Previsões legais da redução salarial
A alteração contratual, de forma a reduzir os salários e/ou a jornada de trabalho, encontra amparo na legislação pátria, bem como na jurisprudência e em princípios adotados pela CRFB/1988. Contudo, não há unanimidade quando se trata da possibilidade de inobservância de preceitos fundamentais garantidos pela Carta Magna, como o da proteção ao trabalhador e o da autonomia sindical. O Estado, como garantidor do cumprimento e fiscalização desses direitos, deve atuar de forma eficaz, respeitando o disposto no texto constitucional.
A redução salarial encontra óbices nos princípios norteadores do Direito do Trabalho, como o da proteção ao trabalhador e no pacta sunt servanda, uma vez que qualquer modificação prejudicial ao trabalhador é nula de pleno direito, conforme disciplina o artigo 468 da CLT (BRASIL, 1943). Constatou-se a impossibilidade de alteração do salário do empregado inclui tanto o montante quanto a forma do pagamento. Contudo, como já explicitado, a irredutibilidade salarial não é absoluta. A CRFB/1988 permite que ocorra a redução de salário mediante acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho (BRASIL, 1988, artigo 7°, inciso VI). O comando constitucional, além de trazer uma proteção ao trabalhador, também visa a resguardar o empregador e a saúde da empresa e, consequentemente, a fazer manutenção dos empregos, reduzindo o índice de desemprego e melhorando a economia.
Anterior à CRFB/1988, a CLT, em seu artigo 503, preconizava a possibilidade de redução do salário do empregado, de forma independente de ACT/CCT, desde que demonstrado caso de força maior ou prejuízos ao empregador. Tal dispositivo permitia a redução dos salários dos empregados não superior a 25% e devendo respeitar o salário-mínimo local (BRASIL, 1943, artigo 503). Em consonância com a CLT, a, então vigente, Lei nº 4.923/1965, instituiu o Cadastro Permanente das Admissões e Dispensas de Empregados e estabeleceu medidas contra o desemprego, ratificando a possibilidade da redução do salário do empregado.
A referida lei autorizava que, em situações excepcionais, o empregador atingido poderia, mediante acordo prévio com o sindicato representativo de seus empregados, reduzir o salário, bem como a jornada normal de trabalho do(s) funcionário(s), desde que a redução não ultrapassasse o percentual de 25% do salário contratual e não excedente a três meses, prorrogáveis por igual período (BRASIL, 1965, artigo 2°). Entretanto, para a efetiva redução, a lei condicionava o acordo à homologação da Justiça do Trabalho e dava competência à sentença normativa para realizar a redução, caso não houvesse acordo.
A CRFB/1988 recepcionou, em parte, a Lei nº 4.923/1965. Para autores como Alice Monteiro de Barros (2005, p.769), Mauricio Godinho Delgado (2002, p.733) e Amauri Mascaro Nascimento (2005, p.810), a recepção apenas ocorreu em relação à motivação da redução do salário, e não no que diz respeito à competência da sentença normativa para tal redução. Dessa forma, as regras contidas no artigo 503 da CLT e no artigo 2° da Lei nº 4.923/1965 encontram-se superadas, total ou parcialmente, pela CRFB/1988, pois não preveem a intervenção do sindicato.
Ainda na legislação esparsa, cabe salientar a Lei nº 11.101/2005, conhecida como Lei de recuperação judicial, extrajudicial e falência. O artigo 50, em seu inciso VIII, também admite a redução salarial, a compensação de horários e a redução da jornada de trabalho como alternativas ao empregador para manutenção da atividade empresarial. O dispositivo supracitado, à luz da CRFB/1988, condiciona a realização desse direito ao ACT ou à CCT.
