Diante de um contexto de pós segunda guerra mundial e dos números de órfãos desse período, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH/48) concedeu uma tutela específica para a criança e adolescente. Assim, o art. XXV, em seu item 2º, disciplinou que a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social (ONU, 1948).
Outro importante documento normativo foi a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, que, entre outros princípios estabelece que:
Princípio 2º: A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidade e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta, sobretudo, os melhores interesses da criança. (ONU, 1959).
No âmbito normativo interno, a Constituição Federal da República Brasileira 1988 (CFRB/88) foi um marco no cenário nacional, colocou a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado brasileiro, elencando de forma veemente os direitos e garantias fundamentais de todo indivíduo, seja ele criança, adolescente, jovem, adulto, idoso, deficiente. A partir dela a criança e ao adolescente passaram a ser vistos como sujeitos de direitos, razão pela qual iniciou-se uma nova fase na proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes, com uma nova política de atendimento e garantia, baseada no Princípio da Proteção Integral.
Essa nova política de atendimento rompeu com os antigos preceitos e convocou a participação de todos na defesa dos direitos humanos fundamentais de toda criança e adolescente, com o objetivo de proteger a criança de forma integral. Nesse sentido a Constituição dispõe, em seu art. 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o cumprimento dos seus diretos fundamentais e o respeito a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Assim, em consonância com a Constituição e com os Documentos Internacionais, a legislação especial que tutela os direitos infanto-juvenis, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, prevê a articulação de todo um sistema legal de proteção jurídica que atua tanto na prevenção da violação de direitos, quanto na responsabilização, seja ela criminal ou administrativa, dos responsáveis pela conduta violadora. Essa nova política se faz por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais.
Com isso temos a atuação da família, que deve atuar como primeiro ente cumpridor dos deveres que lhes são atribuídos, ante o seu poder familiar, temos a atuação da comunidade e da sociedade através dos Conselhos Municipais e Conselho Tutelar que atua na comissão de frente na defesa dos direitos infanto-juvenis, o Ministério Público como agente fiscalizador e o Poder Judiciário que também atua buscando zelar pelo melhor interesse da criança e do adolescente.
Ainda que notórios os avanços normativos, a realidade do adolescente em regime de internação ainda reflete as diferenças estruturais da sociedade brasileira. Assim, a falta de uma efetiva política pública direcionada ao processo de ressocialização do adolescente, além de diminuir a possibilidade de reinserção social deste, muitas vezes faz com que o poder público ao invés de concretizar a proteção do interno seja um agente violador das garantias constitucionais.
Ademais, a proteção à criança e adolescente não se deve pautar apenas no plano da integridade física. Conforme o art. 17, estes possuem o direito ao respeito que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Tal garantia fundamental é oponível ao Família, Estado e Sociedade, independentemente da situação do menor, uma vez que, o art. 18, estabelece que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Assim, diante da situação de cumprimento de medida socioeducativa em regime de internação, há uma ampliação do dever do Estado para a efetivação de tais garantias, uma vez que, o menor deixa o convívio familiar ficando ainda sobre a tutela do estado. Cumpre ressaltar que conforme o art. 103, considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Respaldado na isonomia em seu sentido formal, o legislador reconhece que art. 104, são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos.
Todavia, o processo de criação de instituições específicas para as abrigar os adolescentes em conflito com a lei não foi linear. Como as demais garantias fundamentais, é fruto de intensos movimentos e articulações sociais. Analisando tal processo histórico, Silva (2014) - (SILVA, 2014, p. 62-63)? descreve que:
Os debates em torno da nova Constituição caracterizaram-se como “espaços” de interlocução entre a sociedade civil e o Estado. Destacamos, no que tange aos direitos das crianças e dos adolescentes, a parceria entre algumas organizações civis - Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, Pastoral do Menor, Fórum Nacional Permanente de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA) – e o Estado, representado pelo Fórum Nacional de Dirigentes vernamentais de Entidades Executoras da Política de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (FONACRIAD), associação de dirigentes das FEBEMs, e a Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança, composta pelas prefeituras de vários municípios. (SILVA, 2014, p. 62-63).
Ademais, o já mencionado art. 227 da CFRB/88 estabelece que o Estado deve garantir condições adequadas para o cumprimento da medida socioeducativa que atenda, para além das garantias do devido processo legal, a tutela específica para o menor. Assim, estabelece que deve haver uma revisão continua na medida afim de avaliar o retorno do jovem ao dispor que:
IV. Garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;) (BRASIL, 1988).
Essa dinâmica participativa família-sociedade-estado se materializou por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente que, em consonância com Constituição Federal, assevera que as políticas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-ão através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (BRASIL, 1990). “ECA, 1990?”
