Introdução breve
Primeiramente, devo registrar que a terminologia previdência social, aqui utilizada, quer significar o regime geral de previdência social, hoje administrado pelo INSS. Trata-se de regime universal, de filiação obrigatória para aqueles que se enquadram nas definições legais de segurados.
A previdência é parte do sistema maior de seguridade social, compreensivo de previdência, assistência e saúde públicas, conforme estabelecido no art. 194, da constituição federal. Para consecução das finalidades da seguridade social, a constituição prevê um orçamento anual próprio, no art. 165, da constituição, abrangente de órgãos e entidades das administrações direta e indireta, incluindo-se fundos destinados aos custeio do sistema.
Consagrou-se o princípio do financiamento universal, cláusula amplíssima que permite aportes orçamentários da União, bem como prevê suprimento de recursos mediante estabelecimento de tributos vinculados. O formato do financiamento da seguridade está traçado no art. 195, que praticamente esgota as linhas gerais das espécies tributárias contribuições sociais de financiamento da seguridade social.
O dispositivo alinha os sujeitos passivos, as possíveis bases de cálculo, fatos geradores, imunidades, limitações específicas ao poder de tributar para tal finalidade, exercício da competência residual da União na matéria. Não se pode dizer que a redação é boa, tanto é o grau de minúcia a que chega o constituinte, mas pode-se entender a que se visou.
Por fim, chega-se ao art. 201, ainda da constituição federal, que prevê, especificamente quanto à previdência, um sistema contributivo e de filiação obrigatória. Arrola os benefícios e os riscos a que se atenderá, sempre atento a algumas minúcias materialmente estranhas à constituição. Convenientemente, deixa-se claro o campo de atuação da lei ordinária, tanto no disciplinamento dos benefícios, como no das contribuições.
Não se tratará da inserção das contribuições sociais de financiamento da previdência social de regime geral, senão superficialmente. A matéria de classificar rigorosamente pode desaguar em discussão pura e simples de critérios e do tamanho do recipiente conceitual em que se porão tais ou quais espécies assemelhadas. Por ora, não interessa à abordagem que se segue.
Assume-se que contribuição previdenciária é espécie tributária peculiar, caracterizada pelo destino do produto arrecadado, sem questionar-se se aquelas devidas pelos empregadores têm uma natureza apartada daquelas devidas pelos empregados. A retributividade específica da parte devida pelos empregadores merecerá tratamento relacionado com o caráter universal do financiamento do sistema.
As contribuições previdenciárias
O art. 149, da constituição federal, estabelece a competência tributária da União para instituir contribuições sociais, contribuições de intervenção no domínio econômico e contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas. A exceção consiste na possibilidade de estados, distrito federal e municípios estabelecerem contribuições para financiar regimes de previdência de seus servidores.
O dispositivo constitucional mencionado acima remete aos arts. 146, III e 150, I e III, como limites a se observarem na instituição das contribuições. Trata-se da reserva de lei complementar para normas gerais de direito tributário, dos princípios da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade. O tema da reserva de lei complementar gera controvérsias e interpretações equivocadas e merecerá algumas considerações adiante.
A espécie tributária em análise faz parte do grupo maior das contribuições sociais, qualifica-se de previdenciária e distingue-se das outras, basicamente, por se destinar a finalidade específica. Não se cuida de retribuir uma atividade estatal divisível referível a pessoa específica, como é o caso das taxas. Cuida-se de ingressos qualificados, diga-se novamente, pelo destino.
Significa dizer que o sujeito passivo deve pagá-las, ainda que não chegue a utilizar o sistema por elas financiado. Não se demanda a utilização efetiva do sistema, o que seria conceitualmente contraditório, pois trata-se aqui de assumir riscos de eventos cujo acontecimento pode não ocorrer.
Enfim, todos os dinheiros ingressados nos cofres da União ou da Autarquia INSS, a título de pagamentos de contribuições previdenciárias, destinam-se ao custeio do sistema, eis a nota distintiva. Por conta disso, muito se insistiu na qualificação das contribuições devidas pelos empregadores como imposto. Os defensores da idéia apontam que o empregador não pagaria por algo que possa usufruir.
Contudo, a qualificação da contribuição a cargo do empregador como imposto é defeituosa, porque não leva em conta que o sistema inspira-se na solidariedade e universalidade do custeio e que os riscos não compreendem apenas o fator idade avançada para o trabalho. Há riscos da atividade laboral cujos ônus poderiam ter sido atribuídos aos empregadores, por opção do legislador constituinte.
