1. Introdução
Com os tímidos resultados obtidos pela reforma do procedimento recursal editada através da L. 8950, de 13.12.1994, os processualistas foram chamados novamente a se debruçar sobre o tema, na busca de soluções viáveis à diminuição de demandas aos tribunais pátrios. O primeiro resultado desta iniciativa foi a recente edição da L. 9.756, de 17.12.98, publicada no DOU do dia seguinte.
Trata-se de lei processual que introduz novos institutos em nosso sistema recursal, além de alterar alguns procedimentos. O fim almejado é a diminuição do número exorbitante de processos que se encontram hoje abarrotando as prateleiras dos tribunais, bem como a limitação das situações de admissibilidade das impugnações. Essas, sem dúvida, as finalidade imediatas da reforma, que viriam a contribuir com a árdua tarefa de prestar uma tutela jurisdicional eficaz.
Todavia, em que pese essas nobres finalidades e a louvável intenção do legislador pátrio parece-nos, a primeira leitura, que há alguns pontos da reforma sobre os quais se desencadeará grande controvérsia, inclusive no que diz respeito à constitucionalidade de certos artigos. Por isso, resolvemos lançá-los ao debate desde logo.
Em primeiro lugar, é preciso registrar que a reforma foi, mais uma vez, tímida, diante das necessidades atuais e do que estava previsto no Anteprojeto de Lei n. 13 elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e pela Escola Nacional da Magistratura, já encaminhado ao Congresso Nacional. Referido projeto contém reformas substanciais no âmbito dos recursos que foram, inexplicavelmente, deixadas de lado, tais como a (1) generalização do efeito devolutivo aos recursos(1); (2) a limitação dos casos de cabimento dos embargos infringentes(2); (3) a faculdade ao relator para converter o agravo de instrumento em agravo retido em inexistindo perigo de dano de difícil ou incerta reparação, encaminhando os autos, então, ao juízo da causa(3). Além disso, postergou-se inovação essencial nos tempos atuais, consistente na admissão de meios eletrônicos para a prática de atos processuais, desde que atendidos os requisitos da segurança e da autenticidade(4).
Mas a reforma, mesmo que tímida, está em vigor e é sobre o texto de lei vigente que devemos debruçar nossos esforços. E, sobre ele, três aspectos merecem nossa especial atenção: (1) a criação de uma nova espécie de recurso especial/extraordinário, retido nos autos (art. 542, § 3º); (2) novas hipóteses em que o Relator está autorizado a decidir o feito sem submetê-lo ao conhecimento do Colegiado (arts. 544, §3º, e 557, §§); (3) a previsão de multa para os casos de interposição de agravo contra as decisões que negarem seguimento a recurso, quando as razões forem manifestamente inadmissíveis ou infundadas (art. 557,§2º (5)).
2. Recurso Extraordinário/Especial Retido
Segundo a nova redação do §3º do art. 542, introduzido pela lei em comento, "o recurso extraordinário, ou o recurso especial, quando interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento, cautelar, ou embargos à execução ficará retido nos autos e somente será processado se o reiterar a parte, no prazo para a interposição do recurso contra a decisão final, ou para as contra-razões". Pensamos que é no mínimo discutível a constitucionalidade de tal norma.
Primeiramente, porque estabelece verdadeira restrição ao processamento dos recursos extremos, que acarretará na sua total ineficácia em termos práticos. Ocorre que, na quase totalidade das situações concretas, o recorrente já terá perdido o interesse na reapreciação da legalidade/constitucionalidade da decisão interlocutória após o decurso do tempo necessário à prolação da sentença definitiva do processo(6).
E não se diga que isso é salutar, pois, via de regra, a solução da controvérsia interlocutória se faz necessária antes da definição da matéria de fundo. O sistema processual, com certeza, deve ser adequado à realidade forense nacional, para que se consiga diminuir o número de demandas levadas às Cortes Superiores, conferindo-lhes meios de prestar jurisdição com mais qualidade e eficácia. Isso, contudo, não pode ser feito sem atenção às cláusulas constitucionais da inafastabilidade da tutela jurisdicional, da ampla defesa e do devido processo legal.
Pela nova sistemática, a parte se verá privada, ou pelo menos desistimulada(7), de manejar os recursos constitucionalmente previstos, em flagrante prejuízo às garantias da ampla defesa e do devido processo legal. Criou-se verdadeira distinção para situações idênticas, autorizando-se, pela via legal, o não-processamento de uma hipótese de ilegalidade ou inconstitucionalidade submetida ao órgão competente do Poder Judiciário responsável pelo seu controle, com evidente ofensa ao princípio da inafastabilidade (CF art. 5º XXXV).
De outra parte, é preciso considerar que os recursos extremos, em nosso país, tem assento no Texto Maior, o que só permite a alteração/criação de hipóteses de cabimento através de emenda constitucional. No caso, a um só tempo, restringiu-se o cabimento de recursos extraordinários contra decisões interlocutórias(8) e criou-se, por lei ordinária, uma nova espécie de recurso extremo retido nos autos, que não consta do Texto Constitucional.
Para nós, a norma limita a competência dos Tribunais Superiores, estatuída no inciso III dos artigos 102 e 105 da Carta Constitucional, deixando descobertas de impugnação eventuais ilegalidades e/ou inconstitucionalidades praticadas pelas instâncias ordinárias.
Não bastasse isso, a parte final do dispositivo contém previsão que nos parece absurda. Estabelece ela uma hipótese de desistência tácita da parte em ver o seu recurso apreciado, caso não reitere tal desejo quando da interposição do recurso contra a decisão definitiva.
