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Anatomia de uma fraude à Constituição

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Esta investigação histórica revela a inserção sorrateira na Constituição Federal, por interferência confessa do então deputado constituinte Nelson Jobim, de dispositivo que acarreta danos cada vez mais pesados à economia e à sociedade brasileiras.

Resumo: Este artigo registra uma investigação, e sua publicação visa a dois objetivos: o de preencher uma lacuna na história do Brasil, e o de evidenciar a importância da retenção de documentos de valor histórico ou jurídico em registro material, de forma a permitir, a qualquer um, formar juízo sobre sua autenticidade por meios próprios. A investigação revela como foi inserido na Constituição Federal, de forma ilegal e solerte, dispositivo que acarreta danos cada vez mais pesados à economia e à sociedade brasileiras.

Sumário: 1. Introdução; A ilegalidade; Elementos tipificadores. 2. Serviço da Dívida; Conseqüências Socioeconômicas; Implicações Jurídicas. 3. Antecedentes e Conseqüentes; Na magistratura; No poder; Bibliografia.


1. Introdução

Devido ao lapso de quase vinte anos desde os fatos, esta narrativa começa revendo alguns aspectos importantes do processo constituinte. A Assembléia Nacional Constituinte (ANC), eleita no Brasil em 1986, começou seus trabalhos aprovando, por meio da sua Resolução n° 2, seu Regimento Interno. Nesse diploma legal, publicado nos registros oficiais da ANC - o Diário da Assembléia Nacional Constituinte (DANC) - em 25 de março de 1987, foram definidas as regras para condução dos debates e elaboração, votação e promulgação do texto da Constituição Federal de 1988.

O Regimento Interno da Constituinte estabelece três etapas para a elaboração do novo texto constitucional.

Quadro 1 - Art. 28. e 29 do Regimento Interno da ANC

Da linguagem do artigo 29, surge uma questão que cumpre esclarecer: Que tipo de omissões ou erros poderia, excepcionalmente, ser sanado por emendas em segundo turno? Da assertiva grifada em vermelho no Quadro 1, a que veda novas emendas excetuando as supressivas e as sanativas, pode-se concluir que as omissões e erros sanáveis em segundo turno são os de natureza que não de mérito.

Com efeito, o próprio formulário para submissão de emendas de segundo turno assim o esclarece, conforme referências aqui citadas 6. Ademais, essa conclusão é confirmada em despachos do Presidente da ANC, negando acolhimento a propostas de Emenda que, apesar de declaradas sanativas pelo autor, continham inovação de mérito, conforme exemplifica o despacho ao pedido n° 454 Anexo 1.3.

A ilegalidade

Esclarecida essa questão regimental, vê-se que ocorreu alteração de mérito no artigo que trata das diretrizes orçamentárias, o de número 195 no Projeto (A) – mais precisamente, nos seus § 3° e 4°, dispositivos que haviam sido preservados, com o restante do referido artigo, na etapa de sistematização. O locus da irregularidade está destacado no Quadro 2, abaixo, em amarelo sobre fac-símile da página correspondente do DANC 2 (A imagem no Quadro 2 conecta-se à versão eletrônica da página correspondente publicada no portal Internet da Câmara dos Deputados).

Quadro 2 – Artigo 195 aprovado em 1º turno na ANC

Na etapa de sistematização, afora o fato de ter sido renumerado para 172, esse artigo passou à votação em segundo turno sem qualquer alteração, em 27 de agosto de 1988, acompanhado de propostas de Emenda que lhes diziam respeito, mostradas no Anexo 2. As partes do artigo que iriam sofrer supressão ou correção nos termos regimentais estão destacadas, no Quadro 2, em grifo verde.

