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O CDC nos litígios de ressarcimento entre seguradores e transportadores.

Decisão do STJ reanima o antigo debate

Agenda 08/02/2021 às 16:00

Comentário sobre recente decisão monocrática do STJ que reanima a defesa da tese do uso da legislação consumeristas em litígios envolvendo reparação de danos contra transportadores marítimos de cargas.

Vinte anos atrás postulei, em defesa de segurador sub-rogado, uma ação regressiva de ressarcimento contra transportador marítimo. Foi o pano de fundo o sinistro do navio DG Harmony, em 1998, a bordo do qual todas as cargas se viram atingidas por explosões e engolidas pelo incêndio. O navio viria a afundar.

Ajuizada a ação, soube-se que, nos Estados Unidos, um litígio judicial apontava problemas com a produção de certo produto químico. Todo um lote estava comprometido, e se encontrava no DG Harmony justamente um contêiner com o produto instável.

Especulou-se que o produto causara as explosões e incêndio, pois, segundo os dados do litígio americano, apresentava desequilíbrio molecular. No litígio brasileiro, o transportador alegava força maior, causa excludente de responsabilidade.

Para combatê-la, afirmei que a causa derradeira do sinistro não foi o vício do produto, e sim o grave erro operacional do transportador. Motivo da afirmação: o contêiner havia sido indevidamente estivado. Tratando-se de carga perigosa, correto seria alocá-lo no convés do navio, em ponto de fácil alijamento, preparado à hipótese de eventual problema.1

Mas não. Estivou-se o contêiner no porão onde passava a serpentina de aquecimento do combustível.

A linha de argumentação encaminhava-se para afirmar que o vício do produto seria concausa, não causa fundamental do evento danoso. A causa, repita-se, foi o erro operacional do transportador marítimo (que estivou o contêiner no único lugar onde não poderia). Assim, além da presunção legal por descumprimento de obrigação de resultado, havia a responsabilidade objetiva por manejo de fonte de risco (art. 927 do Código Civil)2. E culpa grave. O transportador não observou o dever geral de cautela (art. 750 do Código Civil)3 e o que se entende por cláusula de incolumidade, um dever da Lex Ars do transportador.

Em que pesem os esforços, infelizmente prevaleceu a tese do transportador: a força maior. Consola-me saber que, fosse diferente a decisão e procedente a pretensão de ressarcimento em regresso, o reembolso não seria possível, pois o transportador faliu, e não foi sucedido por ninguém. Isso, claro, não altera o amargor da derrota.

Pouco tempo faz que o Superior Tribunal de Justiça solucionou do caso a última questão pendente.

O objetivo deste breve comentário não é ilustrar o caso, o suporte fático ou a aplicação do Direito. Nem mesmo questionar a decisão da Justiça; ainda que eu tenha convicção sobre a responsabilidade civil do transportador marítimo.

Quero apenas destacar um fundamento específico da decisão monocrática do Ministro Marco Buzzi, que rejeitou o Recurso Especial4 interposto por meu representado, o segurador sub-rogado, e ratificou a ementa do Acórdão:

2. A presente lide é regida pela legislação consumerista, devendo a Embargada responder objetivamente, independente da existência de dolo ou culpa, pelos danos causados em decorrência da falha da prestação de seus serviços, ex vi do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.

3. Contudo, ainda que a responsabilidade seja analisada sobre o enfoque do Código de Defesa do Consumidor, no presente caso, a Embargada permanece sem o dever de indenizar pelos danos ocorridos, ante a presença da excludente de responsabilidade do inciso li, do §30, do art. 14, do Código de Defesa do Consumidor.

Ao manter a ementa proferida pelo Tribunal de origem, o Ministro Buzzi, entenda-se, o Superior Tribunal de Justiça, reviveu um assunto então resolvido: a incidência da legislação consumerista nas disputas judiciais envolvendo danos no transporte de carga.

Por que digo a palavra “reviveu” e a expressão “então resolvido”?

Faz algum tempo que o próprio Superior Tribunal de Justiça se posicionou contra a incidência do CDC em casos do gênero. Para melhor entender o peso da decisão, convém expor-lhe o contexto.

Até os primeiros anos da década passada, eu defendia a aplicação do CDC nos litígios contra transportadores por descumprimento da obrigação de transporte. Acadêmica e profissionalmente. Meu escritório foi um dos primeiros a defender a tese consumerista em benefício do pleiteante de reparação civil contra o transportador causador de dano.

Transporte é modalidade de prestação de serviço, logo ato jurídico submetido ao teor da lei do consumidor.5 O consignatário da carga é o destinatário final do serviço de transporte. O serviço, não a carga, é o nexo de causalidade do selo consumerista.

Então, o dono da carga, credor da obrigação de transporte, ajusta-se perfeitamente ao conceito de consumidor, enquanto o transportador ao de fornecedor (de serviço). O status de consumidor, diga-se desde já, seria transferido ao segurador por meio da sub-rogação, a teor do art. 786 do Código Civil6 e da Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal7.

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Pela sub-rogação passam-se os direitos e ações. E, enfatize-se, transferência de direitos e ações que não implica deveres e ônus prejudiciais ao pleno exercício do ressarcimento, como determina o seu §2º8.

Além disso, pode-se sustentar que o parágrafo único do art. 2º do CDC autoriza o uso, pelo segurador sub-rogado, da legislação especial porque cabível e correta sua justaposição ao conceito de “coletividade de pessoas”, ainda que de modo muito específico: Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Razões não faltam para considerar o consignatário da carga, destinatário final do serviço de transporte, consumidor direto, e o segurador sub-rogado, consumidor por derivação ou equiparação.

