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Consentimento livre e esclarecido na pesquisa envolvendo seres humanos.

A distância entre o "dever ser" e o "ser"

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Agenda 19/08/2006 às 00:00

3 – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO COMO "SER"

            A grande maioria dos institutos jurídicos tem frustrada a expectativa de serem utilizados efetivamente para o fim para o qual foram moldados; em relação ao instituto do Consentimento Livre e Esclarecido e ao Termo (TCLE) que o corporifica não foi diferente. Concebido para corporificar o consentimento livre e esclarecido de sujeitos ou grupos de pesquisa, o TCLE passou a ser utilizado como documento hábil para prevenir responsabilidades dos responsáveis pelas pesquisas. Como diz Joaquim Clotet, José Roberto Goldim e Carlos Fernando Francisconi, "Para muitos, o Consentimento Informado tem apenas o significado de gerar uma prova deste processo de informação, na expectativa de eximir o profissional de futuras conseqüências advindas dos mesmos." [27]

            A partir da observação da realidade, os autores acima pontuaram:

            "Em alguns projetos de pesquisa os Termos de Consentimento Informado são tão longos e de difícil compreensão que não poderiam ser utilizados na prática de forma adequada. Estes documentos poderiam ser caracterizados apenas como instrumentos burocráticos, com a finalidade de cumprir exigências de normas nacionais e internacionais. Na realidade alguns deles tem uma redação tão técnica e detalhada que sua finalidade parece ser outra. Poderiam ser caracterizados como pretensos termos de isenção de responsabilidade para o pesquisador e eventuais patrocinadores, na medida em que todas as informações estão ali contidas e o participante autorizou a realização dos procedimentos." [28]

            Não quero dizer que conceber o Termo de Consentimento como um documento destinado a fazer prova a favor do médico ou do pesquisador em eventual litígio jurídico seja de todo errado, mas o grande problema é que ao se conceber o Termo de Consentimento Livre e Voluntário apenas com essa finalidade acaba-se se esquecendo que, sobretudo, demanda um processo informativo destinado a obter o consentimento livre e esclarecido do sujeito quanto à participação em uma pesquisa, contrariando, assim, não apenas o espírito da Resolução CNS n.º 196/96 e das normas internacionais, que têm o CLE e o TCLE como instrumentos de proteção da liberdade e dignidade dos sujeitos da pesquisa, mas em especial a Constituição Federal que tem a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, II).

            Os reflexos dessa dissociação na prática são desastrosos: pesquisas sem consentimento informado; exigência de consentimento para uma série de procedimentos (o bundled consent); TCLEs com informação insuficiente, com linguagem inacessível, demasiadamente técnica, de conhecimento restrito à comunidade científica, indutores da participação, termos longos e resultado de traduções de idiomas estrangeiros para o nacional, termos cujo objetivo é tão-somente proteger os pesquisadores; execução do processo de obtenção do consentimento por pessoa diversa da que redigiu o termo e sem qualificação para prover a informação ampla e irrestrita ao sujeito da pesquisa; demasiada importância ao termo em si, como se estivesse dissociado do processo de que faz parte; obtenção do consentimento a posteriori, quando já realizada a pesquisa, especialmente no âmbito das instituições de ensino, especialmente fundamental; termos obtidos de pessoas que demonstram evidente grau de vulnerabilidade (militares, funcionários etc), sem um cuidado adicional para com a constatação dessa vulnerabilidade e com a observância da Resolução CNS n.º 196/96, quando diz que as pesquisas com pessoas vulneráveis somente podem ser realizadas quando impossível de o serem com pessoas plenamente capazes.