Mas naquela votação houve também alterações de mérito, como mostra o fac-símile na imagem do Quadro 3. Ao cumprir a Ordem do Dia, o presidente da ANC anunciou a "fusão" das propostas de Emenda ao artigo 172, com outras relativas aos arts. 171. e 173, pondo em votação um único texto (para os três artigos), que supostamente as reunia para votação simultânea, como indicado na primeira coluna do quadro abaixo. A questão, não respondida pelo Relator, é se as reunia mesmo, e se as reunia conforme o disposto na Resolução n° 3 Anexo 1.1

Quadro 3 - Proposta regimental para os art. 171. e 173, ilegal para o 172

O Quadro 3 aponta dispositivos ilegalmente adicionados à transcrição da redação aprovada no 1º Turno, da qual eles não constavam. A transcrição tinha que ser fiel ao texto aprovado no 1º Turno, pois as propostas de Emenda acolhidas para os três artigos, citadas ou não para aquela votação, eram supressivas ou corretivas; e a única corretiva, a de n° 1785, propunha deslocar uma frase de um inciso para o seu caput Anexo 3. Os dispositivos adicionados, destacados na parte superior do Quadro 3 em vermelho, surgiram somente no Requerimento apresentado no dia de votação, sob o pretexto de fundir as propostas citadas.

Quadro 4- Resumo da votação que (r)emendou o artigo 172 em 2° turno

O Quadro 4 mostra:

A imagem superior do Quadro 3 conecta-se à página correspondente do DANC (5, p. 13.468), e a imagem inferior, ao Anexo 3, que lista as propostas de Emenda relativas aos art. 172, 173 e 174, encaminhadas pelo Relator da ANC para votação em 2° turno.

A imagem esquerda do Quadro 4 conecta-se à página correspondente do DANC (5, pp. 13.469), e a imagem direita, idem (5, pp. 13.470).

Elementos tipificadores

Da ilegalidade mostrada no Quadro 3, surgem os seguintes elementos tipificadores:

  1. No Requerimento de fusão levado à votação n° 914 em 27.8.88, foram adicionados ao § 3° do art. 172. do Projeto (B) dispositivos

violando o art. 29. da Resolução n° 2 e o § 2° do art. 3° da Resolução n° 3 da ANC, por conter inovação de mérito Anexo 1;

  1. No Requerimento de fusão, votado em plenário após leitura pelo presidente da ANC...

violando o § 2° do art. 3° da Resolução n° 3, pelo fato desse Requerimento não ter sido assinado por qualquer constituinte que houvera proposto emenda ao artigo objeto de adições ilegais (§ 3° do art. 172. do Projeto B);

  1. Nos registros da referida votação, lavrados pela Secretaria Geral da Mesa da ANC e arquivados no Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados...

em violação, agravada por antecedentes Anexo 9, do requisito de idoneidade necessário ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, exercido por Nelson Jobim quando de sua confissão pública.


2. Serviço da Dívida

Para compreender a gravidade das conseqüências da adição ilegal de dispositivos constitucionais acima descrita, há que avaliar o significado do serviço da dívida no contexto da disputa por recursos orçamentários. O dispositivo ilegal excetua o serviço da dívida das restrições ao remanejamento desses recursos, mediante a adição de texto ao inciso II do atual artigo 166 da Constituição de 1988 (alínea b). A questão das despesas com juros e amortizações da dívida pública estava no centro das preocupações que suscitaram a própria convocação da Assembléia Nacional Constituinte, em 1986.

Recordamos, tomando como referência a edição de 22.01.86 da revista Veja 9, o contexto político então presente:

Em setembro de 1982, num gesto espetacular, o México declara moratória em plena reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Toronto. Traumatizados, os banqueiros fecham as torneiras dos empréstimos aos países endividados e, pego em cheio, o Brasil quebra.

Em novembro de 1982, o ministro do Planejamento, Delfim Netto, começa a arquitetar uma operação de socorro com o FMI. Sem recursos internacionais, o Brasil já não pagava os juros de sua dívida externa. Nada é revelado. O país acorda para a entrada do FMI e as visitas dos seus fiscais após as eleições [estaduais] de Novembro.

Em dezembro, no Plaza Hotel, em Nova Iorque, o presidente do Banco Central, Carlos Langoni, acerta com os banqueiros os famosos ´4 projetos´, entre eles a prorrogação do pagamento dos 4 bilhões de dólares que o Brasil devia saldar ao longo de 1983 e um empréstimo jumbo de US$ 4 bilhões.

