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A doutrina da transmigração das almas no universo jurídico

            A noção de alma é encontrada em quase todos os povos e culturas, constituindo-se em um objeto de constante elaboração filosófica, desde os pitagóricos até a teologia contemporânea ou a psicanálise de Jung [01].

            Definida como elemento vital e espiritual do ser humano, a alma sempre foi um dos problemas mais constantes na maioria das religiões e filosofias em todos os tempos. Várias manifestações religiosas encontraram nela o seu interesse principal, como o animismo e o espiritismo, e igualmente algumas correntes filosóficas, precipuamente as originárias do platonismo, que defendia a imortalidade da alma e a metempsicose, também denominada doutrina da transmigração das almas ou do eterno retorno das almas, fenômeno conhecido como palingenesia.

            O dualismo inerente à abordagem platônica é uma herança do orfismo e do pitagorismo: a alma pertence à esfera divina, ao mundo das idéias e das formas, confundindo-se com estas e sendo, dessa forma, eterna, imortal, indestrutível. Platão [02] ensina que "O corpo é a prisão da alma", correspondendo ela, assim, a uma entidade oposta à existência corpórea, a que só pode chegar por intermédio da "queda".

            Para os profetas e pensadores hebreus, "a personalidade do homem era um corpo animado, não uma alma encarnada", contudo o platonismo logrou exercer maior influência sobre os filósofos cristãos do que a tradição hebraica: a patrística foi quase totalmente dominada pela síntese platônica, que, com o passar do tempo, tornou-se parte da doutrina, da prática, da liturgia e da hinologia cristã.

            Por sua vez, para o Espiritismo, a alma é o Espírito encarnado. Portanto, para progredir no mundo material, une-se ao princípio vito-material do gérmen e sofre todas as limitações que a matéria impõe ao Espírito imortal. Já a reencarnação num corpo material é uma conseqüência da impureza da alma, ou seja, quando a alma não atinge sua evolução espiritual completa, entrando no mundo espiritual cognominado de erraticidade, e espera por uma nova oportunidade de voltar a este mundo.

            No que tange ao universo jurídico, a doutrina da transmigração das almas foi objeto de estudo de alguns dos mais renomados juristas da humanidade, destacando-se entre eles Hans Kelsen, o qual trata do tema de forma extensiva no seu livro intitulado "A Ilusão da Justiça".

            Como é sabido, Kelsen reconhece Platão como a mais importante personalidade intelectual que buscou compreender o que seja a "justiça". De fato, para Kelsen só Platão lutou tanto quanto Jesus Cristo pela Justiça [03].

            Dedicando-se ao estudo dos posicionamentos de Platão com relação à mulher, Kelsen chega no mito da criação contido no Timeu – diálogo no qual Platão se ocupa da realidade empírica do devir como uma mescla entre o Ser da idéia e a matéria [04]. È exatamente no Timeu que Platão através da doutrina da transmigração da alma manifesta sua valoração filosófico-sexual da mulher. Conforme essa doutrina, cada estrela recebeu uma alma quando da criação do mundo. O nascimento terreno (encarnação) ocorre com a vinda das almas para o mundo como homens. A primeira humanidade é sempre toda masculina. Caso os seres humanos masculinos levarem uma vida justa, suas almas retornam às estrelas de origem. Caso os seres humanos masculinos levarem uma vida injusta, eles devem assumir a natureza de mulher quando do seu segundo nascimento (primeira reencarnação); e se continuarem levando uma vida injusta, suas almas devem reencarnar sucessiva e alternadamente no animal correspondente ao tipo de maldade praticada até alcançar a purificação total e voltar à origem de homem.

            Logo, o renascimento como mulher seria uma punição para o delito e a imoralidade, e o renascimento como animal uma punição para a parvoíce e a ignorância. Como se vê, no paraíso platônico só há homens, pois em seu estado original de inocência (quando mais perto da divindade) o ser humano é homem.

            Diante do exposto, Hans Kelsen assevera que a Lei Jurídica da Paga é a lei universal do mundo, vigindo também no mundo terreno ("no Aqui") onde ela se concretiza na transmigração da alma, a qual se constitui em um elemento fundamental da doutrina órfico- pitagórica.

            Nesse sentido, em seu livro "A Ilusão da Justiça", Kelsen aduz:

            "(...) O princípio da paga, segundo o qual o mal da punição vincula-se ao mal da culpa – e visto dessa maneira, a algo que lhe é assemelhado -, encontra-se na base de sua doutrina de que tudo quanto é assemelhado atrai-se mutuamente, e, sobretudo, na base também de sua tese epistemológica de que o igual somente é conhecido pelo igual" [05].

