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Redutibilidade salarial no período de pandemia da covid-19: Análise da Lei n° 14.020/20

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Analisa-se a possibilidade de redução salarial proporcional à jornada de trabalho, adotada pelo Governo Federal como medida alternativa ao enfretamento da pandemia da covid-19.

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a Lei nº 14.020, de 06 de julho de 2020, e a possibilidade de redução salarial proporcional à jornada de trabalho. Essa medida foi uma das alternativas do Governo Federal brasileiro ao enfrentamento do estado de calamidade pública em decorrência da pandemia da covid-19, reconhecida pela OMS, uma vez que a grave crise em diversos setores estatais, como o da saúde pública e da economia, levou o governo à necessidade de regulamentar as relações de trabalho. A redução salarial, desde logo, proporcionou questionamentos quanto à sua constitucionalidade, pois afronta os direitos e princípios fundamentais do trabalho previstos pela Constituição Federal de 1988. O papel do Estado como provedor e garantidor dos direitos trabalhistas é de suma importância, devendo este assegurar o devido cumprimento de tais direitos, assim como dos direitos à dignidade, à saúde e à vida. A manutenção e a preservação dos empregos e empresas promove uma sociedade mais justa; por isso, as medidas propostas pelo governo durante a pandemia visaram amenizar os prejuízos. O estudo em questão utilizou-se do método de natureza qualitativa com fundamento em pesquisas bibliográficas e documentais, tais como artigos e jurisprudência, à luz da legislação pátria.

Palavras-chave: Redução salarial; jornada de trabalho; Irredutibilidade salarial; Pandemia da covid-19.

Sumário: Introdução. 1. Breve contexto histórico da Lei n° 14.020/20: possibilidade de redução salarial. 2. Previsões legais da redução salarial. 3. Divergência sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da medida de redução salarial. 4. Demonstrativo efetivo da redução salarial proporcional à jornada proposta pela Lei n° 14.020/20. Conclusão. Referências.  


Introdução

A proteção aos direitos trabalhistas encontra-se enraizada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988). O princípio da irredutibilidade salarial possui força imperativa expressa na legislação, que visa garantir o equilíbrio da relação trabalhista, empregador e empregado, impedindo que este sofra violações de seus direitos. A pandemia do novo coronavírus, que atingiu a população mundial em 2020, trouxe significativas alterações ao Direito do Trabalho, tais como a flexibilização de regras, com o objetivo de salvaguardar os empregos e amenizar os impactos na economia.

O Direito do Trabalho possui como característica principal a proteção do trabalhador, visto que “o empregado não está em igualdade jurídica com o empregador” (CASSAR, 2018, p.28). Após a Revolução Industrial, no momento em que a mecanização do trabalho – que, antes, era manual – cresce, a figura do trabalhador ou empregado surge como uma mão de obra mais barata e sem capacidade de opinar, uma vez que ele era oprimido e explorado (CASSAR, 2018). Com a evolução tecnológica que atingiu fortemente o setor trabalhista, o Estado passou a disciplinar essas relações com o objetivo de prezar pela dignidade dos que eram subordinados, traçando limites para a atuação dos empregadores.

A tutela do trabalho e de suas decorrentes obrigações sempre foi norteada e fundamentada pelos princípios constitucionais. A CRFB/1988, em seu Título I, assegura os princípios fundamentais como direcionadores da ação do Estado, entre os quais o direito à dignidade e aos valores sociais do trabalho. Desde logo, a CRFB/1988 garante a todo trabalhador a proteção integral de seus direitos, de forma a amenizar a desigualdade social e econômica da relação empregado e empregador.

Conforme demonstrado, o Direito do Trabalho fundamenta-se em institutos, princípios e regras que possam ressalvar as garantias dos trabalhadores. Entre as medidas de prevenção ao abuso ou descumprimento dos direitos trabalhistas, a irredutibilidade salarial é a principal medida de proteção ao empregado prevista pelo ordenamento jurídico brasileiro. O salário do empregado possui natureza alimentar, integrando o Sistema de Proteção do Salário, que disciplina que aquilo que for ajustado entre as partes – empregado e empregador – deve ser respeitado. A impossibilidade de alteração salarial tem fundamento em dois essenciais princípios.