No âmbito do Direito do Trabalho, flexibilizar regras primordiais, impostas por leis de ordem pública e imperativas, significa permitir às partes a alteração in pejus de direitos fundamentais trabalhistas, com base em princípios como o da continuidade da relação de emprego e da continuidade da empresa, da preservação da empresa ou da função social da empresa. Para tanto, é importante a observância da atuação de boa-fé daquele que pretende se utilizar dessa flexibilização. Para Cassar (2018, p.38), aquele que utilizar a flexibilização por meio de ACT ou CCT para reduzir os salários com objetivo de manter ou aumentar os lucros, implicando a inobservância dos direitos trabalhistas, estaria abusando do direito previsto pela CRFB/1988 em seu artigo 7°, XIII, e violando o princípio da proteção ao trabalhador, disciplinado pela referida lei no caput do mesmo dispositivo.
A fim de adequar a legislação às novas relações trabalhistas, a Lei nº 13.467/2017, tal qual a Lei nº 14.020/2020, mudou, de forma inovadora, o cenário trabalhista, pois garantiu às convenções, aos acordos coletivos e aos ajustes individuais o poder de afastar inúmeras vantagens trabalhistas. A Reforma Trabalhista, instrumentalizada pela referida Lei nº 13.467/2017, representou uma significativa mudança na CLT. Ela não apenas autorizou que o empregador realizasse dispensas plúrimas e coletivas sem a intervenção sindical, como também trouxe mais liberdade negocial aos sindicatos, corroborando com o artigo 611-A da CLT, cuja redação garante prevalência sobre a Lei.
Como demonstrado, para o entendimento de Cassar (2020), a Lei nº 4.923/1965 sofreu uma derrogação, permanecendo o caput do artigo 2°, o que autoriza a redução salarial em razão da manutenção, saúde e continuidade da empresa, desde que ocorra por meio de ACT ou de CCT, em situações de grave crise financeira ou econômica, considerando incluída a força maior. Da mesma forma, o artigo 611-A, parágrafo 3°, da CLT permite a redução do salário e/ou da correspondente jornada pelo tempo necessário para o reestabelecimento da situação financeira e econômica da empresa e no percentual acordado entre as partes (BRASIL, 1943). Uma vez que a CRFB/1988 ampara os sindicatos a realizarem convênios coletivos, no percentual que desejarem, cada categoria profissional pode escolher livremente quais parâmetros devem ser observados, contanto que o acordo ocorra para defender a permanência da empresa e, consequentemente, a manutenção dos empregos.
Com a nova redação trazida pela Reforma Trabalhista, o artigo 58-A da CLT admite a redução salarial em percentual superior a 25%, diferentemente do previsto pela Lei nº 4.923/1965. Sendo assim, o parágrafo 2° desse artigo contempla qualquer redução de jornada, sob condição de não ultrapassar 26 ou 30 horas semanais e de que ela se dê por meio de norma coletiva. Consoante Nascimento (1999, p.620), “a redução salarial terá as dimensões resultantes da negociação coletiva”.
Com a nova redação trazida pela Reforma Trabalhista, o artigo 58-A da CLT admite a redução salarial em percentual superior a 25%, diferentemente do previsto pela Lei nº 4.923/1965. Sendo assim, o parágrafo 2° desse artigo contempla qualquer redução de jornada, sob condição de não ultrapassar 26 ou 30 horas semanais e de que ela se dê por meio de norma coletiva. Consoante Nascimento (1999, p.620), “a redução salarial terá as dimensões resultantes da negociação coletiva”.
Por outro lado, a Lei nº 13.189/2015, que criou o Programa de Proteção ao Emprego, hoje denominado “Programa Seguro-Emprego”, autorizava a redução de 30% do salário do empregado proporcionalmente à jornada. Com a mesma motivação, tal alternativa poderia ser utilizada em “momentos de comprovada crise decorrente da retração econômica, mediante acordo coletivo e adesão ao programa por prazo determinado” (CASSAR, 2020), devendo sempre respeitar o valor do salário-mínimo e não superar 24 meses. Contudo, embora já houvesse previsão legal, tal benefício teve eficácia apenas até o ano de 2018, não estando mais em vigor.