Em janeiro de 1983, o governo João Figueiredo despacha para Washington sua primeira ´Carta de Intenções´ para o FMI. Nela se compromete a baixar a inflação, eliminar o déficit público e diminuir o número de empresas estatais, entre uma copiosa lista de promessas.

Em fevereiro de 1983, é formulada uma segunda Carta de Intenções, uma vez que as promessas da primeira foram tragadas pela realidade. Á segunda carta seguem-se outras cinco, todas com o mesmo destino. Entre uma e outra, o Brasil mergulhava numa longa recessão de 3 anos.

Uma exemplar demonstração do estado de espírito dos credores do País pôde ser colhida numa frase proferida pelo diretor-presidente do FMI, Jaques de Larosière: ´ Se o Brasil não se acertar com o programa do FMI, vai desaparecer pelo ralo´. O Brasil gera, no entanto, superávits comerciais crescentes para pagar os juros -- em 1984 alcança o record histórico de US$ 13.1 bilhões de saldo em seu comércio exterior.

Em fevereiro de 1985, "às vésperas da mudança de governo, o presidente do Banco Central, Afonso Pastore, tenta arrancar dos bancos e do FMI uma superprorrogação de 16 anos do pagamento das dívidas do país. Não deu certo. Em março, o ministro da Fazenda do novo governo, Francisco Dorneles, tenta retomar essas negociações e envia um plano de ajuste econômico ao FMI sob intenso sigilo. Em agosto, o plano é devolvido.

Em setembro de 1985, o presidente José Sarney investe, na ONU, contra a terapia recessionista do FMI e diz que a economia vai se recuperar à base do crescimento. Em outubro, na reunião do FMI em Seul, na Coréia do Sul, o novo ministro da Economia, Dilson Funaro, reafirma a fala de Sarney.

Em Janeiro de 1986, pela primeira vez o Brasil ganha: o presidente do Banco Central, Fernão Bracher, capitaneia em Nova Iorque a renegociação da dívida externa Brasileira -- sem que o governo submeta sua política econômica ao FMI. O ministro do planejamento, João Sayad, afirma: ´Nós temos condições de ser uma ovelha desgarrada´.

Em março de 1986, é lançado o Plano Cruzado. A partir de julho, o País sofre escassez e ágios, pelas distorções no congelamento de preços. Em fevereiro de 1987, dias antes de se instalar a Assembléia Nacional Constituinte, o presidente Sarney declara nova moratória. Em agosto, o então maior Partido político do Brasil, o PMDB, veta acordo com o FMI, fazendo manter suspenso o pagamento dos juros da dívida externa, depois retomado em novembro de 1987.

Em janeiro de 1988 o ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, volta a negociar com o FMI. Em maio ele anuncia um novo acordo, que veio a ser assinado em junho, numa oitava Carta de Intenções pela qual, além de comprometer-se a estimular a privatização do seu patrimônio, o Brasil, pela primeira vez, concede aos bancos o direito de retaliar. Também em junho, ocorre a fundação do PSDB, por parlamentares que se desligam do PMDB, dentre os quais o líder do partido, Mário Covas. Com isso, assume a liderança do PMDB o então vice-líder, deputado em primeiro mandato Nelson Jobim Anexo 8.6, que futuramente viria a ser ministro e presidente do STF.

É ele quem, juntamente com o então líder e atual membro da diretiva nacional do PTB, no auge da frenética maratona de votação de 2° turno Anexo 8.1 e 8.5, teria rubricado a folha do Requerimento "de fusão" da qual se produziu a adição ilegal destinada a privilegiar as despesas com o serviço da dívida, como mostra o Anexo 5.2.

Conseqüências socioeconômicas

Essa adição ao Texto Maior criou, de forma ilegal e ilegítima, exceções à norma do inciso II do atual art. 166. que contemplam, além do serviço da dívida (alínea b), também as despesas com pessoal (alínea a) e as transferências constitucionais a Estados e Municípios (alínea c). Porém, ao contrário do serviço da dívida, esses dois tipos de gastos não são depressivos para a economia. Bem ao contrário, destinam-se a atividades indispensáveis ao funcionamento dos governos federal e locais.

