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A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais.

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Agenda 06/10/2006 às 00:00

2. A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE WEIMAR (1919)

2.1. Antecedentes históricos

Assim como a Constituição Mexicana que cronologicamente lhe antecedeu, também a Constituição de Weimar nasceu num período de profundas perturbações sociais.

Para analisar o contexto histórico em que se deu o advento da Constituição de Weimar, deve-se remeter à vitória alemã, liderada por Bismarck, na Guerra Franco-Prussiana (1870) e no estímulo que esta vitória representou para o início da luta de unificação federalizada dos principados e das cidades livres de língua alemã na Confederação Germânica.

Concretizada, sob o reinado do Kaiser Guilherme II, a criação do Primeiro Reich, a Alemanha experimentou um notável crescimento urbano-industrial, o que gerou um aumento em sua classe operária militante e, consequentemente, nas reivindicações por ela manifestadas.

Essa realidade de prosperidade interna representou, também, um dos fatores que impulsionaram a Alemanha a tomar parte na acirrada disputa Européia por fatias de mercado consumidor e, consequentemente, a participar da Primeira Grande Guerra, da qual saiu como grande derrotada.

A entrada da Alemanha na Primeira Guerra, no entanto, trouxe profundas conseqüências internas, causadas pelo elevado número de mortos e feridos 49 e, também, pela profunda crise econômica que se abateu sobre um país totalmente voltado a atividades bélicas 50.

Marco Aurélio Peri Guedes, em sua dissertação de mestrado, afirma que "A guerra começou em 4 de agosto de 1914, sem que a Alemanha estivesse economicamente preparada. Na verdade – prossegue ele – os militares e os políticos esperavam que a guerra fosse vencida em poucas semanas. Não houve qualquer preocupação governamental em estocar alimentos para uma guerra em longo prazo, até porque tudo estava concentrado no esforço de guerra" 51.

Nos últimos anos de guerra, a situação interna na Alemanha é de profundo caos, o que também foi agravado pelo intenso bloqueio naval inglês, que trouxe escassez de alimentos à população e conseqüente inflação de preços 52. Nesse contexto, levantes começam a eclodir em toda a Alemanha, levantes estes que, agora, além de decorrerem da miséria e da crise social internas, eram também inspirados pelo recente e próximo exemplo da União Soviética 53.

Iniciou-se uma verdadeira revolução bolchevista no seio do Reich. Os partidos de extrema esquerda – espartaquistas e socialistas independentes – exigiam a dissolução das instituições parlamentares alemãs 54. Em novembro de 1918 eclodiu na Alemanha uma rebelião naval que culminou por transformar-se numa guerra civil 55. Tal revolta, iniciada em 1918, no porto de Kiel, foi assim descrita por Lionel Richard 56:

"Os marinheiros se haviam recusado a seguir os oficiais que queriam continuar a guerra no mar. As más condições de vida fizeram o resto: a bandeira vermelha foi hasteada nos navios e 20.000 marujos armados ocuparam o porto. Desarmaram oficiais, libertaram os prisioneiros nos quartéis, elegeram um conselho de soldados. Com esse exemplo, interromperam o trabalho nas fábricas. Os grevistas formaram um conselho de operários. Após Kiel, o processo se repetiu em Stuttgart e Hamburgo. As estações foram ocupadas, as tropas levantaram contra os oficiais, os comandantes militares foram substituídos, os meios de transporte requisitados por soldados em revolta. Símbolos de séculos de opressão, as insígnias foram por toda parte destruídas; bandeiras vermelhas foram hasteadas; organizaram-se conselhos de operários e de soldados..."

A reforma constitucional do texto alemão, de 03/11/1918, que determinou a parlamentarização da Alemanha e que passou o poder ao Príncipe Max von Baden 57 (que também estava incumbido de celebrar o armistício com os Estados Unidos) foram, portanto, tardias e não contiveram o fluxo das agitações sociais 58. Na linha do relato histórico feito por Comparato 59, tem-se que logo após tal reforma constitucional, já em 08/11/1918, uma República "Democrática e Socialista" era proclamada na Baviera.

