Resumo: A Constituição da República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que é concretizado por vários direitos fundamentais. A Carta Política consignou, também que a efetividade dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes teria absoluta prioridade sobre o direito de outras pessoas humanas, o que pode acarretar conflitos entre os dois princípios. O desafio de interpretá-los no contexto brasileiro atual, onde perdura extrema desigualdade sócio-econômica, pode ser vencido pela aplicação da Teoria da solução de Conflitos sob o enfoque das Teorias dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy.
Palavras-chave: Constituição Federal - ECA - Prioridade Absoluta - Direitos Fundamentais – Conflito de Princípios – Robert Alexy.
1- Introdução.
O art. 1º da Constituição da República de 1988 (CR) apresenta como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Para se garantir a efetividade deste fundamento, o texto Constitucional elenca vários direitos fundamentais [1], dentre eles, os direitos sociais, expressos no art. 6º, quais sejam: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, além de assistência aos desamparados.
No âmbito dos direitos fundamentais de proteção à criança e ao adolescente, a legislação brasileira constitucional regulou a matéria no art. 227, caput, da CR, determinando que a família, a sociedade e o Estado devem assegurar para as pessoas em formação, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além do dever de garantir que fiquem a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Dispositivo semelhante é o art. 4º da Lei 8.069, de 13 de agosto de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
2- A Prioridade Absoluta para crianças e adolescentes.
A preocupação com crianças e adolescentes é pertinente, pois representam, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2005, p. 32), 33% da população brasileira, ou seja, 60 milhões de pessoas são crianças e adolescentes.
Além disso, estudos comprovam que o crescimento e desenvolvimento de crianças dependem de fatores intrínsecos, que são relacionados à herança genética, e extrínsecos, relacionados ao meio ambiente (BRASIL, 2003: 14).
Conforme bem observam Nery Júnior e Machado (2002, p.17), por não terem, as crianças e adolescentes, o desenvolvimento pleno de suas potencialidade, característica inerente à condição de seres humanos ainda em processo de formação sob todos os aspectos, "físico (nas suas facetas constitutivas, motora, endócrina, da própria saúde, como situação dinâmica), psíquico, intelectual (cognitivo) moral, social", dentre outros, devem ser protegidos até atingirem seu desenvolvimento pleno. Assim, o legislador constitucional entendeu por bem em proteger-lhes mais do que aos maiores de dezoito anos, garantindo absoluta prioridade de seus direitos fundamentais, para que possam se desenvolver e atingir a plenitude do potencial que pode ser alcançado pelos seres humanos, garantindo-se inclusive, o Princípio da Igualdade, ao ofertar-lhes direitos e prioridades para efetivação de direitos fundamentais de forma a equilibrar suas peculiaridades com o desenvolvimento dos maiores de dezoito anos.
Parte considerável da doutrina entende o princípio da absoluta prioridade como sendo uma barreira para que as políticas públicas sejam criadas e implementadas primeiro para crianças e adolescentes, de forma a minimizar qualquer outro tipo de recurso público para outros titulares de direitos fundamentais. Por absoluta prioridade, entende Liberati (1991, p. 21) que crianças e adolescentes "deverão estar em primeiro lugar na escala da preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes [...]".
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) apresenta uma limitação do alcance da garantia de absoluta prioridade. Em seu art. 4º, parágrafo único, diz que tal garantia compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; a precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
3- Os direitos fundamentais dos maiores de 18 anos e aplicação do Princípio da Prioridade Absoluta: Colisão de Direitos Fundamentais.
Na linha de raciocínio exposta alhures, a atuação da Administração Pública fica limitada à efetividade dos direitos das crianças e dos adolescentes. Ou seja, os outros titulares de direitos fundamentais, maiores de 18 anos, só poderão ter seus direitos efetivados após a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes. O ECA fala em ‘primazia’, ‘preferência’ e ‘precedência’, mas não em exclusividade.
Dessa forma, abre-se espaço para uma discussão, pois existe a possibilidade do conflito entre a expectativa de implementação de políticas públicas que concretizem os direitos fundamentais dos seres humanos em processo de desenvolvimento, representada pelo Princípio da Absoluta Prioridade, e a expectativa de concretização dos direitos fundamentais dos maiores de 18 anos, que garantem uma existência humana digna.
A questão levantada se mostra mais preocupante quando observamos a realidade fática de um País como o Brasil, em que as desigualdades sociais são tão extremas, que dificultam a decisão de como, quanto e onde aplicar recursos públicos, uma vez que não se pode negar uma existência digna a ninguém, seja criança, adolescente, adulto ou idoso.