O legislador reconhece que, para maior efetividade dos objetivos traçados em prol da garantia dos direitos da criança e do adolescente, é imprescindível que haja um sistema integrado de ações. Nesse sentido, a Constituição adotou um modelo de descentralização política administrativa que distribui o poder de cima para baixo: União, Estados e Municípios, conferindo maior efetividade na proteção aos direitos das Crianças e adolescentes.
Assim, o Estatuto previu em seu art. 88, inciso II a criação de Conselhos municipais, estaduais, e nacional dos direitos da criança e do adolescente, como órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais
Os Conselhos de Direito são órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, há prioridade na proteção integral aos direitos infanto-juvenis. Os conselhos formulam e acompanham a execução das políticas públicas de atendimento as crianças e adolescentes e materializam o comando constitucional de maior participação da sociedade nas políticas públicas, e fazem parte da política de atendimento prevista a partir do art. 86 do Estatuto, deliberando políticas de proteção integral e controlando as suas diversas ações.
Os conselhos também fiscalizam o cumprimento da legislação dos direitos da criança e do adolescente. A função de membro do conselho nacional e dos conselhos estaduais e municipais dos direitos da criança e do adolescente é considerada de interesse público relevante, porém não remunerada.
Diante disto, a norma infraconstitucional deve criar mecanismos de tutela específica ao adolescente. Tais medidas devem levar em considerações fatores como a faixa etária, gênero e, até mesmo, questões da adaptação ao jovem ao local. O objetivo é minimizar as diferenças da vida em internação daquela em liberdade, uma vez que, a medida protetiva acima de tudo deve ser dotada de uma função educativa e ressocializadora.
O Conanda é o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Criado em 1991 pela Lei n° 8.242, é um órgão Federal com atuação a nível nacional que integra o conjunto de atribuições da Presidência da República. O sistema de garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de Promoção, Defesa e Controle para efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal (Art. 1° da Res. 113 – Conanda).
Nos termos da Resolução n° 113, compete ao Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente promover, defender e controlar a efetivação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e difusos, em sua integralidade, em favor de todas as crianças e adolescentes, de modo que sejam reconhecidos e respeitados como sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento; colocando-os a salvo de ameaças e violações a quaisquer de seus direitos, além de garantir a apuração e reparação dessas ameaças e violações.
Ainda levando em consideração as distinções etárias, aos menores de 12 anos, o ECA/90, em seu art. 98, destaca a estes as Medidas socioeducativas em razão de fatos ocorridos por suas condutas. Especificamente, o art. 101, estabelece como tais medidas:
I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; (...) IV - inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - acolhimento institucional; VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar; IX - colocação em família substituta. (BRASIL, 1990).
A intenção do legislador é proteger, principalmente, o pleno desenvolvimento da criança. No que tange aos maiores de 12 anos, o legislador estabeleceu o cumprimento das medidas socioeducativas. Assim, o art. 112 estabelece que:
Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.
§ 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.
§ 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições. (BRASIL, 1990).
Para além das garantias acima, quando do cumprimento da medida socioeducativa, cabe ao Estado a observação do princípio do devido processo legal, ou seja, são garantidos ao menor direitos fundamentais como legitima defesa, produção de prova, legalidade, defesa técnica entre outros. Tal como, a CFRB/88, ao estabelecer as garantias fundamentais dispostas no art. 5º, dispõe no inciso XLVIII que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado.
Ademais, o art. 18 estabelece que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Logo, as instituições de cumprimento de medidas socioeducativas devem possuir recursos físicos e humanos que garantam a integridade física e psíquica e os demais direitos e garantias fundamentais estabelecidos no art. 18-A:
A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão;
II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que: a) humilhe; ou b) ameace gravemente; ou c) ridicularize. (BRASIL, 1990).