            "(...) A transmigração da alma, que vem do Além para o Aqui e deste retorna para aquele, pressupõe a salvação de um Aqui no Além. Ela se assenta numa doutrina dos dois mundos" [06].

            " (...) Assim, no livro X da República, por exemplo, seguindo-se à enfática e detalhada exposição da doutrina da tripartição da alma composta de bons e maus elementos como base de toda a teoria do Estado – exposição que é objeto do livro anterior- é retomada a tese da alma por natureza incompósita, e, por isso mesmo, imortal e exclusivamente boa" (grifo nosso) [07].

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            Por fim, vale ressaltar que a mencionada doutrina se encontra positivada em um diploma legal, mais especificamente no Livro Décimo Segundo do Código de Manu [08].

            O Código de Manu possui doze livros, sendo que os Livros Oitavo e Nono são os de maior interesse no campo jurídico. De um modo geral, o conteúdo desses doze livros dizem respeito aos deveres do rei, ao ordenamento religioso da sociedade e ao direito processual. O Livro Décimo Segundo é uma exceção ao conteúdo geral dos doze livros, pois aborda a recompensa das ações humanas. Assim, quem pratica o bem terá o bem eterno nas várias transmigrações de sua alma e quem pratica o mal receberá a adequada punição nas encarnações vindouras; até que a alma chegue à perfeita purificação e seja reabsorvida por Brahma.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            ALMA. Disponível em: http://choli.sites.uol.com.br/alma.htm. [capturado em 10 ago.2006].

            GREGÓRIO, Sérgio Biagi. Sócrates e Platão:precursores do espiritismo. Disponível em: http://ceismael.com.br/artigo/artigo039.htm. [capturado em 10 ago.2006].

            KELSEN, Hans. A Ilusão da Justiça.3.ed.São Paulo:Martins Fontes, 2000.


Notas

            01 A alma, identificada com animais em diversas mitologias, foi inteiramente rejeitada por materialistas modernos. Ludwig Feuerbach achava a alma "Teoricamente uma tolice"; já para outros autores a alma reduz-se a funções cerebrais cada vez mais conhecidas. Todavia, Jung conservou o uso da palavra como sinônimo de psique, para a parte mais imaterial da personalidade humana.

            02

Platão, discípulo de Sócrates, dá continuidade ao método socrático, aperfeiçoando-o. Por isso, faz-se mister enunciar as principais diferenças e similitudes entre as doutrinas socrática e platônica em relação à alma, reencarnação e justiça: A) ALMA: Para Sócrates, a alma participa da natureza divina e é dada por Deus ao homem; a vida não depende do corpo, depende da alma; por intermédio da união da alma ao corpo, a alma se macula, e apenas reconquista sua pureza pela libertação do corpo. Para Platão o homem é a união da alma e do corpo. A alma é a essência do corpo, e possui a natureza das idéias. Alma é o princípio do movimento e da vida, destarte imortal. Classifica-a em: Alma racional – alma-cabeça; Alma passional – alma-peito; Alma apetitiva – alma-ventre. B) REENCARNAÇÂO: Para Platão, caso a alma, quando penetre o corpo, não busque manter a pureza, ao morrer o corpo, não retornará ao mundo das idéias, porém sujeitar-se-á à transmigração para outro corpo de homem ou animal (metempsicose), de acordo com as preferências que houvera manifestado. C) JUSTIÇA: Sócrates e Platão tratam constantemente da questão da purificação da alma. Platão afirma que para cada parte da alma existe uma virtude: Alma racional – sabedoria; Alma passional – coragem, fortaleza; Alma apetitiva – temperança. A justiça engloba todos esses tipos de alma – requisitos essenciais para a harmonia do Ser, logo, para a felicidade. Aquele que pratica uma injustiça deve ser punido e a pena, a expiação, é a purificação (catharsis), isto é, a libertação do mal anterior.

            03

Segundo Hans Keksen, só os diálogos de Platão estão tão impregnados do pensamento de justiça quanto a pregação de Cristo.

            04

Na filosofia platônica, o Ser da idéia representa "o Bem" e a matéria "o Mal".

            05

P.24.

            06

P.26.

            07

P.60.

            08

Manu, progênie de Brahma, é tido como um dos mais antigos legisladores do mundo; e seu Código foi promulgado aproximadamente entre 1300 e 800 A.C..
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAIXETA, Francisco Carlos Távora Albuquerque. A doutrina da transmigração das almas no universo jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1173, 17 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8933. Acesso em: 25 nov. 2024.

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