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O homicídio derivado do racha ou manobras perigosas em veículos automotores crime culposo e dolo eventual

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Refletimos sobre o homicídio causado por disputas de corridas automobilísticas não autorizadas em vias públicas e manobras perigosas, previsto no artigo 308 do CTB, na perspectiva do dolo e da culpa.

Resumo: O objetivo do presente artigo é análise do homicídio derivado da conduta de exibição de manobras perigosas ou de disputas de corridas automobilísticas não autorizadas em vias públicas, previsto no artigo 308 do CTB, sob o foco do elemento subjetivo do agente. Para tanto serão realizadas pesquisas bibliográficas em doutrinas de Direito Penal e Legislações Especiais, além de busca pelas alterações legislativas pertinentes e entendimentos jurisprudenciais sobre o tema. Com a pesquisa foi possível verificar que a jurisprudência apontava um caminho em que o dolo eventual seria adotado, quase como regra, para casos em que homicídio derivava da conduta do agente que participava de competição ilegal ou exibia manobras perigosas em via pública, adotando conduta de altíssimo risco, sem se importar com as consequências. Há uma tendência de punição mais rígida aos crimes de trânsito de uma forma geral. No entanto, após as alterações promovidas pela Lei nº 12.971/14, o resultado morte, derivado do racha ou manobras perigosas, foi admitido como uma espécie de preterdolo do crime em questão, o que pode indicar uma possível mudança do posicionamento jurisprudencial em relação ao homicídio derivado de exibição não autorizada de manobras e de disputas de corridas em vias públicas. Porém, também foi possível interpretar que entender o resultado morte como característica de um crime preterdoloso, previsto para o artigo 308 do CTB, não elimina a possibilidade da atribuição do dolo eventual à conduta do agente. Assim, a análise de caso a caso se faz necessária para identificar o elemento subjetivo do agente, punindo adequadamente as condutas dolosas (dolo eventual) ou culposas (culpa consciente ou inconsciente).


Introdução

O trânsito está presente de forma essencial no cotidiano das pessoas. Nesse sentido, o Código de Trânsito Brasileiro – CTB em seu artigo 2º, §2º, afirma que a segurança viária é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito. O próprio código destaca a proteção à vida, à integridade física e aos interesses coletivos como bens jurídicos protegidos. Porém, os dados estatísticos de mortes causadas por acidentes automobilísticos no mundo são alarmantes. Segundo a Organização das Nações Unidas – ONU (2016), os acidentes no trânsito matam cerca de 1,25 milhões de pessoas por ano, em todo o mundo, sendo a principal causa de morte entre os jovens com idades entre 15 e 29 anos. No Brasil, a realidade não é diferente, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (OPAS, 2016), são mais de quarenta mil mortes em acidentes de trânsito por ano, além de milhares de feridos, que custam cerca de R$ 40 bilhões ao país.

Os danos ocasionados pelos acidentes viários vão além das despesas financeiras. Alcançam, de fato, a capacidade produtiva da população, pois atingem os indivíduos na sua fase mais promissora e produtiva, gerando um déficit cultural, psicológico, econômico e social para os acidentados, para sua família e a sociedade em geral.

As mortes causadas em acidentes viários pressupõem um crime de trânsito cometido, seja o seu resultado (o próprio homicídio previsto no art. 302 do CTB) ou, em alguns casos, como parte da sua causa (direção perigosa, velocidade incompatível com a via ou dirigir sob a influência de álcool). Assim, surge a indagação se a conduta do agente provocador de uma morte na direção de veículo automotor pode ser considerada como dolo eventual ou seria mais razoável, em todos os casos, admiti-la como uma conduta culposa. Assim, as legislações que tratam sobre os crimes de trânsito vêm sofrendo modificações diversas nos últimos anos, na tentativa de se adequar aos valores sociais emergentes.

Dessa forma, o objetivo da pesquisa será a análise do homicídio derivado da conduta de exibição de manobras perigosas ou de disputas de corridas automobilísticas não autorizadas em vias públicas, previsto no artigo 308 do CTB, sob o foco do elemento subjetivo do agente.

Para tanto serão realizadas pesquisas bibliográficas em doutrinas de Direito Penal e Legislações Especiais, além de busca pelas alterações legislativas pertinentes e entendimentos jurisprudenciais sobre o tema.


Conceitos básicos de dolo e culpa no Direito Penal

Inicialmente, para o debate do tema proposto para esse trabalho se faz necessário uma breve exposição dos conceitos básicos desses do Dolo e da Culpa no Direito Penal.

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No Código Penal, o dolo é tratado no artigo 18, inciso I, com a seguinte redação: “Diz-se o crime: Crime doloso I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” (BRASIL, 1948, p. 4). Dolo é a regra no sistema penal brasileiro, somente sendo possível a punição a título de culpa quando for expressa no tipo penal. É nesse sentido a redação do parágrafo único do artigo 18 do CP, “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente” (BRASIL, 1948, p. 4).