            Tão verdadeiras são essas assertivas que, como informam José Roberto Goldim e Carlos Fernando Francisconi, "Aproximadamente 60% dos projetos submetidos ao Grupo de Pesquisa e Pós Graduação do HCPA, para serem realizados na Instituição, retornam aos seus autores para que o Termo de Consentimento seja corrigido ou aprimorado." [29]


CONCLUSÃO

            Constatou-se, ao longo do presente artigo, que se criou toda uma teoria a respeito do processo de obtenção do consentimento livre e esclarecido, bem como da sua corporificação em um documento escrito, com a finalidade de se resguardar a dignidade do ser humano, enquanto sujeito da pesquisa, mediante o respeito à sua autonomia, mas que, na prática, aquilo que é pregado pela teoria acaba não sendo seguido, evidenciando, portanto, uma distância entre o mundo do "dever ser" e do "ser".

            Essa dissociação, em grande parte, deve-se à falta de plena ciência, por parte dos agentes que lidam com a pesquisa, quanto aos riscos a ela inerentes e o seu caráter invasivo, os quais por vulnerabilizarem o sujeito da pesquisa e a sociedade, ensejam a necessidade de proteção dos mesmos, a qual só se perfaz mediante condutas estribadas na Ética. Parece faltar, portanto, um pouco de reflexão, de cuidado, de bom senso, daqueles que intervêm nas pesquisas.

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            Á vista disso, imperativa se faz essa reflexão, seja partindo dos agentes que participam das pesquisas (uma auto-reflexão), seja partindo do CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), para o qual, aliás, a Resolução CNS n.º 196/96, atribui o dever de motivar a reflexão ética constante e os instrumentos necessários para tanto.

            Acredita-se que êxito considerável pode ser obtido pela reflexão aqui proposta, no que concerne ao reforço da eticidade da pesquisa, contribuindo para reduzir o espaço entre o "Consentimento Livre e Esclarecido" enquanto "dever ser" e enquanto "ser".


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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            Cadernos Adenauer III (2002), n.º 1. Bioética. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, maio 2002. SCHRAMM, Fermin Roland. A pesquisa bioética no Brasil entre o antigo e o novo.

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            O caso Tuskegee. Quando a ciência se torna eticamente inadequada. Disponível online: http://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm. Acessado em 20 de maio de 2006.

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            SANTOS, M. C. C. L.. O Equilíbrio de um pêndulo. Bioética e a Lei: implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998.

            SGRECCIA, E.. Manual de Bioética. I. Fundamentos e Ética Biomédica. Traduzido por Orlando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

            SLAWKA, S.. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área da saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Departamento de Medicina Preventiva).

            VARGA, A. C. Problemas de Bioética. Traduzido por Pe. Guido Edgar Wenzel. São Leopoldo/RS: Gráfica Unisinos, 1990, p. 139-154.


Notas

            01

Em sua dissertação de mestrado, Sérgio Slawka questiona a concretização de uma decisão efetivamente autônoma e genuína do sujeito da pesquisa face aos atuais contornos do processo de obtenção do consentimento livre e esclarecido. (SLAWKA, S.. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área da saúde: uma revisão crítica. São Paulo: 2005. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Departamento de Medicina Preventiva).

            02

"A Bioética nasce oficialmente quando o oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter criou o neologismo bioethics para indicar um novo campo de pesquisa e de atuação da ética. Para esse autor, o novo campo teria caráter interdisciplinar, com marcado conteúdo ecológico, e deveria preocupar-se com a sobrevivência da espécie humana (...)." SCHRAMM, F. R.. Cadernos Adenauer III (2002), n.º 1, p. 40.

            03

GOLDIM, J. R. Núcleo Interdisciplinar de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Princípio do Respeito à pessoa ou da autonomia. Disponível [online] http://www.bioetica.ufrgs.br/autonomia.htm. Acessado em 20/05/2006.

            04

GOLDIM, J. R. Núcleo Interdisciplinar de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Princípio da Beneficência. Disponível [online] http://www.bioetica.ufrgs.br/beneficencia.htm. Acessado em 20/05/2006.

            05

GOLDIM, J. R. Núcleo Interdisciplinar de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Princípio da Não-Maleficência. Disponível [online] http://www.bioetica.ufrgs.br/não_maleficencia.htm. Acessado em 20/05/2006.