O primeiro deles é o princípio da irredutibilidade do salário, o qual possui previsão expressa na CRFB/1988, em seu artigo 7°, inciso VI. Tal dispositivo apresenta a impossibilidade de redução do salário do empregado, “salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo” (BRASIL, 1988, artigo 7°, inciso VI). Para tanto, não é norma absoluta.

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A Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) e o Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) possuem caráter normativo, assegurados pelo inciso XXVI, do artigo 7° da CRFB/1988. O primeiro ocorre entre o sindicato dos trabalhadores (empregados) e o sindicato da categoria econômica (empregadores), obrigando a todos que os compõem. Já o segundo se dá por meio de acordo entre o sindicato dos trabalhadores (empregados) e uma ou mais empresas de maneira individual. Este gera obrigações apenas entre as partes do acordo (VANIN, 2015).

A vedação à redução salarial possui força imperativa também no princípio da inalterabilidade contratual lesiva. Este princípio, baseado no Direito Civil da inalterabilidade lesiva dos contratos, se expressa por meio do instituto do pacta sunt servanda (“os pactos devem ser cumpridos”). Delgado (2017, p.1152) afirma, “em sua matriz civilista, que as convenções firmadas pelas partes não podem ser unilateralmente modificadas no curso do prazo de sua vigência, impondo‑se ao cumprimento fiel pelos pactuantes.”. Dessa forma, o empregador está impedido de alterar o salário do empregado de maneira unilateral.

Segundo o entendimento de Pinto (2000, p.290-294), essa proteção abrange o valor do salário, tido como mínimo; portanto, para tal autor, significa proibir quaisquer descontos não autorizados por ela mesma ou pela convenção coletiva de trabalho ou, ainda, representativos de reembolso de adiantamentos do próprio salário (BRASIL, 1943, artigo 462); também compreende a natureza do salário ou forma de pagamento, a época e lugar para se realizar o pagamento, bem como a certeza da percepção, ficando o empregador obrigado a entregar recibo daquilo que foi pago a título de salário ao empregado.

Os efeitos da pandemia da COVID-19 refletiram-se diretamente na mudança de comportamento mundial. A rápida disseminação do vírus obrigou os mais diversos setores da economia a paralisarem suas atividades, com a intenção de reduzir o contato interpessoal, controlando, assim, o número de novos infectados. Com a evolução da doença, que será contextualizada no subcapítulo 2.2, o Governo Federal editou diversas MPs para direcionar os setores da economia a enfrentar a situação de emergência em que o Brasil e o mundo se encontram. Com reflexo no Direito do Trabalho e de maneira inovadora, a Lei nº 14.020/2020, oriunda da conversão da MP 936, instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, trazendo três alternativas: o pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (BEm); a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário; e a suspensão temporária do contrato de trabalho.


Breve contexto histórico da Lei n° 14.020/20: possibilidade de redução salarial

Em 11 de março de 2020, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que a epidemia da COVID-19, iniciada em Wuhan, na China, passou a ser caracterizada como uma pandemia. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), “pandemia” é a disseminação de uma nova doença que se espalha por diferentes continentes, com transmissão sustentada de pessoa para pessoa. O termo passa a ser utilizado quando uma epidemia, que afeta apenas uma região, toma proporções mundiais (SCHUELER, 2020).

A eclosão da denominada 2019-nCov ou COVID-19 (Doença por Coronavírus 2019) levou os líderes mundiais a tomarem medidas drásticas para o controle e o combate à proliferação do vírus. A pandemia tornou-se, então, uma emergência de saúde pública mundial, de vigilância epidemiológica e, sobretudo, de programação de políticas públicas que reduzissem os danos causados pelo vírus em todas as esferas sociais (RAFAEL et al., 2020).

No Brasil, em 07 de fevereiro de 2020, foi sancionada a primeira lei desde que declarada oficialmente a pandemia. A Lei nº 13.979/2020 trouxe as primeiras medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional (BRASIL, 2020c). Entre estas, está a previsão do isolamento social e da quarentena. O primeiro, para aqueles que efetivamente realizaram o teste e foram confirmados para a doença; a segunda, para os casos em que houvesse contato direto com alguém confirmado, portanto, tornando o indivíduo suspeito para a doença.

Em decorrência dessas duas medidas, houve a necessidade de regulamentar como ocorreria a continuação dos contratos de trabalho, uma vez que aqueles em isolamento ou em quarentena não poderiam deixar suas casas para a prestação dos serviços, como também seria inviável expor todos os trabalhadores a um alto índice de contaminação. Sendo assim, a princípio, seria impossível manter as atividades em funcionamento, ademais a manutenção desses empregos. Com isso, houve a edição de inúmeras MPs com a intenção de salvaguardar as relações de emprego, fato que influenciou diretamente no Direito do Trabalho, na economia, na saúde e na vida.