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Sentindo que a esquerda mais radical – especialmente o grupo Spartak, liderado por Karl Liebknecht – ganhava o apoio das lideranças populares, os sociais democratas (integrantes do partido socialista majoritário) abandonam definitivamente o governo e convocam uma greve geral.

O Príncipe Marx, então, anuncia a abdicação do Imperador, designa Friederich Ebert (líder dos social-democratas) para exercer as funções de chanceler, propondo, ainda, a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Precipitando-se, no entanto, Philip Scheidemann, ministro integrante da social-democracia, anuncia, no mesmo dia, no balcão da chancelaria em Berlim, a proclamação da República 60.

Formou-se, então, um governo provisório (Conselho dos Delegados do Povo), chefiado por Ebert e que compreendia três integrantes da social-democracia (SPD) e outros três integrantes do Partido Social Democrático Independente (USPD) 61. Esse governo provisório, no entanto, tinha objetivos divergentes 62 pretendendo, o SPD, a convocação de Assembléia Constituinte e o estabelecimento de uma democracia parlamentar, enquanto que o USPD buscava o imediato estabelecimento de uma ditadura do proletariado, com a completa socialização da economia nos moldes soviéticos.

Essa divergência foi solucionada mediante a convocação de um congresso de representantes das diferentes províncias integrantes do Reich, que, reunido em Berlim, em 20/01/1919, deliberou, por ampla maioria, no sentido da convocação de uma assembléia constituinte.

O local escolhido para sediar a Assembléia Constituinte foi Weimar eis que, além de trazer a inspiração de Goethe, que ali vivera, ficava afastava das lutas travadas em Berlim em função do levante spartakista 63. É que dias antes (entre 6 e 15 de janeiro), as forças militares alemãs travaram violentos conflitos em Berlim contra os militantes Spartak, do que resultou o assassinato de seus líderes Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

Convocadas as eleições para a Assembléia Constituinte, antecipava-se aquilo que seria uma das causa da ruptura de Weimar: a absoluta fragmentação política e ausência de maioria positiva no Parlamento 64. Sob tal aspecto, irretocáveis as palavras de Bourthoumieux 65:

Cette dissociation du pouvoir réel et du pouvouir legal caractérise dés le début la période nouvelle et marque ce qui en será la loi constante: necessite de réaliser et de maintenir um compromis entre des forces naturellement divergentes. Ce compromis, uniquement imposé par la crainte commune de la Révolution n’est qu’une tréve momentanée pour les adversaires de la République. Il ne suppose aucun accord sur les questions politiques et sociales. Cet accord n’exist même pas dans la coalition républicaine des socialistes, des democrats et du centre. Dés les premières séances de l’Assemblée nationale, il fut visible que seuls les discourses qui exaltaient l’heroisme des armées et repoussaient toute responsabilité du Reich dans la guerre étaient capable de faire l’unnanimité".

Os membros do SPD obtiveram a maioria da cadeiras 66, mas não sua maioria absoluta (163, num total de 414). As demais cadeiras restaram pulverizadas entre partidos de tendências diversas, restando, o USPD, com apenas 22 representantes. Os spartak 67 não participaram da Assembléia Constituinte 68.

O projeto da Constituição de Weimar foi redigido por Hugo Preuss, professor de origem judaica adepto do comunitarismo, até então alijado do centro acadêmico alemão 69, discípulo de Otto v. Gierke e influenciado por Weber, que era considerado um dos poucos juristas de tendências de esquerda 70.

Em 9 de julho de 1919, a Assembléia ratificaria o Tratado de Versalhes (verdadeiro Diktat) – que, pelas duras penalidades e indenizações econômicas que impôs à Alemanha, representaria um outro fator determinante do colapso de Weimar em 1933 (após o golpe final desferido pela Crise de 1929) – e, em 11 de agosto de 1919, restava promulgado o novo texto constitucional da república alemã (agora, uma República Federativa, formada por 17 Länder).