Robert Alexy (1999, p.68) analisando nossa Constituição da República de 1988, chamou de Colisão de Direitos Fundamentais, é a situação que ocorre quando o exercício ou realização de um direito fundamental acarreta conseqüências negativas sobre outros titulares de direitos fundamentais.
4- Expondo o pensamento de Robert Alexy.
Para o exame do problema levantado, toma-se como base a teoria dos Princípios de Robert Alexy, que considera a norma jurídica como um gênero, que possui entre as suas espécies os Princípios e as Regras. O que os diferencia é uma graduação de qualidade: "[...] las normas puedem dividirse em reglas y principios y que entre reglas y principios existe sólo uma diferencia gradual sino cualitativa [...]" (ALEXY, 1997:86).
O conceito de norma adotado pelo jurista alemão é de origem semântica e pragmática, pois uma proposição normativa somente seria possível no contexto de sua expressão na sociedade (GALUPPO, 1998: 135). Uma norma, para Alexy, é o significado de um enunciado que diz algo que deve-ser de uma sociedade (ALEXY, 1997: 83).
Por normas princípios, Alexy entende serem mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, dependendo das possibilidades reais e jurídicas. Ao seu turno, regras são normas que podem ser cumpridas ou não, contendo determinações no âmbito do fático e do juridicamente possível. Se uma regra é válida, deve-se fazer exatamente o que ela exige. (ALEXY, 1997: 86).
A solução de conflitos ou tensões entre direitos fundamentais na teoria dos princípios, é respondida pela hierarquização dos princípios conflitantes. Para realiza tal hierarquização, procede-se a uma ponderação racional ou argumentativa, feita num enfoque pragmático-argumentativo (ALEXY, 2001: 269), indicando qual dos interesses em conflito ou tensão, possui maior ou menor peso no caso concreto.
Ponderação racional é aquela feita com base em enunciados de precedência, que necessariamente devem ser fundamentados racionalmente. São exemplos de enunciados de precedência: a intenção original do legislador, as conseqüências sociais benéficas ou maléficas da decisão, as opiniões dogmáticas e a jurisprudência (ALEXY, 1997: 159).
Mas esta precedência não é absoluta, mas sim uma precedência condicionada, onde leva-se em conta o caso concreto, e indica-se as condições sob as quais um princípio precede ao outro. Sobre outras condições, a questão da precedência pode ser resolvida de forma inversa. (ALEXY, 1997, p. 90)
5- Solucionando o Conflito de Direitos Fundamentais.
Da situação aqui explanada, observamos que a dignidade humana e a absoluta prioridade são princípios, ou seja, normas que podem ser aplicadas em diferentes graus, dependendo das possibilidades reais e jurídicas.
Quanto à possibilidade jurídica, esta existe, vez que ambas as normas estão perfeitamente em vigor [2]. Já as possibilidades reais devem ser observadas com cautela, sob pena de tornarem ineficazes os direitos e garantias fundamentais do texto constitucional para toda e qualquer pessoa humana acima dos 18 anos.
Cabe aqui a seguinte pergunta: os maiores de dezoito anos somente teriam direitos fundamentais, garantidores da Dignidade Humana, apenas depois de satisfeito o direito das pessoas em formação?
A resposta deve ser negativa, usando-se como enunciado de precedência a legislação brasileira. O Administrador Público está obrigado a administrar para toda a população. Ora, dentro dos Princípios da Administração Pública, determinados pelo art. 37 caput da CR, entre eles os da Moralidade e Eficiência, deverão os entes federativos agir escolhendo o que melhor atenderá a população local. E, como se mostra evidente, a população brasileira é composta de crianças, adolescentes, adultos e idosos.
Pela Teoria de solução de conflitos de Princípios Fundamentais de Robert Alexy, a ponderação deverá ser feita mediante a situação concreta, ou seja, quando da criação e implementação de Políticas Públicas de assistência, ou da efetividade dos direitos das crianças e adolescentes. Assim, a prioridade dos direitos das crianças e dos adolescentes é ponderada, podendo ter seu grau de aplicação diminuído em relação a algum direito fundamental de uma pessoa maior de 18 anos.
