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A produção de provas no processo penal e sua relação com o princípio da não autoincriminação

Reflete-se sobre os eventuais limites ao princípio da não autoincriminação, na produção de provas invasivas e não invasivas.

O princípio nemo tenetur se detegere é o direito que todo indivíduo possui de não produzir provas contra si mesmo. Foi incorporado ao direito brasileiro através da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre direitos Civis e Políticos, ambos em 1992.

Esse princípio está intimamente ligado a outros princípios, como o da dignidade da pessoa humana, isonomia, proporcionalidade e presunção de inocência. Juntos eles garantem segurança jurídica aos cidadãos, além de assegurar um processo justo e paritário.

O princípio da não autoincriminação possui várias formas de manifestação, sendo a mais conhecida delas o direito ao silêncio, consagrado no art. 5º, LXIII da Constituição Federal, bem como no artigo 186 do Código de Processo Penal. Consiste no direito que o acusado tem de não se manifestar a respeito do fato investigado, sem que o silêncio importe em confissão, ou recaia sobre ele juízo de valor negativo.

Tiago Del Ponte (2011, p. 25) sistematiza três formas de manifestação do nemo tenetur se detegere, sendo elas: o direito de não depor contra si, o direito de não se conformar com a acusação, e o direito de não contribuir para produção de outras provas. A primeira é traduzida pelo já exposto direito ao silêncio, sendo importante ressaltar que essa garantia está presente em qualquer atividade estatal que tenha como objetivo obter informações sobre fatos criminosos, como, por exemplo, no interrogatório policial.

O direito de não se conformar com a acusação permite que o acusado, no decorrer do processo, caso queira, afirme, em todos os momentos, sua inocência. No Brasil, não existe o chamado pleading, da forma como existe na legislação norte-americana, em que antes da instauração do processo, o acusado comparecerá ao juízo, confirmando que está de acordo com a acusação, o que dispensa o processo penal passando diretamente para a sentença. (DEL PONTE, 2011).

O direito de não contribuir para produção de outras provas consiste na possibilidade de recusa do acusado a participar e submeter-se à produção de provas. As provas que necessitam da participação do acusado podem ser invasivas ou não invasivas, e cada um desses dois tipos têm limites e particularidades relacionadas ao princípio da não autoincriminação. Motivo disso é o conflito entre o interesse individual, traduzido pelos direitos fundamentais e princípios supracitados, e o interesse social, que é um dever dos poderes públicos.

O autor Lopes Jr. (2017, p. 344) informa que o processo penal e a prova integram os modos de construção do convencimento do julgador que influenciará na sua convicção e legitimará a sentença. Porém, a produção de provas está subordinada às garantias constitucionais, não sendo um direito ilimitado, incondicional e absoluto. As provas são consideradas ilícitas quando forem obtidas de forma contrária a essas garantias, e violarem direitos como: intimidade, privacidade, inviolabilidade do domicílio, sigilo de correspondência, sigilo profissional etc. A previsão para a proibição de sua utilização está prevista no art. 5º, inciso LVI da Constituição Federal.

De acordo com Luiz Flávio Gomes (2008):

O direito à prova conta, efetivamente, com várias limitações. Não é um direito ilimitado. Com efeito, (a) a prova deve ser pertinente (perícia impertinente: CPP, art. 184; perguntas impertinentes: CPP, art. 212; Lei 9.099/95, art. 81, 1º); (b) a prova deve ser lícita (prova obtida por meios ilícitos não vale); (c) devem ser observadas várias restrições legais: art. 207 (direito ao sigilo), 479 (proibição de leitura de documentos ou escritos não juntados com três dias de antecedência) etc.; (d) e ainda não se pode esquecer que temos também no nosso ordenamento jurídico várias vedações legais (cartas interceptadas criminosamente: art. 233 do CPP) e constitucionais (provas ilícitas, v.g.). De outro lado, provas cruéis, desumanas ou torturantes, porque inconstitucionais, também não valem. Não é admitida a confissão mediante tortura, por exemplo.

As provas podem ser ilícitas ou ilegítimas. As primeiras violam regra do direito material, já as segundas, são aquelas que ocorrem quando a violação é colocada por lei processual. Fernando Capez (2011) corrobora nesse mesmo sentido:

As provas ilícitas constituem-se uma violação ao direito material e ocorrem no instante de sua colheita. As provas ilegítimas, por sua vez, infringem normas de direito processual e a violação se dá no exato momento em que são introduzidas ao processo. Geralmente, surgem na ocasião em que são produzidas no processo e, por isso, são chamadas de endo ou intra-processual. 

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Portanto, sobre as provas que dependem do consentimento do acusado para serem produzidas e, levando em consideração o conceito das provas ilícitas, temos que: as provas invasivas e não invasivas, se realizadas sem o consentimento do acusado, são consideradas ilícitas. Seja por violar o direito de não produzir provas contra si mesmo, seja por violar o direito à integridade física, que é o direito ao próprio corpo e à parte separadas dele.

