deve ocorrer nos quadros da lei.
De acordo com o disposto no § 1º, quando se tratar de matéria em que a competência legislativa é concorrente, a União somente poderá estabelecer normas gerais, deixando aos demais a legislação sobre pontos específicos. Evidentemente, nesse caso, a legislação que tratar de aspectos especiais não poderá contrariar as normas gerais estabelecidas pela União. O § 2o. confere aos Estados uma competência suplementar para legislar sobre as matérias que tiverem sido objeto de norma geral federal e o § 3o. dá aos Estados competência legislativa plena para legislar sobre as matérias que não tiverem sido objeto de norma geral federal. Neste caso, entretanto, dispõe o § 4º que sobrevindo uma norma geral federal a lei estadual já existente que lhe for contrária terá suspensa sua eficácia, passando-se a aplicar a regra do § 1º.”
Como ficariam as normas gerais editadas pela União Federal?
Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 "enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar". Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: "A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais" (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).
Para José Afonso da Silva, que integrou a Comissão Afonso Arinos, encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição que serviu de ponto de partida para os constituintes de 1988, pode-se falar com propriedade numa legislação principiológica, na qual se enquadrariam a fixação de normas gerais e a legislação sobre diretrizes e bases (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Ed.Revista dos Tribunais, 1989, pág.434). Para ele, portanto, legislar sobre normas gerais significa estabelecer princípios sobre determinada matéria, deixando para a legislação suplementar o estabelecimento de regras relativas a situações particulares.
Fernanda Dias Menezes de Almeida, professora de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, em seu livro Competências na Constituição de 1988 (São Paulo, Atlas, 1991) alertou que foi positivo o alargamento da competência legislativa concorrente, uma vez que favorece a descentralização federativa, não se devendo esquecer, entretanto, que resta um núcleo de centralização normativa, através da competência conferida à União para editar normas gerais. A par disso, ressalta que haverá dificuldades para a identificação das normas que devam ser reconhecidas como gerais, fazendo as seguintes ponderações:
É mister lembrar o ensinamento de Pontes de Miranda, para quem as normas gerais se caracterizam como sendo normas fundamentais, restritas a estabelecer diretrizes, sem possibilidade de codificação exaustiva.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, (Competência concorrente limitada. O Problema da conceituação das normas gerais, publicado na Revista de Informação Legislativa, número 100, de outubro/dezembro de 1988) cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-Membros na feitura das suas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos". Embora não exista aí uma conceituação sintética, há uma indicação de características e parâmetros que será de grande utilidade para a orientação dos legisladores e o esclarecimento de dúvidas em casos concretos.
Concluiu Dalmo de Abreu Dallari, naquele artigo citado:
“Em vista de tudo o que foi exposto, e tendo em conta, de modo especial, as questões relativas à saúde, pode-se concluir que a União tem duas espécies de competência legislativa. Uma delas é a competência para legislar sobre o que se pode dominar "sistema federal de saúde", cuja existência decorre do disposto no artigo 23 da Constituição, segundo o qual"é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II. Cuidar da saúde e assistência pública...". A par disso, a União pode legislar fixando normas gerais, tanto para todo o conjunto do sistema nacional de saúde, denominado sistema único. Com efeito, de acordo com o que foi estabelecido no artigo 24 da Constituição,"compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII. Previdência social, proteção e defesa da saúde;"No tocante ao exercício dessa competência pela União, o § 1o. do artigo 24 dispõe que "no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais".
Da combinação desses dispositivos, pode-se concluir que é possível a existência de leis federais tratando de aspectos particulares do sistema federal de saúde, mas essas leis não têm qualquer interferência na legislação dos Estados e dos Municípios sobre os respectivos sistemas de saúde. A par disso, a União pode legislar sobre normas gerais de saúde, fixando princípios e diretrizes genéricas que serão de observância obrigatória pelos legisladores estaduais e municipais.”
Estamos diante de normas gerais que são as editadas pelos poderes federais, vigorando em todo o território nacional. As normas particulares são emitidas pelos poderes estaduais e municipais, tendo eficácia apenas em seus territórios, e dizem respeito a seus especiais interesses locais.
IV – A QUESTÃO DA LEGISLAÇÃO SOBRE POLÍTICA DE PREÇOS E CONDIÇÕES CONTRATUAIS
A competência para legislar sobre política de preços e condições contratuais de instituições privadas não é regional, e sim federal.
Trata-se de relações comerciais que somente poderão ser tratadas pela União Federal, à luz do artigo o artigo 22 da Constituição Federal, que é taxativo em fixar à União o direito de legislar sobre as relações comerciais.
Trata-se de competência privativa. A diferença que se faz entre competência exclusiva e competência privativa é que aquela é indelegável, enquanto esta, por sua vez, é delegável.