Todavia, diante do ato infracional o Estado deve exercer sua função de tutela sobre o adolescente e aplicar uma medida corresponde a sua ação. A ideia central é que neste período haja uma intervenção direta no cotidiano do adolescente com a finalidade de (re)educar este para a vida em sociedade. Assim, o ECA/90, art. 121 estabelece que a internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público; II - peticionar diretamente a qualquer autoridade; III - avistar-se reservadamente com seu defensor; IV - ser informado de sua situação processual, sempre que solicitada; V - ser tratado com respeito e dignidade; VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável; VII - receber visitas, ao menos, semanalmente; VIII - corresponder-se com seus familiares e amigos; IX - ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal; X - habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade; XI - receber escolarização e profissionalização; XII - realizar atividades culturais, esportivas e de lazer: XIII - ter acesso aos meios de comunicação social; XIV - receber assistência religiosa, segundo a sua crença, e desde que assim o deseje; XV - manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local seguro para guardá-los, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da entidade; XVI - receber, quando de sua desinternação, os documentos pessoais indispensáveis à vida em sociedade. § 1º Em nenhum caso haverá incomunicabilidade. (BRASIL, 1990).
As garantias acimas expostas além de serem fundamentais para a tutela da dignidade do adolescente estipula ao legislador os limites do poder punitivo do Estado e reafirma a função de tal medida ao estabelecer o procedimento técnico específico para a aplicação da medida socioeducativa. Assim, o legislador dispõe que:
§ 1º Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.
§ 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.
§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.
§ 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial, ouvido o Ministério Público.
§ 7o A determinação judicial mencionada no § 1o poderá ser revista a qualquer tempo pela autoridade judiciária. (BRASIL, 1990).
Ainda assim, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Brasil há mais de 22 mil adolescentes em situação de cumprimento de medida socioeducativas internados em uma das 461 unidades de internação do país. Todavia, destes, 3.921 são internos provisórios, ou seja 17% do total tiveram a liberdade privada sem uma sentença judicial definitivos (CNJ, 2021).
Ainda conforme o CNJ (2021), os números acima não levam em consideração outros tipos de medidas socioeducativas. Assim, a realidade do modelo socioeducativo, no plano fático, segue o modelo do punitivo centrado no encarceramento. Logo, reproduz questões e problemáticas estruturais do modelo carcerário brasileiro e desconsidera o vetor essencial do ECA/90 que é a tutela da dignidade humana da criança e adolescente.
Diante do exposto, tem-se que a internação deve ser compreendida como a mais rigorosas das medidas adotadas em face do adolescente infrator. Portanto, para que tal medida seja aplicada deve-se seguir os ritos de um devido processo legal e, principalmente, em casos específicos. Assim, o ECA/90, em seu art. 122 dispõe que:
A medida de internação só poderá ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. (BRASIL, 1990)
Neste sentido, cabe ao legislador infraconstitucional criar as condições necessárias para que a medida socioeducativa tenha uma função educativa a partir de um caráter ressocializador. Logo, cabe ao Estado criar políticas públicas específicas a adolescente em regime de internação. Tais ações devem ser preparatórias para a reinserção social e, portanto, priorizar aspectos que viabilizem a educação, saúde, lazer e, até mesmo, preparatórias para o mercado de trabalho.
Traçando um paralelo com a obra Crime e perdão: a história de Cyntoia Brown, 2020, do diretor Daniel Birman é possível verificar semelhanças entre os modelos normativos e punitivos. Ainda que o documentário centralize parte do enredo na vida pessoal da personagem, inúmeros elementos podem ser verificados que traçam um paralelo entre dois sistemas penais que ainda centralizam as marcas de um direito penal do inimigo.
Lembra Jakobs (2009, p. 111) que inimigo da sociedade são aqueles que poderiam ser combatidos já os mais prematuros sinais de perigo, embora isso possa não ser oportuno no caso concreto, deve-se contrapor aqui uma definição do autor como cidadão.
Em 2004, Cyntoia Brown, uma garota de dezesseis anos do Tennessee, foi condenada à prisão perpétua. Ela foi presa depois de atirar (alegando ser legítima defesa) num corretor de imóveis e cafetão, vale ressaltar, de 43 anos chamado Johnny Allen, em Nashville. Allen abusou e prostituiu Cyntoia.
Se o governador Bill Haslam não tivesse concedido sua clemência, em agosto de 2019, Cyntoia só seria elegível para liberdade condicional cinquenta e um anos depois, aos sessenta e nove anos. Ela atribui sua libertação antecipada à campanha de mídia social #FreeCyntoia, que se tornou viral em 2017.
A campanha alcançou celebridades como Kim Kardashian e Rihanna, que se mobilizaram para contestar sua prisão. Seu rosto e nome tornaram-se símbolos de protesto contra o misogynoir (racismo dirigido contra as mulheres negras) do sistema prisional americano.