Por isso, durante muito tempo advoguei a tese da aplicação do CDC nos pleitos de ressarcimento em regresso de seguradores sub-rogados contra transportadores de cargas, especialmente os marítimos. Inicialmente, e por um bom tempo, ela foi agasalhada. Decisões monocráticas e colegiadas a reconheceram e aplicaram.

Com o passar do tempo, a tese perdeu fôlego, e começaram a vir decisões em sentido contrário.

No meio tempo, o novo Código Civil foi promulgado e sua vigência tornou desnecessário o constante socorro ao CDC. Ele, o Código Civil, era e é mais do que bastante para defender os direitos e interesses dos donos de cargas contra os transportadores.

Meu escritório deixou de alegar sua incidência nos debates jurídicos, e eu expus a nova situação na quarta edição, revisada e atualizada, do meu modesto livro Prática de Direito Marítimo.

Sem abandonar de vez a tese, por considerá-la boa e correta, deixei-a de lado, vergado aos ventos da jurisprudência. Enfim, de defensor do CDC nos litígios envolvendo Direito de Transportes, passei a lhe ser indiferente, quase contrário.

Por prudência, não esconjurei a tese nem a retirei das páginas do meu livro. Mantive-a, sem entusiasmo, no plano acadêmico, e a dispensei no plano prático, profissional.

Eis que, para minha surpresa, o Superior Tribunal de Justiça a reviveu.

O caso é de longa data. A decisão colegiada, que bisou a monocrática, foi proferida em um momento em que a tese consumerista estava no auge, por assim dizer.

O fato de não se haver corrigido a ementa, de não haverem acrescido de ressalva quanto ao uso da legislação consumerista, autoriza dizer que a Corte Superior, por meio de um dos seus mais ilustres membros, a trouxe de volta ao campo jurídico.

Em outras palavras: pelos fundamentos da decisão do Ministro Buzzi, a inter-relação entre Direito do Seguro, Direito de Transportes e Direito do Consumidor é novamente reconhecida, ainda que reflexamente, e alvo de atenção. Merece o assunto, no mínimo, ser rediscutido.

Esta leitura é feita com base nos fundamentos da decisão que rejeitou o Recurso Especial.

Na parte sua dispositiva, a decisão lembra que o CDC foi parte da pretensão recursal do segurador sub-rogado:

“(ii) art. 14 da Lei 8.078/90, sob o fundamento de que o local da estiva do contêiner, escolhido pelo preposto da recorrida, foi a causa preponderante do sinistro. Afirma existir pelo menos culpa concorrente. Pontua, ademais, que os importadores que possuíam mercadorias a bordo do navio "DG HARMONY" não podem ser penalizados pelo recebimento de carga explosiva, estufada de forma incorreta. Alega, ainda, que uma informação equivocada prestada pelo exportador não enseja a irresponsabilidade da recorrida;”.

E embora a solução não tenha sido a que pretendia o segurador sub-rogado, recorrente, não foi refutada a incidência do CDC no litígio de ressarcimento em regresso contra o transportador marítimo: “Concluiu, portanto, que diante da existência de fatos aptos a romper o nexo de causalidade entre a conduta da ora recorrida e o dano experimentado, não seria possível a responsabilização desta, ainda que aplicadas as regras dispostas no CDC.”

Considerando que, na decisão recorrida, a turma julgadora do Tribunal de origem acolheu expressamente a aplicação do CDC, é certo entender que a palavra “ainda” não se traduz como condicionante de dúvida, mas ênfase de afirmação.

A interpretação que aqui se defende é a de reconhecimento da aplicação da legislação consumerista, de tal forma que onde se lê “ainda que aplicadas as regras dispostas no CDC”, deve ser lido: “aplicam-se as regras dispostas no CDC”.

O “ainda” foi usado no fundamento judicial para destacar a fortuidade e o rompimento do nexo de causalidade, os quais nem mesmo a legislação especial e protetiva é capaz de desprestigiar quando incidentes.

Por isso tudo é que se afirma que a aplicação do CDC, nos litígios de ressarcimento em regresso contra transportadores de cargas, foi revivida, e a tese que antigamente a amparava, revigorada.

Se vingará ou não, se mudará ou não os rumos da jurisprudência, é difícil dizer, mas que será protagonista de novos e acalorados debates, disso não se pode duvidar.

A importância da sua reintrodução é grande. Ajudará, e muito, nos debates envolvendo cláusulas contratuais abusivas, como as que dispõem sobre limitação de responsabilidade e imposição de foro estrangeiro ou arbitragem. Auxiliará ainda em outros debates, temas polêmicos, como a consideração ou não do roubo como causa legal excludente de responsabilidade e a modulação de precedentes.

Rios de tinta correrão, em meio a horas mal dormidas, mas para o bem dos donos de carga brasileiros e seus seguradores, ressurge uma poderosa arma para a batalha cotidiana. Ainda bem.


Notas

1 A despeito do desequilíbrio molecular (vício de produção), o tipo de carga era fundamentalmente perigoso, razão pela qual deveria ser tratada de modo especial pelo transportador. Contêiner com carga perigosa, sensível, é identificado com marcações específicas e facilmente visíveis, justamente para ser estivado em lugar propenso ao alijamento (ato pelo qual a carga é lançada no mar, deliberadamente).

2 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

3 Art. 750. A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa quando ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado.

4 RECURSO ESPECIAL Nº 1395699 - AM (2013/0247203-5)

5 Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

6 Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.

7 Súmula 188. O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.

8 §2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.

Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Informações sobre o texto

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