A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, revogou as Leis nº 6.368/76 e nº 10.409/02, passando a disciplinar os crimes de tráfico e uso de drogas e estabelecendo o procedimento criminal a ser seguido para apuração de tais delitos.
Embora tenha havido um avanço ao se acabar com a discussão decorrente dos vetos existentes na Lei nº 10.409/02, sobre se aplicar o procedimento previsto na referida lei ou aquele previsto na Lei nº 6.368/76, o certo é que a nova lei traz algumas aparentes contradições que caberá à jurisprudência resolver, ao menos até que ocorra a revogação de alguns desses dispositivos que causam as aparentes incoerências que serão comentadas a seguir.
O art. 44, caput, da nova Lei de Tóxicos dispõe que "os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 e 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos" (destaque nosso).
Nesse ponto, quanto ao delito de tráfico de drogas, a lei nada mais fez do que reiterar a norma contida no art. 2º da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), que já proibia a concessão de liberdade provisória aos acusados pelos crimes hediondos e assemelhados.
Contudo, uma leitura apressada da nova lei poderá levar o intérprete a concluir pela existência de uma contradição entre o art. 44, caput, e o art. 59, ambos da Lei nº 11.343/06, nos casos de traficantes primários e de bons antecedentes.
O art. 59 supracitado preceitua que "nos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei, o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória" (destaque nosso).
Ora, para um acusado de tráfico de drogas que seja primário e de bons antecedentes, caso seja preso em flagrante delito, responderá o processo preso, sem direito a liberdade provisória, em virtude da vedação contida no art. 44, caput, mas, se condenado, reconhecida a primariedade e bons antecedentes, poderia apelar em liberdade.
Poder-se-ia pensar, numa visão mais liberal dos dispositivos, que o réu primário e de bons antecedentes deverá ser colocado em liberdade em caso de condenação por tráfico de drogas, mesmo que tenha respondido preso a todo o processo, o que seria uma contradição à vedação de concessão de liberdade provisória contida no art. 44, caput.
Entretanto, essa não nos parece a melhor interpretação, pois numa visão sistemática, verifica-se que, como o legislador pretendeu vedar a liberdade provisória aos acusados de tráfico de drogas (art. 44, caput), a norma contida no art. 59 deve ser interpretada no sentido de que o réu primário e de bons antecedentes, se respondeu solto ao processo, poderá apelar sem a necessidade de recolher-se à prisão. Porém, se respondeu preso à ação penal, assim deverá permanecer, pois vedada a concessão de liberdade provisória a ele. Isso porque a concessão do direito de apelar em liberdade para um réu que respondeu preso ao processo nada mais seria do que lhe conceder liberdade provisória, o que o legislador deixou claro que não pretende para os acusados de tráfico de drogas.
É preciso dizer que a jurisprudência majoritária, interpretando a regra contida no art. 594 do Código de Processo Penal, consolidou-se, ainda na vigência da Lei nº 6.368/76, no sentido de que o traficante, que respondeu preso ao processo, ainda que primário e de bons antecedentes, assim deveria permanecer para recorrer e que, para o traficante que respondeu solto ao processo, também se garantia o direito de apelar em liberdade, salvo se presentes os requisitos de sua prisão preventiva.
Somente essa interpretação manterá a coerência dessas normas da novel Lei nº 11.343/2006 e preservará os interesses da sociedade, deixando de colocar um réu, reconhecido traficante de drogas na sentença, nas ruas, o que permitiria que ele continuasse a traficar entorpecentes até o julgamento final de todos os recursos que tem à disposição na legislação processual, o que pode durar anos, principalmente se tratando de recursos de réus soltos, que têm a tramitação menos ágil do que os recursos com réus presos.