Destaca-se a MP 936, convertida na Lei nº 14.020/2020, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e medidas complementares, como o pagamento do BEm, a redução do salário proporcional à jornada e a suspensão temporária do contrato de trabalho. Baseando-se nos fundamentos constitucionais de proteção à vida, à dignidade da pessoa humana, entre outros tão importantes à manutenção da sociedade, essa lei representa uma flexibilização de direitos com objetivo de garantir que o setor privado e o sistema público de saúde pudessem atuar de maneira eficaz durante o período excepcional da pandemia do novo coronavírus.

Inicialmente, é importante a análise das finalidades de tais medidas. A preservação do emprego e a manutenção da renda, a garantia da continuidade das atividades, ainda que de forma diversa da habitual e, consequentemente, a redução do impacto social decorrente dos danos causados pela paralisação dos serviço, foram os objetivos trazidos pelo governo (BRASIL, 2020d).

Porém, quais empregados poderiam se beneficiar com essas alternativas? Ou melhor, quem a lei põe a salvo de sua incidência? É dessa forma que o parágrafo único do artigo 3° da referida lei traz os que não estão sujeitos à aplicação das medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Em um rol taxativo, não podem ser aplicadas as medidas do programa, “no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos órgãos da administração pública direta e indireta, às empresas públicas e às sociedades de economia mista, inclusive às suas subsidiárias, e aos organismos internacionais” (BRASIL, 2020d).

Com isso, em regra, os demais não inseridos nesse dispositivo poderiam realizar acordo diretamente entre empregado e empregador, sem a presença do sindicato da categoria profissional, para suspender o contrato de trabalho ou reduzir o salário proporcionalmente à jornada. Vale destacar que o acordo deve ser obrigatoriamente escrito, devendo o empregador encaminhá-lo ao empregado com antecedência mínima de dois dias corridos. Conforme o entendimento de Cassar (2020), é possível que o acordo escrito se dê de maneira eletrônica, em decorrência do distanciamento social[1], podendo se tomar a termo a posteriori. Após realizado o acordo, o empregador deve informar ao Ministério da Economia, no prazo de 10 dias, contados da data da celebração do acordo, sob pena de não ter direito ao benefício do BEm e ficar responsável pelo valor da remuneração integral anterior à sua celebração.

Precipuamente, os acordos de suspensão e redução salarial proporcional à jornada não poderiam ultrapassar o máximo de 60 dias para o primeiro, e 90 dias para o segundo. Entretanto, o Decreto n° 10.470, de 24 de agosto de 2020, prorrogou esses prazos, totalizando o máximo de 180 dias para duração do acordo.

Tratando-se do acordo celebrado entre empregado e empregador para redução do salário proporcionalmente à jornada de trabalho, as partes podem pactuar uma redução de 25%, 50% ou 70%. A redução deve respeitar o valor mínimo do salário-hora de trabalho; além disso, imprescindivelmente, deve ocorrer conforme os percentuais descritos anteriormente. Qualquer outra fração precisa ser realizada por meio de CCT ou ACT.

O pagamento do BEm tem objetivo de atenuar a redução do salário para o empregado. O valor pago tem como base de cálculo o valor mensal do seguro-desemprego, conforme o artigo 6° da Lei nº 14.020/2020. Isto é, quanto menor o salário, menor será a perda, pois o benefício complementará a renda do empregado.   

Dessa forma, ainda com a redução do salário, o empregado pode sofrer uma perda variando de 0% a mais de 50%, dependendo do valor. Apresenta-se, a seguir, a tabela de correlação entre os valores de salário e o percentual de redução aplicado, implicando a perda média salarial pelo empregado:

           

Tabela 1 - Correlação entre os valores de salário e o percentual de redução salarial aplicado, implicando a perda média de salário pelo empregado

SALÁRIO

PERCENTUAL DE REDUÇÃO

PERDA MÉDIA OU FINAL

R$ 1.045,00

(salário - mínimo)

25%, 50% ou 70%

0%

R$ 1.700,00

25%, 50% ou 70%

5,5%, 11% e 15%

R$ 3.000,00

25%, 50% ou 70%

10%, 20% e 27%

R$ 13.000,00

70%

60%

Fonte:  Tabela fornecida pela professora Vólia Bomfim Cassar, nos Comentários à MP 936/20, do Curso On-line sobre a Nova legislação Trabalhista em Face do Coronavírus. Acesso em: jun. 2020.