Sendo, no entanto, suportados todos os riscos pelo sistema previdenciário – quando poderia ser diferentemente – percebe-se claramente que a contribuição paga pelo empregador reverte benefícios a ele, que se vê também aquinhoado pela cobertura da previdência. Paga-se, então, em função de custos que se julgaram devidos pelas duas partes mais evidentes da relação de trabalho. A questão de ser possível reduzir as exigências que têm por base a folha de pagamentos é outra e cabível em momento diverso.
Ambas as exações são, por conseguinte, legítimas representantes da espécie tributária contribuição previdenciária, ainda que diversas. A diferença fica evidenciada pelos sujeitos passivos, de um lado empregadores e equiparados e, de outro, trabalhadores, amplamente considerados, tudo nos termos ditados no art. 195, I e II, da Constituição Federal.
O constituinte atentou para as ampliações de abrangência eventualmente necessárias no sistema de cobertura de riscos sociais e previu um campo de competência residual da União para instituição de novas fontes de custeio. É a norma contida no § 4º, do art. 195, que remete também à limitação do art. 154, I. Trata-se de reserva de lei complementar para a criação de novas fontes de custeio.
A partir do quadro traçado no art. 195, a lei ordinária entra em cena para cumprir uma função especificadora na matéria. Quanto à instituição de contribuições, não há papel a ser desempenhado por ela, senão dentro do campo já definido na constituição, que já prevê sujeitos passivos e bases sobre que podem incidir, em linha gerais. Resta à lei ordinária a especificação dos sujeitos passivos, dentro das balizas constitucionais, as alíquotas e a sistemática de arrecadação e fiscalização.
No caso, a lei nº 8.212/91 é a regedora do custeio do regime geral de previdência social, cabendo-lhe estabelecer quem são os segurados, o que é sumamente importante, pois estes serão os sujeitos passivos na classe dos empregados e equiparados. Obviamente, que tal estabelecimento obedece aos conceitos utilizados na constituição, sob pena de incompatibilidade eventualmente anuladora da lei ordinária.
A lei de custeio atua sem balizas outras além da impossibilidade de confisco, em matéria de fixação de alíquotas. Com efeito, há limitação constitucional à utilização confiscatória de tributos, o que pode se configurar a partir de alíquotas extraordinariamente altas.
Capacidade tributária ativa em contribuições previdenciárias
O código tributário nacional define, no art. 119, o sujeito ativo da obrigação tributária como a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento. Trata-se do que se chama credor, aquele que pode cobrar uma prestação em nome próprio. Feliz ou infelizmente, a norma restringiu a titularidade da capacidade tributária ativa às pessoas de direito público, gerando dificuldades quanto a certas entidades privadas destinatárias de tributos.
A competência tributária da União para estabelecimento das contribuições utilizava-se para instituí-las devidas ao INSS, autarquia gestora do regime geral de previdência social. O mencionado instituto era o sujeito ativo, ou seja, titular do pólo ativo da obrigação tributária resultante da ocorrência dos respectivos fatos geradores. Cabia-lhe cobrar, mediante os atos de lançamento – quando necessário – os valores devidos, cuja destinação eram seus próprios cofres, diretamente.
A sistemática acomodava-se perfeitamente ao desenho da pessoa jurídica de direito público, dotada de patrimônio, receitas e despesas distintos daqueles da União. Sua vocação estritamente administradora do sistema previdenciário coadunava-se bem à estrutura autárquica. Ademais, a instituição de contribuições de competência da União visando-se a gerar receitas para terceiras pessoas é antiga no ordenamento brasileiro e não causa perplexidades.
Por outro lado, a estrutura adequava-se ao modelo orçamentário do art. 165 da constituição, sendo certo que a técnica do estabelecimento de orçamento próprio pressupõe previsão de despesas e receitas. Nesse contexto, inseria-se a capacidade tributária ativa do INSS para cobrá-las e recolhê-las diretamente a seus cofres. Mas o desenho legal alterou-se, não obstante o legislador ter utilizado ambiguidades para, talvez, disfarçar a mudança.
Recentemente, criou-se por meio da lei nº 11.098/05 a Secretaria da Receita Previdenciária, órgão do Ministério da Previdência Social, a quem se deu a capacidade de lançar, arrecadar e fiscalizar as contribuições de custeio do regime geral de previdência. Obviamente, perdeu o INSS a capacidade tributária ativa na matéria, que se caracterizava exatamente pelas atribuições de lançamento, cobrança e arrecadação dos tributos.
A lei mencionada diz serem as contribuições lançadas em nome do INSS e destinadas, consequentemente, a serem-lhe repassadas. Aqui, o legislador poderia ter operado mais cuidadosamente, caso pretendesse minimizar contestações e discussões. São conhecidos os estabelecimentos de tributos cujo sujeito ativo é uma autarquia, cabendo, contudo, as atividades de recebimento dos valores a outra, que os repassa. Tal conformação não suscita maiores dificuldades, na medida em que não se trata de matéria tão sensível quanto previdência e que a diferença de capacidade tributária ativa e de atribuição de arrecadação entre duas autarquias é menos problemática que entre a União e uma autarquia.