            06

PALÁCIOS, M.; OLINTO A. PEGORARO, A. M. (org.). Ética, ciência e saúde: desafios da bioética. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001, p. 168-169.

            07

Enquanto a Bioética é conhecida como "o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais" (LEPARNEUR, Hubert. Força e fraqueza dos princípios da bioética. Bioética - v. 4 nº 2 , Brasília, Conselho Federal de Medicna, 1996 fls 138), o Biodireito, a partir de um compromisso interdisciplinar com a Bioética, visa, através de seu principal elemento que é a "coercibilidade", exercer a função de indicador as condutas justas, ou procedimentos apropriados para que as decisões e as opções tenham todas as chances de resolver os problemas suscitados pelas novas tecnologias. (GUSMÃO, P. D. de. Introdução ao Estudo do Direito. 19º ed. Rev. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 201).

            08

SLAWKA, S.. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área da saúde: uma revisão critica, p. 25-33.

            09

Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos. Preparadas pelo Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS), em colaboração com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Traduzida por Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 111.

            10

CLOTET, J. O consentimento informado: uma questão do interesse de todos, p. 9.

            11

Os dados para a presente pesquisa foram obtidos junto às seguintes fontes: SLAWKA, S.. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a pesquisa em seres humanos na área da saúde: uma revisão crítica, p. 36-37 e CLOTET, J.; FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 30-56.

            12

VARGA, A. C. Problemas de Bioética, p. 535.

            13

O caso Tuskegee. Quando a ciência se torna eticamente inadequada. Disponível online: http://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm. Acessado em 20 de maio de 2006.

            14

CLOTET, J., FRANCISCONI, C. F., GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento Informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 14.

            15

CLOTET, J., FRANCISCONI, C. F., GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento Informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 14.

            16

CLOTET. J.. O consentimento informado nos Comitês de Ética em Pesquisa e na prática médica, p. 51-59.

            17

SANTOS, M. C. C. L.. O Equilíbrio de um pêndulo. Bioética e a Lei: implicações médico-legais, p. 60.

            18

ALMEIDA, J. L. T. de. Respeito à autonomia do paciente e consentimento livre e esclarecido: uma abordagem principialista da relação médico-paciente, p. 61.

            19

CLOTET, J., FRANCISCONI, C. F., GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento Informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 111.

            20

GIOSTRI, H. T. Responsabilidade Médica. As obrigações de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação, p.83.

            21

FRANÇA, G. V.. Flagrantes médico-legais III, p. 56.

            22

CLOTET, J.; FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 72.

            23

Id, ibidem, p. 74.

            24

CLOTET. J.. O consentimento informado nos Comitês de Ética em Pesquisa e na prática médica, p. 67.

            25

É o que consta, aliás, do folder esclarecendo perguntas sobre a pesquisas em seres humanos, constante da página do Conselho Nacional de Saúde: www.cns.gov.br.

            26

CLOTET, J.; FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 70.

            27

CLOTET, J.; FRANCISCONI, C. F.; GOLDIM, J. R. (org.). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil, p. 9.

            28

Id, ibidem, p. 80-81.

            29

GOLDIM, J.; FRANCISCONI, C. F.. Termo de Consentimento Informado para Pesquisa. Auxílio para sua estruturação. Disponível [online] no endereço: http://www.ufrgs.br/bioetica/textos.htm. Acessado em 19/05/2006.
Sobre a autora
Adriana Estigara

Doutora pela PUC/SP Mestre em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogada e Consultora na área do Direito Tributário, e Direito do Terceiro Setor, integrante do Lewis & Associados. Professora junto à Universidade Positivo nas graduação e na pós graduação junto às disciplinas de Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTIGARA, Adriana. Consentimento livre e esclarecido na pesquisa envolvendo seres humanos.: A distância entre o "dever ser" e o "ser". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1144, 19 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8803. Acesso em: 22 nov. 2024.

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