Um exemplo. Em uma determinada cidade brasileira sem atendimento médico, existe verba suficiente apenas para a contratação de um profissional e a instalação de um posto de saúde. O Administrador Público desta mesma cidade agirá corretamente implantando um posto de saúde de atendimento geral com a contratação de um clínico geral. Não deve instalar um posto de saúde especializado em atendimento Infanto-Juvenil. O posto deve atender toda a população, inclusive a crianças e adolescentes. Ponderou-se que o Princípio Fundamental da Saúde para todos teve preferência em relação ao Princípio da Absoluta Prioridade de crianças e adolescentes.
Em outra situação na mesma cidade, que não possui verba suficiente, pode-se ponderar que é mais necessária a instalação de uma Escola Pública de Ensino Fundamental do que uma Instituição de Ensino Superior Federal, pela absoluta prioridade à educação fundamental infanto-juvenil, que pode, inclusive, atender a adultos sem ensino fundamental, desde que todas as crianças do município estejam matriculadas e existam vagas para os adultos.
6- Conclusão.
À vista do exposto, observamos que o legislador constitucional considerou como direitos fundamentais tudo aquilo que é necessário para se promover uma vida digna à pessoa humana. Dentre estes direitos fundamentais, considerou também que os direitos de aplicação às crianças e aos adolescentes detêm prioridade absoluta face aos direitos das demais pessoas humanas.
Se estes Princípios entrarem em conflito, deve ocorrer uma hierarquização com base em uma ponderação racional face o caso concreto, estabelecendo-se em qual grau cada um dos Princípios deverá ser utilizado.
Não adianta efetivar os direitos de crianças e adolescentes, mitigando direitos dos demais titulares, como os direitos a segurança, habitação, saúde e a própria vida. Não estaríamos resolvendo problemas sociais. Apenas mudaríamos a faixa etária de sua ocorrência. De recém-nascido até a idade adulta todo ser humano teria seus direitos fundamentais efetivados. A partir de sua entrada na vida adulta, o Estado os deixaria à mercê de sua própria sorte.
Na atual realidade brasileira, os direitos fundamentais não podem ainda ser totalmente efetivados para todos na forma como a lei contempla, uma vez que ainda perdura no País a pobreza, a marginalização, a delinqüência e as graves desigualdades sócio-econômicas.
Ao se ponderar racionalmente os princípios fundamentais garantimos a retirada mais célere do ser humano de qualquer faixa etária da indesejável situação de indignidade.
7- Referências bibliográficas
ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 217, p.67-79. 1999.
______________.Teoria de los Derechos Fundamentales [Theorie der grundrechte]. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 607p.
______________.Teoria da Argumentação Jurídica [Theorie der juristischen argumentation]. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. 355p.
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais – O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2001. 327 p.
______________. Ministério da Saúde. Saúde da Criança. Acompanhamento do crescimento de Atenção Básica. (Cadernos de Atenção Básica) n. 11, Brasília – DF, 2002.
IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2005. Rio de Janeiro 2006. 330 p. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2005/indic_sociais2005.pdf> Acesso em 29 mar. 2006.
GALUPPO. Marcelo Campos. Princípios Jurídicos e a Solução de seus Conflitos: a contribuição da obra de Alexy. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v.1, n.2, p. 134-142, 2º sem. 1998.
LIBERATI, Wilson Donizeti. O Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: IBPS. 1991. 194 p.
NERY JÚNIOR, Nelson; MACHADO, Martha de Toledo. O estatuto da criança e do adolescente e o novo código civil à luz da constituição federal: princípio da especialidade e direito intertemporal. Revista de Direito Privado, São Paulo, v.3, n.12, p. 9-49, out./dez. 2002.
Notas
-
A Teoria dos Direitos Fundamentais, bem como a Teoria de Argumentação Jurídica, elaboradas por Robert Alexy estão longe de serem unanimidades na doutrina. Juristas como Giorgio Del Vecchio, Norberto Bobbio, Ronald Dworkin, Klaus Günther e filósofos como Jüngen Habermas apresentaram visões críticas das Teorias desenvolvidas por Alexy, apresentando suas próprias teorias aplicáveis ao caso aqui analisado. Para levar o leitor a um melhor embasamento crítico das teorias existentes, recomenda-se, além das obras originais: BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais – O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2001. 327 p.
Neste trabalho não se visa maiores esclarecimentos da polêmica doutrinária e jurisprudencial acerca de serem os princípios constitucionais normas com eficácia positiva ou normas programáticas, ou seja, se são aplicáveis ou se não possuem valor de imposição ou coerção pelo Estado. Sobre o tema: BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 7 ed., Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2003. 369 p. e SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 158 p.