Objetivando o equilíbrio e a segurança jurídica entre empregado e empregador, a CLT, em contrapartida, prevê que quando se tratar de redução salarial e/ou de jornada de trabalho, o empregado estará protegido contra a despedida imotivada durante o prazo de vigência do instrumento normativo. Tal disposição encontra-se no parágrafo 3° do artigo 611-A da CLT. Com isso, o legislador atua de maneira a evitar que ocorra a alteração do salário e/ou da jornada sem que o empregado tenha algum benefício, ainda que esta se dê com a intervenção sindical.
Juristas como Arnaldo Süssekind et al. (2005) defendem que há quatro principais interpretações em relação à flexibilização salarial. Primeiramente, no sentido de que a redução deve ocorrer com base nos parâmetros estabelecidos pela Lei nº 4.923/65, exceto quanto a homologação pela Justiça do Trabalho, pois, neste caso, impera o comando constitucional previsto no inciso VI, do artigo 7° da CRFB/1988. Por outro lado, há que a redução do salário poderia ser realizada tanto para os casos previstos pelo artigo 503 da CLT – em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados – quanto nas hipóteses prevista pela Lei nº 4.923/65, sendo indispensável a participação sindical em todos os casos. A terceira interpretação fundamenta que a redução não pode ter limites impostos por Lei, mas por critérios estabelecidos na própria norma coletiva, desde que motivada pela manutenção e existência da atividade empresarial. Por fim, há a delegação plena de todos os critérios da redução salarial à negociação coletiva, incluindo sua motivação, não sendo necessária a comprovação de prejuízos (SÜSSEKIND et al., 2005 apud CASSAR, 2020).
Não obstante, o tema é bastante debatido perante os Tribunais. Predominantemente, os julgados são no sentido de negar a validade à redução do salário realizada exclusivamente entre empregado e empregador:
“REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO. REDUÇÃO SALARIAL. ALTERAÇÃO CONTRATUAL LESIVA. INVALIDADE. O artigo 7°, VI, da Constituição Federal garante ao trabalhador a irredutibilidade salarial, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo. O inciso XIII do aludido dispositivo constitucional fixou a “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. O artigo 468 da CLT dispõe que só é lícita a alteração das condições contratuais por mútuo consentimento, e ainda assim se não resultar, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado. Da leitura desses dispositivos, extrai-se que a redução da jornada de trabalho é lícita quando autorizada por norma coletiva e se não implicar diminuição do salário do empregado, hipótese que não se verifica no caso. Recurso de revista de que não se conhece.” (TST – RR: 300420125040026, Relator: Cláudio Mascarenhas Brandão, Data de Julgamento: 15/03/2017, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/03/2017, grifos originais).
No entanto, há raras decisões no sentido de ratificar a redução, quando esta é requerida diretamente pelo próprio empregado:“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. DIFERENÇA SALARIAL. REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO A PEDIDO DO EMPREGADO. O Tribunal a quo, analisando o conjunto fático-probatório existente nos autos, entendeu que ficou comprovado que a redução da jornada e a diminuição proporcional do salário aconteceram por interesse pessoal da empregada em virtude de seu marido ficar enfermo e não por uma suposta necessidade de redução de custas do Réu, como alegado no recurso de revista denegado. Incidência da Súmula 126 do TST. Agravo de instrumento não provido.” (TST – AIRR: 5072020115040751 507-20.2011.5.04.0751, Relator: Alexandre de Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 25/09/2013, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/09/2013).
Com a pandemia da COVID-19, a discussão sobre a legalidade e constitucionalidade da matéria popularizou-se. A MP 927/2020 – com vigência encerrada – priorizava os acordos individuais sobre os coletivos. Posteriormente, a MP 936/2020, convertida na Lei nº 14.020/2020, trouxe a previsão de redução dos salários em três patamares: 25%, 50% ou 70%, proporcionalmente à jornada de trabalho, sem a atuação dos sindicatos (BRASIL, 2020e). As medidas inovadoras propostas pelo Governo Federal acirraram, ainda mais, o debate, gerando insegurança jurídica. A flexibilização trazida pelas medidas gerou questionamentos quanto à sua constitucionalidade, como será demonstrado sequencialmente.