De acordo com Capez (2019), dolo é a vontade e a consciência de realizar os elementos constantes do tipo, a vontade manifestada pela pessoa humana de realizar a conduta. O dolo é formado por dois elementos: o volitivo, isto é, a vontade de praticar a conduta descrita na norma, representado pelos verbos querer e aceitar; e o intelectivo, traduzido na consciência da conduta e do resultado, o agente sabe o que faz (CUNHA, 2020).

O dolo é a forma mais grave de atribuição subjetiva do ilícito e seu reconhecimento sempre dependerá de uma demonstração objetiva da intenção subjetiva representada pelo conhecimento e pela vontade.

A doutrina do Direito Penal, ao tratar das espécies de dolo, apresenta uma diversidade considerável de classificações. Porém, como o intuito do trabalho é específico, serão apresentadas as classificações mais relevantes para o tema: o dolo direto e o indireto (eventual).

 O dolo direto se constitui quando o agente quer, efetivamente, praticar a conduta descrita no tipo penal. Ocorre quando o agente quer diretamente o resultado. No dolo direto o sujeito diz: “eu quero”, nesse sentido a vontade se encaixa com perfeição ao resultado (CAPEZ, 2019).

O dolo eventual está previsto na parte final do inciso I do artigo 18 do Código Penal quando, em relação ao resultado, o agente “assumiu o risco de produzi-lo”. No dolo eventual basta que o agente aceite um resultado que, em determinado contexto fático, era provável e possível de acontecer, demonstrando indiferença quanto às consequências. Então, há dolo eventual quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito (MASSON, 2019).

Inicialmente, é necessário destacar que, entender o dolo apenas como elementos contidos dentro do íntimo do agente, somente em seu aspecto psicológico, possui um problema fundamental. Em uma perspectiva prática, é impossível acessar os pensamentos do autor de um delito para estabelecer o seu conhecimento e sua vontade em uma conduta.

De acordo com Busato (2017), a demonstração do dolo como realidade psicológica revelou-se precária, não só pela impossibilidade física de acesso à intenção subjetiva do agente, mas também, e principalmente, em face de que a verdade real no processo penal não existe. Assim, os problemas para identificação psicológica do conhecimento e da vontade do agente levam a concluir que o dolo é o resultado de uma atribuição feita aos seus atos durante a conduta criminosa. Nesse sentido, o dolo deixa de ser um estado psíquico, e passa a se caracterizar como uma atribuição à conduta do agente.

Partindo desse pressuposto, o conhecimento e a vontade do agente, ao serem analisados, passam por uma avaliação necessária para imputação do dolo, na busca pelos aspectos observáveis para realizar a devida imputação. Seguindo esse raciocínio, somente o caso concreto e informações acessíveis no mundo observável possuem elementos potenciais para a atribuição do dolo ao conhecimento e vontade do agente.

Assim, quanto ao elemento “conhecimento” na conduta do agente, Busato (2017) apresenta a seguinte reflexão na busca por aspectos objetivos para estabelecer o dolo:

[...] só podemos analisar manifestações externas; mas, através destas manifestações externas podemos averiguar a bagagem de conhecimento do autor (as técnicas que ele dominava, o que ele podia e o que não podia prever ou calcular) e entender, assim, ao menos parcialmente, suas intenções expressadas na ação (BUSATO, 2017, p. 37).

É justamente o domínio de determinada técnica que torna os sujeitos capazes de fazerem previsões a respeito de seus comportamentos, que é característica distintiva do dolo.

Nos graves crimes de trânsito, o conhecimento sobre as condutas arriscadas na direção de veículos automotores pode ser verificado em aspectos práticos. Pois, além do domínio de técnicas de condução de veículos por parte do agente, o que dá a ele o conhecimento do potencial lesivo de um veículo automotor, há informações sendo divulgadas a todo instante sobre a segurança no trânsito.

Como destaca Nucci (2019), as inúmeras campanhas realizadas, demonstrando o risco da direção perigosa e manifestamente ousada, têm sido suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de certas condutas, tais como o racha, a direção em alta velocidade sob embriaguez. Se, apesar disso, continua o condutor do veículo a agir dessa forma nitidamente arriscada, estará demonstrando seu desapego à incolumidade alheia, podendo responder por delito doloso.

Assim, o domínio da técnica de condução do veículo automotor e as diversas campanhas sobre os graves acidentes de trânsito são aspectos capazes de verificar objetivamente o elemento “conhecimento” para imputação do dolo à conduta do agente.