E por não dependerem de injunções dos mercados financeiros mundiais, como depende o serviço da dívida, as decisões a respeito das transferências locais e das despesas de pessoal podem ser tomadas sem ferir a soberania nacional, consagrada no art. 1º da Constituição.

A Tabela 1, a seguir, mostra gastos nos três tipos de despesa privilegiados pelo dispositivo ilegal, bem como as despesas de investimento federal. A base das comparações é 1986, ano em que foi eleita a Assembléia Nacional Constituinte (o ano em que foi instalada, 1987, foi atípico por efeito da moratória). A Tabela 1 coteja o ano base com as médias 1988/1989 e 2003/2004, em valores atualizados a preços de 2004.

Tabela 1 - ORÇAMENTOS FISCAL E DA SEGURIDADE SOCIAL

ORÇAMENTOS FISCAL E DA SEGURIDADE SOCIAL

1986

1989-90

1989-90

2003-04

2003-04

DESPESA DA UNIÃO POR GRUPO

(bilhões R$)

(bilhões R$)

(1986=100)

(bilhões R$)

(1986=100)

a) Pessoal e encargos sociais

16,4

60,5

368,9

94,5

576,2

Juros e encargos da dívida

40,1

71,5

178,3

77,7

193,8

Amortizações da dívida

10,4

492,7

4.737,5

85,3

820,2

b) Serviço da dívida

50,5

564,1

1.117,0

162,9

322,6

c) Transferências para Estados e Municípios

46,0

43,8

95,2

96,8

210,4

Investimento

20,9

12,8

61,2

9,7

46,4

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional

Cálculos de médias e relações: Adriano Benayon

De 1986 para 1988-89, o serviço da dívida foi multiplicado por 11, enquanto as despesas com pessoal e encargos sociais (alínea a) o foram por 3,7, ao passo que as transferências constitucionais para governos locais decresceram. No caso da alínea a, esse fator (3,7) deve ser desconsiderado, pelo fato de a Constituição ter transformado grande número de celetistas em estatutários, sob o regime jurídico único dos servidores da União, e concedido benefícios previdenciários a milhões de trabalhadores rurais.

Na rubrica de pessoal e encargos sociais não se deve, portanto, avaliar o crescimento da despesa em 2003/2004 tomando por base 1986, mas a média de 1988/1989, o que implica um índice de 156,2, bem inferior ao de 576,2 (que aparece na extrema direita da 1ª linha da Tabela 1), e menor que a metade do índice referente ao serviço da dívida (que aparece na 4ª linha), de 322,6.

Ademais, nem mesmo o índice de 156,2 reflete a realidade da elevação das despesas de pessoal, porquanto, nos quase 20 anos decorridos de 1986 a 2003/2004, houve considerável aumento do número de aposentados do serviço público, bem como de beneficiários da previdência social (além dos rurais).

Há que se considerar, também, que na Tabela 1 os juros pagos pela União são os juros líquidos, ou seja, os brutos menos o que a União recebeu de Estados e Municípios, a esse título. Ora, antes de meados dos anos 90, a dívida desses entes federativos para com a União era inexpressiva, razão pela qual os juros brutos pagos por esta de pouco superavam os líquidos.

Para cotejar os juros brutos, pode-se consultar o Quadro IV-24 do Boletim do Banco Central e o Diário Oficial da União, de 29.04.2005, Seção I, p. 87, assim resumidos:

Atente-se agora para a 6ª linha da Tabela 1, referente ao investimento realizado pela União. Este cai do índice 100 em 1986 para 46 na média 2003/2004. Em moeda de 2004, a União, que investia R$ 151,8 por ano por habitante em 1986, passou a investir R$ 54,1 em 2003/2004. Per capita, o valor do investimento do governo federal cai para 28% do que era em 1986.

Isso desnuda os efeitos socioeconômicos da política telecomandada pelos beneficiários do serviço da dívida, a saber, a deterioração das infra-estruturas econômica e social e a conseqüente transformação do País em neocolônia financeira dos centros mundiais de poder.