O documentário foi escrito durante os quinze anos de encarceramento de Cyntoia Brown, com a ajuda da autora sem fins lucrativos Bethany Mauger. A história de sua infância, como ela conta aqui, é a de crescer dentro e fora de instituições juvenis - aos treze anos, ela “viu o interior de uma cela de detenção juvenil e até passou um mês em uma instalação psiquiátrica. Quando adolescente, ela foi traficada como escrava sexual por um namorado e se viu pega em uma teia de drogas e atividades criminosas. As circunstâncias de sua educação ressurgem ao longo do livro.
As dificuldades traumáticas que ela experimentou desde a infância são reveladas de forma evocativa. “Mais do que tudo”, ela escreve, “eu queria pertencer. Eu queria me sentar com um grupo de amigos e sentir que fui aceita por quem eu era, que não precisava tentar me encaixar”.
Na sua forma mais forte, o livro demonstra que foi um compromisso com a justiça e o perdão que permitiu a Cyntoia subsistir e até florescer atrás das grades: enquanto estava na prisão, ela se casou e recebeu dois diplomas, em Artes Liberais e Estudos Profissionais, da Universidade Lipscomb. O que é mais surpreendente e importante sobre as memórias de Cyntoia, no entanto, é sua capacidade de falar a um público mais amplo sobre os mecanismos e a busca de justiça nos Estados Unidos.
Por exemplo, o fato de que até menores acusados de homicídio têm de esperar 51 anos para que a liberdade condicional seja considerada parece extraordinariamente longo ou, até mesmo a prisão pérpetua. Sabe-se que Brown está fazendo campanha para que isso mude, mas o documentário não oferece comentários sobre a lei do Tennessee, nem de Brown, de sua equipe jurídica, de especialistas do sistema penal ou de qualquer outra pessoa envolvida.
A valiosa percepção e compreensão de Brown se limitam à sua própria declaração durante a audiência de clemência, mas isso tinha seu próprio propósito: fazer com que sua sentença fosse comutada.
Birman poderia ter usado o documentário para dar um passo adiante e lançar luz sobre questões mais amplas e sistemáticas e injustiças. Em vez disso, esse nos ofereceu um documentário com as sensibilidades de 10 anos atrás, uma história sem estrutura, reflexão ou comentário.
Não é apenas um conto tingido de rosa de triunfo sobre a adversidade, mas um lembrete de que os jovens continuam a receber sentenças excessivamente longas. Esse expõe as falhas das negociações do sistema de justiça criminal com menores, traçando o infortúnio de Cyntoia de volta a uma série de erros hediondos.
Antes de o caso de Brown ser transferido do tribunal de menores, seu advogado na época disse: “Meu trabalho é mostrar ao juiz que vale a pena salvar Cyntoia”. O trabalho dessa mulher é provar a um juiz que uma garota de 16 anos, forçada a trabalhar com sexo, vale uma segunda chance, pois fora vítima de predadores sexuais e não prostituta.
Guardando o final singular e atípico que consolidou um processo de ressocialização, destaca-se a minutagem 14´15´´ em que é dado foco no processo penal acusatório em que a produção de provas é colocada sem que essa de fato consiga produzir uma resposta contrária ao que posto durante a marcha processual. Em última análise, faz pouco para elucidar os contextos sociais, raciais ou políticos mais amplos que levaram à sua condenação ou sentença comutada.
Na verdade, o sistema punitivo deixa lacunas suficientes para, com alguma reflexão, ser inteiramente questionado.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Programa Justiça ao Jovem. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/programa-justica-ao-jovem. Acesso em: 19 mai. 2021.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição Federal da República Brasileira de 1988. In: VADE Mecum. São Paulo: Saraiva, 2021.
BRASIL. Decreto-lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e Adolescente. In: VADE Mecum. São Paulo: Saraiva: 2021.
CRIME e perdão: a história de Cyntoia Brown. Direção: Daniel H. Birman. Youtube. (100). 2020. Color. Disponível em: https:// https://www.youtube.com/watch?v=VDmpCY707P4. Acesso em: 16 mai. 2021
CLEMÊNCIA: a história de Cyntoia Brown. Direção: Daniel H. Birman. NETFLIX. 2020. Color. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81074065. Acesso em: 16 mai. 2021
JAKOBS, Gunther. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS Direitos do Homem e do Cidadão. Assembleia dos Povos de 1778. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf Acesso em: 16 mai. 2021.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Assembleia Geral de 1948. Declaração Universal dos Direitos Humanos De 1948. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 21 mai. 2021.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1069.html. Acesso em: 21 mai. 2021.
SILVA, A. S. De menor infrator ao adolescente em conflito com a lei: um estudo sobre o sistema socioeducativo. Salvador: EdUFBA. 2014.