Em relação ao elemento “vontade”, Busato (2017) entende como uma espécie de “decisão contra o bem jurídico”, expressa em um compromisso com a lesão ou perigo de tal bem jurídico. Assim, a decisão a respeito do dolo não pode deixar de ter em conta a intenção psíquica do agente, ainda que para isso o julgador tenha que se acudir de elementos externos.

Dentro dessas perspectivas normativas é essencial a concreta determinação de critérios seguros para a afirmação do dolo. Assim, Hassemer apresenta a teoria dos indicadores externos:

Hassemer entende que o dolo é uma “decisão a favor do injusto”, mas entende também que o dolo é uma instância interna não observável, com o que sua atribuição se reduz à investigação de elementos externos que possam servir de indicadores e justificar sua atribuição. Por isso, esses indicadores só podem ser procurados na mesma ratio do dolo, que se explica em três sucessivos níveis: a situação perigosa, a representação do perigo e a decisão a favor da ação perigosa (BUSATO, 2017, p. 26).

Nesse sentido, a teoria dos elementos externos apresenta um rol de indicadores objetivos que permitem ao julgador atribuir uma conduta dolosa a alguém. O dolo deve ser verificado a partir de indicadores externos: a situação perigosa; a representação do perigo; a decisão a favor da situação perigosa.

As circunstâncias objetivas e subjetivas seriam analisadas como um todo. Pois, não se leva em conta apenas o que o agente quer, mas também, os elementos externos de sua conduta, que possibilitam avaliar o comportamento no mundo dos fatos. Observa-se que o elemento cognitivo do conhecido está presente no critério “representação do perigo” que, como já discutido, também possui um método objetivo para sua validação a partir de elementos externos da conduta do agente.

A atribuição de responsabilidade dolosa depende de uma valoração feita pelo julgador, a partir da adoção de critérios objetivos de avaliação da conduta para demonstrar o perigo da situação concreta para o bem jurídico, a representação do agente a respeito desse perigo, e sua decisão a respeito de realizar a conduta apesar do perigo existente (BUSATO, 2017).

De uma forma geral, será observado, na conduta do agente, o perigo da situação criada para o bem jurídico, a representação do agente sobre tal perigo e a decisão a favor de sua realização. Esses são os passos que conduzem a uma imputação subjetiva do dolo a partir da observação dos elementos objetivos externos da conduta. De acordo com Busato (2017), apenas a situação de perigo contém dados observáveis, pois a representação e a decisão não podem ser descritas, apenas deduzidos por meio de indicadores externos caracterizadores na conduta do agente.

A culpa está prevista no inciso II do artigo 18 do Código Penal com a seguinte redação:

Art. 18 - Diz-se o crime:

[...]

II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente (BRASIL, 1940, p. 4).

Ainda de acordo com o parágrafo único do Artigo 18 do CP, os crimes culposos são tratados como a exceção, pois, em regra, os crimes são dolosos. Nesse sentido, para punição por um crime culposo é necessário a sua previsão específica em um tipo penal.

Nucci conceitua a culpa como um “comportamento voluntário desatencioso, voltado a um determinado objetivo, lícito ou ilícito, embora produza resultado ilícito, não desejado, mas previsível, que podia ter sido evitado” (NUCCI, 2019, p. 558). A culpa pode ser dividia em duas espécies distintas: a culpa consciente e a culpa inconsciente. Essa divisão, tem como fator distintivo, a previsão do agente acerca do resultado naturalístico provocado pela sua conduta.

Nesse sentido, a culpa inconsciente é aquela em que o agente não prevê o resultado objetivamente previsível, ocorrendo o resultado derivado da imprudência, negligência ou imperícia (CAPEZ, 2019). Por outro lado, a culpa consciente ocorre quando o agente, após prever o resultado objetivamente previsível, realiza a conduta acreditando sinceramente que ele não ocorrerá (MASSON, 2019). A culpa consciente representa uma espécie de culpa mais grave, se aproximando do dolo eventual. Pois, na culpa consciente, o sujeito não quer o resultado, nem assume o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita, sinceramente, ser capaz de evitá-lo, o que apenas não acontece por erro de cálculo ou por erro na execução.

Então, de uma forma resumida, tem-se, até aqui, que: o Dolo Direto ocorre quando a vontade do agente é voltada a determinado resultado; o Dolo Eventual ocorre quando o agente não quer o resultado diretamente, mas assume o risco de produzi-lo; a Culpa Consciente ocorre quando o agente, após prever o resultado, realiza a conduta acreditando que ele não ocorrerá; a Culpa Inconsciente ocorre quando o agente não prevê o resultado previsível, sendo derivado da imprudência, negligência ou imperícia. 

Sobre os autores
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHO, Wagner Leandro Pereira; ANTUNES FILHO, Faustino Rodrigues. O homicídio derivado do racha ou manobras perigosas em veículos automotores crime culposo e dolo eventual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6528, 16 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90480. Acesso em: 24 nov. 2024.

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