O mecanismo das altas taxas reais de juros, combinado com a capitalização destes, gera o crescimento automático das despesas com o serviço da dívida, além de causar a elevação de seu saldo. O desmedido crescimento das despesas e do estoque resultou no enfraquecimento da economia brasileira, submetendo o País a cada vez maior controle político por parte dos grandes grupos financeiros.

Formou-se então este círculo vicioso:

  1. Os juros são determinados por taxas absurdamente elevadas, por decisão das "autoridades monetárias", mantidas em rédea curta pelos concentradores financeiros.

  2. O governo federal coleta tributos equivalentes a 23% do PIB e desvia quase a metade desse dinheiro para pagar juros da dívida pública.

  3. Nem assim consegue liquidar toda a conta, sendo os juros restantes pagos com a emissão de novos títulos (os juros restantes são capitalizados, i.e., acrescidos ao saldo da dívida).

  4. Em conseqüência, cresce o saldo da dívida, e sobre ele passam a incidir as altas taxas de juros com que aquelas "autoridades" presenteiam os concentradores financeiros.

Isso explica porque, do mesmo modo que a despesa de juros, cresce o estoque da dívida mobiliária interna, conforme a Tabela 2 a seguir, cuja fonte é o Boletim do Banco Central, Quadro IV-24 – Contas Públicas, Usos e Fontes.

Tabela 2 - Títulos públicos federais

Títulos fora do Banco Central do Brasil, Carteira de Títulos do TN no BC, em bilhões de reais

Período

Titulos Federais fora do BACEN

Carteira de Títulos do TN no BACEN

TOTAL

1996 (dez)

176,2

21,7

197,9

1997 (dez)

255,5

35,5

291,0

1998 (dez)

323,8

124,7

448,5

2001 (dez)

624,1

194,4

818,5

2002 (dez)

623,2

202,8

826,0

2003 (dez)

731,9

211,0

942,9

2004 (dez)

810,3

243,3

1053,7

2005 (jul)

915,7

258,2

1173,9

Contados apenas os títulos ditos em poder do mercado, ou seja, não computando a carteira de títulos do Tesouro Nacional no Banco Central, a dívida mobiliária interna atingiu, em valores correntes, R$ 62,5 bilhões em dezembro de 1994, e subiu para 915,7 bilhões em julho de 2005. De um índice 100 em 1994, aumentou para 1.465 em 2005 (até julho). Corrigido pelo IPCA do período, a variação real do índice é de 100 para 603. Portanto, nesse período o valor real da dívida multiplicou-se por seis.

Em relação à dívida externa, os saldos apresentam os seguintes valores, segundo o Banco Central do Brasil:

Tabela 3 - Dívida Externa

Ano

Dívida Externa em bilhões de US$

1984

102,0

1989

115,5

1992

136,0

1994

148,3

1998

235,0

2003

235,4

2004

220,2

De 1989 a 1998 o Brasil pagou a título de juros e amortizações, no exterior, US$ 225 bilhões. Ou seja: nesse período, da "dívida" externa de US$ 115 bilhões pagamos US$ 225 bilhões e passamos a dever US$ 235 bilhões de dólares.

O aumento do estoque da dívida externa continuou até 2003, tendo a diminuição de 2004 sido causada pelos superávits na balança comercial, de 2002/2003 para cá, devidos à exportação de quantidades espantosas de bens intensivos de recursos naturais, inclusive não renováveis, favorecidas pela conjuntura mundial e pela compressão da demanda interna, sufocada pelo desemprego e pela queda real dos salários.

Ao fazer aprovar a Lei Complementar n° 101, de 04 de maio de 2000, dita de Responsabilidade Fiscal (LRF), os concentradores financeiros já controlavam o sistema político. Já não tinham necessidade de meios ocultos para obter instrumentos legais de seu interesse. No § 1° do art. 17, a LRF dispõe que os atos que criarem ou aumentarem despesas continuadas deverão ser objeto de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes. Requer também seja demonstrada a origem dos recursos para seu custeio. Mas, no § 6° isenta dessas exigências "as despesas destinadas ao serviço da dívida e ao reajustamento de remuneração de pessoal de que trata o inciso X do art. 37. da Constituição.", com a segunda isenção alardeada por esses interesses como a vilã do processo.