No caso das contribuições destinadas ao INSS, o cometimento da atribuição de lançar, arrecadar e fiscalizar a órgão da União, com a ressalva de que as contribuições são lançadas em nome da autarquia gerou conflitos de interpretação quanto à representação judicial nos processos em que se discutem tais tributos.
Com efeito, a capacidade tributária evidencia-se a partir da atribuição para formalizar, arrecadar e fiscalizar o pagamento do tributo, para exigí-lo, enfim. Se tais atividades administrativas são atribuição de órgão inserido em ministério e, portanto, desconcentração administrativa da União, é óbvio que o tributo pertence a esta última, pelo menos em primeiro momento. A previsão de repasse para outro órgão ou pessoa pública descentralizada relaciona-se com técnica de repasse orçamentário, não guardando relação com a definição do sujeito ativo.
A posição de sujeito ativo na obrigação tributária relativa a contribuições previdenciárias passou à União. A destinação ao INSS do produto arrecadado serve à caracterização da espécie como previdenciária, mas não afasta a evidência de que o tributo é de titularidade da União, porquanto lançado, arrecadado e fiscalizado por ela, como já dito exaustivamente.
A confusão resultante, em muito devida à expressão em nome do INSS, não deveria alcançar o tema da representação em juízo. O legislador não disse coisa alguma na expressão destacada acima e deveria ter falado em contribuições lançadas para o INSS. Não se lançam tributos em nome de outrem, mas, eventualmente, para outrem, a quem serão repassados os valores recebidos.
A prática mostra-se recorrente e o legislador utiliza-se frequentemente da dicção que faz supor tributos lançados por uma pessoa em nome de outra, como se as relações entre pessoas publicas e entre elas e pessoa política admitissem algo como o mandato do direito civil.
A conveniência e economia de esforços administrativos impõem que se arrecadem e fiscalizem certos tributos por estruturas alheias às do sujeito ativo. A transferência dessas atribuições não tem reflexos tributários e não induz a que o último elo da cadeia de transferência assuma a titularidade do tributo. O recebedor do tributo pode ser pessoa intermediária, que não tem o direito de exigí-lo legitimamente para si, diretamente.
O legislador ordinário tentou disfarçar a mudança de sujeito ativo das contribuições previdenciárias, talvez ciente da má qualidade da sua obra. Porém, resultou da lei que a União é o sujeito ativo e o INSS o destinatário do produto arrecadado, mediante repasse.
O sujeito ativo tributário é o credor, revelando-se útil indagar, para identificá-lo, quem pode praticar o ato de lançamento, privativo de autoridade administrativa, quando ele se mostra necessário. O ato traz uma declaração de ocorrência de situações típicas e veicula uma ordem de pagamento, resultado da individualização da norma jurídica tributária. A notificação de lançamento tem nítido sentido de cobrança, ou seja, determinação que se pague algum valor.
O titular da atribuição de notificar é o legitimado para cobrar e receber o tributo, é, enfim, o sujeito ativo da obrigação tributária. Com relação às contribuições previdenciárias, essa titularidade é, a partir da lei nº 11.098/05, da União, porque o tributo é exigido por ela, mediante atuação de órgão desconcentrado do Ministério da Previdência.
A existência de contribuições destinadas aos serviços sociais da indústria e do comércio, pessoas jurídicas de direito privado, não deve conduzir a conclusão contrária àquela que se apresentou anteriormente. As entidades aqui referidas não são sujeitos ativos tributários, não lançam tributos, não os cobram em nome próprio, porque não têm personalidade de direito público. Esbarra-se no empecilho expresso do art. 119, do CTN. O beneficiário dessas contribuições sociais não é credor tributário, no máximo é credor de uma transferência de cunho financeiro, estabelecida em lei.
A relativa confusão decorrente das alterações promovidas nas atribuições para lançar, arrecadar e fiscalizar as contribuições previdenciárias destinadas ao financiamento da previdência social não levam a dificuldades na matéria da representação em juízo. A lei previu que continuaria a cargo da Procuradoria-Geral Federal, por seu Órgão de Arrecadação, em consonância às balizas encontradas nos arts. 131, 132. Com efeito, a manutenção da atuação da PGF não se afigura contrária à constituição e, por conseguinte, não padece do único vício que poderia invalidar-lhe.
A reserva de lei complementar em matéria tributária previdenciária
A constituição federal apresenta uma cláusula genérica de reserva de lei complementar para estabelecimento de normas gerais de direito tributário. Os três incisos do art. 150 revelam as intenções do legislador constituinte na previsão da reserva. Indagar-se as finalidades visadas revela-se útil na compreensão do alcance do dispositivo, que, usualmente, gera interpretações fora de seu real espírito.