Em suma, aquele que recebe o valor do salário-mínimo, independente do percentual de redução, não terá perda da renda final, pois o menor valor do benefício é R$1045,00. Para os demais valores, haverá perda, visto que o complemento pago não atinge 100% da redução.

Cabe salientar que o BEm não é devido a todos os empregados com redução proporcional de jornada e de salário ou suspensão do contrato de trabalho. A Portaria 10.486/20 do Ministério da Economia, editada com o escopo de trazer as normas relativas ao pagamento de tal benefício, em seu art. 4°, explicita aqueles vedados à percepção do BEm. Dessa forma, o benefício não é devido àqueles que ocupam cargo ou emprego público, cargo em comissão de livre nomeação e exoneração ou que seja titular de mandato eletivo; os que celebraram o contrato de trabalho após a entrada em vigor da MP 936; como também àqueles que estejam em benefício de prestação continuada do Regime Geral de Previdência Social ou dos Regimes Próprios de Previdência Social, salvo os beneficiados por pensão por morte e auxílio acidente; àqueles que estejam em gozo do seguro-desemprego ou com bolsa de qualificação profissional previsto no artigo 2°-A da Lei n° 7.998, de 1990. A portaria ainda exclui do recebimento do BEm os empregados que não estão sujeitos a controle de jornada e aqueles cuja remuneração é variável (MINISTÉRIO DA ECONOMIA, 2020b).

Consoante Cassar (2020), o dispositivo acima mencionado “extrapola seus limites”, uma vez que “impede os aposentados de ajustarem por escrito a suspensão ou redução de salário”, tendo em vista que a Lei nº 14.020/2020 apenas impede o recebimento do BEm, e não o ajuste em si. Ainda no entendimento da autora, essa lei se aplica a todos os empregados celetistas, domésticos ou rurais, e aos temporários regidos pela Lei nº 6.019/74 (com algumas exceções), incluindo também os aprendizes e os inseridos no art. 62 da Consolidação das Leis do Trabalho, doravante CLT (BRASIL, 1943).

De acordo com o Ministério da Economia, as medidas anteriormente mencionadas evitaram cerca de 11,7 milhões de demissões, até junho de 2020 (GOVERNO DO BRASIL, 2020b). Dados do Ministério demonstram que, de abril a junho de 2020, houve “5.423.172 acordos de suspensão do contrato de trabalho; 1.706.748 para redução de 25% do salário; 2.144.886 para a redução de 50%; e de 2.256.368, de 70%” (GOVERNO DO BRASIL, 2020b). Para Bruno Bianco, Secretário Especial de Previdência e Trabalho, trata-se de “Um programa de muito êxito. Um programa que evita desemprego, que evita o pagamento do seguro[-]desemprego, portanto, um programa que é fiscalmente muito equilibrado e que tem surtido o resultado que nós estamos esperando” (GOVERNO DO BRASIL, 2020b).

As medidas propostas pelo Governo Federal aos empregados e empregadores auxiliaram e possibilitaram a manutenção dos contratos trabalhistas em curso, conforme preceituam os princípios da continuidade da relação de emprego, da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida.

Sobre os autores
Gabriela Ferreira Dornas de Andrade

Graduada em Direito pela Universidade Iguaçu – Campus V e Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Uniftec.

Marlene Soares Freire Germano

Mestre em educação, especialista em Planejamento e Educação, Bioética e Dignidade Humana. Professora da Universidade Iguaçu/CampusV.

Maria Carolina França Lima

Advogada trabalhista. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho. Pós-graduada em Direito e Processo Civil.

Marcelo Lannes Santucci

Advogado; Especialista em Direito e Processo Civil, Coordenador do ESAJUR/NPJ-UNIG, Prof. de Prática Jurídica; Direito do Trabalho; e Deontologia, na Universidade Iguaçu-Campus V.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Gabriela Ferreira Dornas; GERMANO, Marlene Soares Freire et al. Redutibilidade salarial no período de pandemia da covid-19: Análise da Lei n° 14.020/20. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6537, 25 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90583. Acesso em: 2 nov. 2024.

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