As cifras e os fatos expostos demonstram, ao contrário, os enormes danos ao patrimônio público decorrentes do privilegiamento orçamentário do serviço da dívida. Tais danos se prolongarão indefinidamente, enquanto a inserção ilegal em análise não for declarada nula e for expurgada da Constituição. Esse expurgo foi tentado, através do Projeto de Emenda Constitucional SF PEC 62/95, sem sucesso Anexo 7, por um dos signatários ludibriados pela adição ilegal desses dispositivos (Senador Ademir Andrade) Anexo 7.1.

É insustentável a posição do Senador Jefferson Peres Anexo 7.3, ao relatar contra a SF PEC 62/95: "são argumentos inválidos do ponto de vista jurídico e pouco convincentes sob o ângulo da relação entre sociedade e Estado", referindo-se às razões invocadas pelo Senador Ademir de Andrade, que dissera na justificação de sua PEC: "são ilegítimas as disposições constitucionais que privilegiam o pagamento de dívidas contraídas irresponsavelmente e juros absurdamente elevados".

São despiciendas as desculpas, como as do então presidente da mais alta Corte do País, Maurício Correia, de que está tudo sepultado pelo tempo Anexo 6.1, por ocasião da confissão pública do ex-presidente do STF, de participação em atos praticados ao arrepio do Regimento da Constituinte. Até o próprio Senador Peres, em artigo que depois publicou no jornal Folha de São Paulo 16, sinaliza a fragilidade da sua defesa pela manutenção de tão injuriosa aberração constitucional. Mas, principalmente, carecem de base as declarações do (co-)autor confesso, de que seus pares teriam referendado o ato Anexo 5.1 e de que "tudo foi transparente" Anexo 5.3.

Implicações jurídicas

Ademais das ilegalidades regimentais da Constituinte, como se pode qualificar a adição à Carta Magna de um dispositivo de mérito, prenhe de imensas conseqüências nefastas ao País, sem ter ele sido objeto de emenda alguma, nem discutido em etapa alguma do processo legislativo que produziu a Constituição? Em se confirmando o que aponta esta investigação, se trata de estelionato.

Primeiramente, houve afronta ao art. 37. da Constituição, que reza:

"Art. 37 . A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade , impessoalidade, moralidade, publicidade ."

O ato, além de ilegal, acarretou incomensuráveis danos morais e materiais ao País. Foi praticado sem qualquer publicidade. Ao contrário, furtivamente, à socapa. A lei 1.079, de 10.04.1950 define como crimes de responsabilidade vários delitos de menor gravidade que o cometido pelos infratores em tela. O Código Penal, art. 171, tipifica o crime de estelionato nos seguintes termos:

"Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento."

Para enquadrar o autor ou os autores nem se precisa provar terem obtido eles vantagem para si próprios. No caso, os aproveitadores são os mega-especuladores mundiais e locais, beneficiados por taxas de juros no serviço da dívida pública, as quais, são hoje, em termos reais, as mais altas do Mundo, três vezes mais elevadas do que as do país segundo nessa nefanda classificação.

Quem foi induzido em erro? Obviamente os constituintes, os quais, via de regra, assinaram o texto final da Constituição sem se ter dado conta de ter sido ilaqueados em sua boa-fé pela introdução de um dispositivo jamais sequer discutido durante os trabalhos da Constituinte, como um deles ilustra ao propor a emenda constitucional SF PEC 62/95, que visava a corrigir a irregularidade Anexo 7.

Com efeito, não seria, em princípio, de suspeitar que se incluísse no texto constitucional uma emenda aditiva, de mérito, ao final da maratona de votações de 2º Turno Anexo 8.1 e 8.5, etapa em que somente eram admissíveis emendas supressivas ou sanativas de natureza que não de mérito Anexo 1, Anexo 8.3 e 8.4, ainda mais em meio a manifestações de repulsa à mera insinuação de tal possibilidade, por parte das autoridades parlamentares responsáveis pela votação da Constituinte Anexo 8.4.