2.2. O texto da Constituição de Weimar de 1919

A Constituição Alemã de 1919 era composta por 165 artigos (excetuando-se as disposições transitórias), divididos em dois livros: Livro I, relativo à "Estrutura e Fins da República" e o Livro II, pertinente aos "Direitos e Deveres Fundamentais do Cidadão Alemão". O Livro I, por sua vez, ao dispor sobre a estrutura e as finalidades da República, dividia-se em 7 (sete) capítulos, quais sejam: Capítulo I (A República e os estados); Capítulo II (O Parlamento); Capítulo III (O Presidente da República e o Governo Federal); Capítulo IV (O Conselho da República); Capítulo V (A Legislação da República), Capítulo VI (A Administração de República) e Capítulo VII (A Administração da Justiça).

Já o Livro II do texto constitucional de Weimar, que estabelecia os direitos e os deveres fundamentais do cidadão alemão, possuía os seguintes capítulos: Capítulo I (A pessoa individual); Capítulo II (A vida social); Capítulo III (Religião e agrupamentos religioso); Capítulo IV (Educação e escola) e Capítulo V (A vida econômica).

O Livro I, enquanto veiculador da organização do Estado, da estruturação de seus órgãos e dos limites de atuação dos Länder em face do Reich e de cada um dos Poderes Políticos em relação aos demais, não traz maiores inovações eis que, em regra, os textos políticos destinam-se a estabelecer prescrições de tal natureza 71.

Foi sobre livro II, no entanto (que compreende os artigos 109 a 165), que incidiu maior parte da atenção dos estudiosos. Não faltaram críticas aos direitos e garantias nele constantes. Técnicas de hermenêutica foram aprimoradas para permitir que os direitos fundamentais conferidos por estes dispositivos ao povo alemão pudessem alcançar nível mais elevado de concretização. Chegou-se também a sustentar que a Constituição alemã possuía uma contradição absoluta entre seus dois livros, que estabeleciam uma organização liberal de Estado, de um lado, e conferiam direitos de natureza socialista, de outro (Schmitt).

O fato, no entanto, é que o rol sistematizado de direitos constante do Livro II da Constituição de Weimar, ao garantir tanto liberdades públicas como prerrogativas de índole social, notabilizou e celebrizou a Constituição Alemã de 1919, que, não obstante suas imperfeições – inerentes à toda obra humana –, inspirou textos constitucionais por todo o mundo, inclusive no Brasil (Constituição de 1934).

Não obstante seja o Livro II dividido em cinco capítulos temáticos (A pessoa individual; A vida social; Religião e agrupamentos religiosos; Educação e escola e A vida econômica), revela-se incompleto o estudo que, partindo apenas da análise dos respectivos títulos, pretenda classificar, a priori, quais as dimensões de direitos fundamentais foram contempladas em cada um desses capítulos.

É que o Capítulo II, por exemplo – que tem como tema central "A vida social" –, não apenas dispõe, ao contrário do que pode parecer, sobre direitos fundamentais de índole social, possuindo, também, prescrições de natureza eminentemente liberal, consagradoras das chamadas liberdades públicas, tal como aquela referente ao direito de petição (Capítulo II, art. 126).

Desse modo, apesar de a Constituição de Weimar possuir, como característica, a organização e sistematização de seus preceitos (ao contrário do que se verifica na Constituição Mexicana), ainda assim as diversas espécies de direitos fundamentais encontram-se dispersas no corpo do texto constitucional, devendo-se, portanto, para identificá-las, proceder a um exame de cada um dos 165 artigos da referida Carta Política.