As partes menores do art. 150, da constituição, prevêem lei complementar para dispor sobre conflitos de competência entre entes federados, regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária. O último inciso desdobra-se em três pontos, com nível de especificidade maior. Convém dizer, ainda que pareça deveras óbvio, que a lei complementar aqui tratada desempenha essa função por referência constitucional direta, a partir de critério material.
A previsão de normas gerais, a se estabelecerem por espécie normativa mais exigente na sua elaboração, diz respeito ao formato federativo do estado brasileiro, onde convivem ordens jurídicas parciais submetidas à constituição. Esta última não deve ir a minúcias que a descaracterizem como documento de fundação jurídico-política de um estado, ainda que a brasileira quase o tenha feito. Então, o campo da lei complementar é do clareamento daquelas normas constitucionais traçadoras de linhas gerais, que demandam validez em todas as ordens parciais, ou seja, a todos os entes federativos.
O recurso a um tipo normativo mais exigente no seu processo de elaboração relaciona-se, então, à forma federada do estado, à necessidade daí decorrente de uma lei nacional para certas matérias que devem ser tratadas uniformemente para todas as pessoas políticas federadas. Diz respeito, no âmbito aqui tratado, à repartição das competências tributárias e às necessidades decorrentes dessa sistemática.
Certas normas serão consideradas gerais pelo seu destino a tornar homogêneo o tratamento de assuntos que transcendem aos interesses particulares de um ou outro ente federado. A exigência de lei complementar para exercício da competência residual da União é muito reveladora do sentido de complementaridade da espécie. Nesse exercício pode haver, eventualmente, invasão de âmbito material de outros tributos dos estados e municípios. Exatamente por isso, exige-se a norma de mais difícil elaboração, eis que ela pode veicular imposição complementar à própria constituição e, portanto, superior às autonomias estaduais.
Com efeito, os dois primeiros incisos do art. 150, da constituição, remetem diretamente às decorrências do sistema federativo quanto à matéria da repartição das competências, o que se reflete nas limitações ao poder de tributar. O terceiro inciso refere-se aos moldes conceituais gerais da obrigação tributária, o que se encontra no Código Tributário Nacional, lei recepcionada pela ordem constitucional como complementar.
A instituição de contribuições, todas elas, compete apenas à União, fazendo-se uma única exceção àquelas destinadas ao financiamento de regimes de previdência para servidores estaduais e municipais. Eis uma circunstância a que o intérprete deve ficar atento, porque ajuda a perceber a abordagem conveniente ao assunto.
Não há necessidade de leis complementares que se sobreponham às ordens jurídicas parciais dos estados, distrito federal e municípios, em matéria de contribuições, porque somente a União as institui. A disciplina específica demandará apenas lei ordinária que obedeça ao que a constituição prevê, ao tempo em que deverá obedecer aos ditames do CTN, no que tange aos conceitos básicos relativos a obrigação tributária.
Sob tal prisma, a questão, hoje controvertida, da previsão de responsabilidade solidária dos sócios de limitadas pelos débitos das empresa perante a previdência social revela-se mais clara. A responsabilidade pode ser prevista por lei ordinária, sem agressão a qualquer baliza constitucional.
A lei nº 8.620/93 operou no campo aberto pelo art. 124, II, do CTN, que permite o estabelecimento de responsabilidade tributária solidária em lei. A clareza da norma permite estranhar as tentativas de invalidar a lei ordinária por uma suposta inconstitucionalidade. Essa desconformidade com a constituição é praticamente impossível de se constatar. Não obstante o art. 13, da lei mencionada, que previu a solidariedade em questão, está sendo objeto de impugnação em ação direta de inconstitucionalidade.
Verifica-se que o legislador ordinário atuou no seu legítimo campo de opções políticas, tomando em conta a relevância social do regime de previdência, que demanda mais rigor no tratamento da inadimplência tributária. Trata-se, com efeito, de financiar, mediante tributos vinculados, um regime de grande alcance social, mormente em país com elevados índices de pobreza.
Estabeleceu, então, conforme possibilidade expressa no CTN, a solidariedade dos sócios como forma de ampliar as possibilidades de recebimento de contribuições inadimplidas. Ora, a lei presume-se, uma vez publicada, conhecida por todos. Ademais, o sócio de limitada, sociedade de pessoas, participa da administração do negócio e tem dever de conhecimento e vigilância. Por isso, não afronta a razoabilidade que se lhe exija responsabilidade patrimonial por tributos cujo pagamento deveria ter se realizado no interesse de sistema inspirado por princípios de solidariedade e universalidade.