Causa, também, espécie que, na 2ª folha do Requerimento "de fusão" de emendas – a que materializou a adição ilegal e sorrateira dos dispositivos em análise – há só duas rubricas Anexo 5.2, enquanto que, na última folha estão, isoladas do texto, assinaturas dos líderes de partido e de alguns autores de propostas de Emenda supostamente "fundidas".

Não menos estranho é que o proponente de Emenda ao artigo em que se abrigou a adição ilegal Anexo 4.7, Deputado João Alves, não rubricou, não assinou Anexo 5.3, nem votou o Requerimento (5, p. 13.470), apresentado de chofre para votação num sábado (Quadro 4), ao final de uma semana em que se costurou um controverso acordo de lideranças "para acelerar a votação" Anexo 8.5. Não menos intrigante é o Relator não ter se manifestado quando solicitado, durante a votação do Requerimento em plenário (Quadro 3), e essa votação, cuja ata omite a data em que foi realizada, ter sido depois arquivada sem qualquer referência ao número da votação ou ao artigo contaminado Anexo 5.4.

O dolo é elemento inerente ao crime de estelionato, agravado pelo fato de a matéria jamais ter sido ventilada em qualquer etapa do processo legislativo da Constituinte. Com efeito, os interessados no conteúdo contrabandeado para dentro da Carta Magna nunca trataram da questão em público, à luz de todos, embora tivessem tido incontáveis oportunidades para isso, durante os quase dois anos da Constituinte.

O Procurador Marco Aurélio Dutra Aydos, em seu artigo "Quinze anos sem corte constitucional", publicado em 11.11.2003 Anexo 6.4, comenta:

"Além da saudável indignação com a confissão, pelo Ministro Jobim, de que possui um caráter inconstitucional e não adquiriu jamais a condição subjetiva exigida pela Constituição para integrar o Supremo Tribunal Federal, a opinião pública informal, juridicamente esclarecida, manifestou certa satisfação, como aquele da vítima que durante anos procura o autor do crime e finalmente o encontra. E, ainda melhor, por confissão espontânea.

Que a Constituição havia sido defraudada desde a origem, sabíamos todos os que lemos os comentários de José Afonso da Silva, a respeito do modo ardiloso com que se insinuou no texto constitucional a matéria nada inofensiva da "medida provisória".

Do Brasil que "não é uma fraude" já surgem provocações para a retomada da dignidade do cargo da mão dos que abusam da Constituição. Devia haver um tipo penal que dissesse que um Ministro do Supremo Tribunal Federal não pode atentar reiteradamente contra a dignidade da Constituição, e nesse caso o "escândalo" Jobim seria apenas o último caso ilustrativo de uma conduta permanente. Na falta do tipo mais específico, com certeza é quebra de decoro a permanência do Ministro Jobim no Supremo Tribunal Federal. Antes mesmo de que seja formalmente denunciado, seria melhor que renunciasse, o que é mais digno .

A questão não é punir o deputado constituinte Nelson Jobim por fraudes que praticou há 15 anos, mas afastá-lo do Supremo hoje porque enganou a soberania nacional quando se apresentou como candidato a Ministro do Supremo Tribunal Federal como se fosse um cidadão de reconhecida idoneidade. A conduta fraudulenta que foi confessada demonstra que o Ministro não é pessoa idônea, e essa qualidade é permanentemente ofensiva, e por isso não é esquecida pela prescrição. A confissão sobre a fraude de 15 anos é confissão de que o Ministro é portador de um traço de caráter inconstitucional que não tem meios de convalescer."

Ao evocar a permanência ofensiva desse traço de caráter do Ministro, o ilustre Procurador da República foi econômico. Omitiu vários outros atos em que esse mesmo traço também se manifestou, antes e depois da alegada fraude à Constituição.

Sobre os autores
Adriano Benayon

doutor em economia, diplomata, advogado, consultor legislativo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, professor de economia política na Universidade de Brasília (UnB) - Falecido em 11 de maio de 2016

Pedro Antônio Dourado de Rezende

professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley (EUA), ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BENAYON, Adriano; REZENDE, Pedro Antônio Dourado. Anatomia de uma fraude à Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1153, 28 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8857. Acesso em: 22 dez. 2024.

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