Desse modo, dentre o extenso rol de direitos fundamentais de primeira geração constantes da Constituição de Weimar, destacam-se os seguintes: direito à igualdade (art. 109); igualdade cívica entre homens e mulheres (art. 109, § 1º); direito à nacionalidade (art. 110); liberdade de circulação no território e para fora dele (arts. 111 e 112); direito das minorias de língua estrangeira (art.113); inviolabilidade de domicílio (art. 115); irretroatividade da lei penal (art. 116); sigilo de correspondência e de dados telegráficos ou telefônicos (art. 117); liberdade de manifestação do pensamento (art. 118); vedação à censura, exceto para proteger a juventude e para combater a pornografia e a obscenidade 72 (art. 118, § 1º); proteção ao matrimônio e à família (art. 119) 73; igualdade jurídica entre os cônjuges (art. 119); igualdade entre filhos havidos na constância ou fora do matrimônio (art. 121); liberdade de reunião (art. 123); liberdade de associação (art. 124); direito ao voto secreto (art. 125); direito de petição ao Poder Público (art. 126); igualdade de acesso aos cargos públicos (art. 128); direito adquirido e reivindicáveis perante o Poder Judiciário, em tema aspirações patrimoniais de servidores públicos e soldados de carreira (art. 129, "caput" e § 3º); liberdade de consciência e crença religiosa (art. 135); separação Estado/Igreja (art. 137); liberdade de associação religiosa (art. 137, § 1º) e liberdade de sindicalização (art. 159).

Dentre os direitos de segunda dimensão – que conferem o caráter social à Constituição de Weimar – devem-se destacar as seguintes garantias: proteção e assistência à maternidade (arts. 119, § 2º e 161); direito à educação da prole (art. 120); proteção moral, espiritual e corporal à juventude (art. 122); direito à pensão para família em caso de falecimento e direito à aposentadoria, em tema de servidor público (art. 129); direito ao ensino de arte e ciência (art. 142); ensino obrigatório, público e gratuito (art. 145); gratuidade do material escolar (art. 145); direito a "bolsa estudos", ou seja, à "adequada subvenção aos pais dos alunos considerados aptos para seguir os estudos secundários e superiores, afim de que possam cobrir a despesa, especialmente de educação, até o término de seus estudos" (art. 146, § 2º); função social da propriedade 74; desapropriação de terras, mediante indenização, para satisfação do bem comum (art. 153, § 1º); direito a uma habitação sadia (art. 155); direito ao trabalho (arts. 157 e art.162); proteção ao direito autoral do inventor e do artista (art. 158); proteção à maternidade, à velhice, às debilidades e aos acasos da vida, mediante sistema de seguros, com a direta colaboração dos segurados (Art. 161 - previdência social); direito da classe operária a "um mínimo geral de direitos sociais" (art. 162); seguro desemprego (art. 163, § 1º) e direito à participação, mediante Conselhos – Conselhos Operários e Conselhos Econômicos –, no ajuste das condições de trabalho e do salário e no total desenvolvimento econômico das forças produtivas, inclusive mediante apresentação de projeto de lei (art. 165).

Registre-se, por oportuno, que, tal como ocorre com a Constituição Mexicana de 1917, também um aspecto da Constituição de Weimar costuma ser desconsiderado pela doutrina: a existência, no corpo de seu texto, de dispositivo destinado, unicamente, a contemplar direitos fundamentais de terceira dimensão.

Com efeito, o art. 150 da Constituição da República Alemã de 1919, ao dispor que "Os monumentos de arte, históricos e naturais, bem como a paisagem, gozam da proteção e incentivo estatais", positivou, em sede constitucional, típicos direitos de terceira dimensão, titularizados por toda a coletividade, e consistentes na garantia de preservação do meio ambiente ("monumentos naturais" e "paisagem") e de conservação dos patrimônios históricos e culturais ("monumentos históricos" e "monumentos de arte").

Sobre a autora
Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro

advogada. professora de pós-graduação do IDP/LFG. mestra em direito e estado pela Universidade de São Paulo. membro da ABLIRC - ass. bras. de liberdade religiosa e cidadania

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais.: A preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social, à luz da Constituição mexicana de 1917. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1192, 6 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9014. Acesso em: 14 nov. 2024.

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