As provas invasivas necessitam de intervenção no corpo do acusado para serem produzidas; já as provas não invasivas são aquelas que dependem de vestígios do corpo do acusado para serem produzidas. Como exemplo das primeiras, temos o exame de sangue e o exame ginecológico, e, das segundas, podemos destacar o exame grafotécnico, reconstrução do fato, identificação dactiloscópica etc.

Não há, na legislação brasileira, nenhuma menção sobre a obrigatoriedade de o réu colaborar, ou não, com a produção de provas. Temos, como regra geral, que as provas invasivas não podem ser realizadas sem a anuência e contra a vontade do acusado, e o entendimento doutrinário é no sentido de que sua recusa não configura crime de desobediência. Em se tratando de provas não invasivas, mesmo que o agente não concorde com sua produção, poderão ser realizadas normalmente. É importante ressaltar que as células corporais encontradas no próprio local do crime, no corpo das vítimas ou objetos, poderão ser recolhidas e analisadas sem nenhum impedimento.

Este também é o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça:

[...] 5. No caso, entretanto, não há que falar em violação à intimidade já que o investigado, no momento em que dispensou o copo e a colher de plástico por ele utilizados em uma refeição, deixou de ter o controle sobre o que outrora lhe pertencia (saliva que estava em seu corpo). 6. Também inexiste violação do direito à não autoincriminação, pois, embora o investigado, no primeiro momento, tenha se recusado a ceder o material genético para análise, o exame do DNA foi realizado sem violência moral ou física, utilizando-se de material descartado pelo paciente, o que afasta o apontado constrangimento ilegal. [...]

(STJ, Quinta Turma, HC 354.068/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/03/2018)

Entretanto, perdura corrente doutrinária contrária ao aplicado atualmente nos tribunais. Marcelo Schirmer Albuquerque (2008, p. 47) afirma que a garantia de não autoincriminação deve ser limitada pelo Princípio do Contraditório, que permite que as partes possam provar, em plena paridade de armas, a sua versão dos fatos, utilizando-se da prova. Da maneira que é afirmado pela doutrina majoritária, simplesmente é proibida a realização de tais provas, o que confere um status de intocável ao acusado, além de totais poderes sobre o andamento do processo. Impedir o Estado de produzir a prova não é a única via para que inocentes não sejam punidos, mas sim, a maneira de permitir que culpados saiam impunes.

No que tange à não obrigatoriedade da produção de provas, deve ser levada em conta a segurança e a vida de outras pessoas da sociedade, o que configura um conflito entre interesses individuais do acusado e interesses da coletividade. Nesses casos, deve-se haver a necessária ponderação, a fim de não haver uma predominância absoluta do interesse estatal, porquanto, assim, estar-se-ia instalando um sistema autoritário, com sobreposição ao interesse individual, e a persecução penal, nesse caso, estaria arruinada.

Érica Ferreira (2009, p. 24) também discorre sobre a ponderação de interesses:

Ao se levar em consideração somente a pessoa do acusado, não se poderá aplicar as provas invasivas e não invasivas sem sua autorização, mas, a partir do momento que se leva em consideração a segurança e a vida das demais pessoas da sociedade, estas provas invasivas e não invasivas passam a ser constitucionais e a podem ser aplicadas, pois não se pode colocar a vida da sociedade em risco pela não aplicação das provas invasivas e não invasivas.


Diante de todo exposto, vimos que o princípio nemo tenetur se detegere possui várias formas de manifestação, além do direito ao silêncio constitucionalmente assegurado, uma vez que é essencial para garantir o processo penal paritário, principalmente no que tange à produção de provas dependentes do acusado. Para que as provas sejam aceitas no processo penal, elas não podem ser ilícitas. Em suma, a produção de provas invasivas só pode ser realizada com a anuência do acusado; já as provas não invasivas não se subordinam a esta condição, podendo ser produzidas normalmente. 

Portanto, em razão do conflito entre interesse social e interesse individual, uma ponderação tem que ser feita nos casos concretos, para que seja estabelecido quando a garantia da não autoincriminação deve ser mitigada e quando ela deve prevalecer.


Referências

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1998.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 354.068/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/03/2018. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/713207147/habeas-corpus-hc-488029-sc-2019-0001187-3?ref=amp>. Acesso em: 08 set. 2019.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. V. 1. 15ª ed. São Paulo: Saraiva 2011.

DEL PONTE, Tiago. Os reflexos da autodefesa na resolução do processo penal brasileiro. 2011. 68 f. Monografia apresentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

FERREIRA, Érica. Provas invasivas e não invasivas no processo penal brasileiro. Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2009. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2009/trabalhos_22009/EricaFerreira.pdf> Acesso em: 08 set. 2019.

GOMES, Luiz Flávio. Lei 11.690 /2008 e provas ilícitas: conceito e inadmissibilidade. Disponível em http://www.lfg.com.br 19 junho. 2008.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. 11. Ed. Rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2014.

Sobre as autoras
Hortencia Juniery Souto

Acadêmica do curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUTO, Hortencia Juniery; BARBOSA, Amanda Tofani. A produção de provas no processo penal e sua relação com o princípio da não autoincriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6525, 13 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90461. Acesso em: 24 nov. 2024.

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