Maquiavélica previsão! A aquiescência tácita com a decisão deve resultar de atos inequívocos que demonstrem o desinteresse da parte em ver a matéria reapreciada. Ora, se a parte já recorreu, por certo, tem interesse em ver as suas teses recursais apreciadas, até que diga o contrário! Pois o legislador inverteu tal situação, exigindo que o recorrente confirme o interesse em recorrer, no prazo para impugnar a decisão final, ou para as contra-razões.
Isso, com certeza, veio em prejuízo aos grandes escritórios de advocacia e às procuradorias dos entes públicos, com grande volume de feitos, que terão de encontrar um mecanismo para se adequar a tal inovação.
3. Apreciação dos Recursos pelo Relator
É louvável a providência de delegar poderes ao juiz relator para apreciar o mérito das pretensões recursais. Com certeza, é providência fundamental na missão de diminuir o número de processos que se encontram à espera de julgamento nos tribunais. Além disso, a maioria dos casos permite a intervenção monocrática.
Todavia, a faculdade que deve ser muito bem utilizada, com todas as cautelas possíveis, sob pena de converter-se em instrumento de injustiças e irreparáveis prejuízos às partes. A competência para julgar recursos é dos Tribunais, pelos seus órgãos colegiados, e, portanto, a parte tem o direito de ver respeitada esta garantia, caso não concorde com o entendimento do relator.
O sistema recursal tem obedecido tal garantia ao cidadão-litigante, assegurando-lhe sempre a previsão de um recurso contra a decisão monocrática do relator, dirigido ao órgão colegiado competente para a apreciação do recurso. O atual procedimento alargou o campo de atuação do relator que, além da negativa de seguimento, agora pode prover o recurso sozinho.
3.1. Negativa de Seguimento. A Lei 9.139/95 veio à lume para dar substrato legal à prática que já se tornará corriqueira através dos Estatutos do Tribunais pátrios. Muito antes de sua edição, vários regimentos internos já admitiam a faculdade de o relator negar seguimento a recursos, sem submetê-los à apreciação da Turma. Referida lei conferiu ao relator a faculdade de negar seguimento ao recurso apenas quando "recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado, ou contrário à súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior" (art. 557, c/ redação conferida pela L. 9.139/95). Tal previsão foi mantida, acrescentando-se a possibilidade de negar seguimento ao recurso tirado contra "jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior".
Duas questões merecem nossa atenção no ponto: a definição do que seja um recurso manifestamente improcedente ou inadmissível e o que se deve ter por "jurisprudência dominante do tribunal".
Quanto à manifesta inadmissibilidade ou improcedência do recurso, é preciso levar em conta a demasiada subjetividade da norma, que, a nosso ver, merece interpretação larga por parte do magistrado. Como sustenta Nelson Nery Jr., "havendo dúvida, o relator não poderá indeferir o recurso nem julgá-lo improcedente, devendo remetê-lo ao julgamento do órgão colegiado"(9).
Temos presenciado, no cotidiano, situações de notável equívoco na interpretação de tal norma, fazendo-se dela verdadeiro obstáculo ao conhecimento de recursos corretamente manejados. Parece-nos, no ponto, que alguns parâmetros devam ser fixados para o salutar emprego do instituto, destacando-se ai a necessidade de sucessiva e contínua repetição do insucesso da tese jurídica defendida e a ponderação de argumentos novos, não considerados quando firmada a orientação em sentido contrário. O que não se pode admitir, sem dúvida, é a aplicação indiscriminada do texto, inclusive para situações novas levadas ao conhecimentos das Cortes.
Tais preocupações que aqui expomos foram perfeitamente resumidas pelo Prof. Barbosa Moreira, com as seguintes conclusões: "deve o relator examinar com cuidado especial as razões do recurso: é sempre possível que haja aí argumentos novos, não considerados quando da inclusão da tese contrária na súmula - à qual, no regime em vigor, não se reconhece eficácia vinculante (...). Preferível suportar algum peso a mais na carga de trabalho dos tribunais a contribuir para a fossilização da jurisprudência. A lei do menor esforço não é necessariamente, em todo e qualquer caso, boa conselheira"(10).
No tocante à conceituação do que seja "jurisprudência dominante do tribunal", novamente vamos nos deparar com um critério subjetivo. Jurisprudência dominante é aquela que resulta de decisões iterativas e reiteradas a favor de uma determinada tese jurídica. Por isso, deve ser afastada, desde logo, a possibilidade de aplicação do dispositivo em temas polêmicos e controvertidos, mesmo que haja uma corrente majoritária. É preciso que se pacifique o entendimento da Casa Julgadora sobre uma dada matéria, num dado sentido, retirando-se qualquer possibilidade de sucesso da tese recursal. Do contrário, a Turma tem o dever de conhecer das teses controvertidas. Deve-se atentar, também aqui, para eventuais argumentos novos ventilados pelo recorrente, não considerados nos julgados que formaram a jurisprudência dominante do tribunal.
Há, ainda, um requisito formal essencial à regularidade do ato, qual seja a expressa menção às decisões que formam o que se designará de jurisprudência dominante. Tal requisito vai ao encontro dos princípios da publicidade e da motivação das decisões judiciais, possibilitando à parte conhecer o teor de tais julgados, para futura impugnação. Deixando o relator de assegurar à parte prejudicada este direito, por certo, será nula a decisão.
Por derradeiro, a nosso ver, a autorização para que o relator negue seguimento ao recurso com base em súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal nos parece perigosa. Isso porque, não raro, ocorrem situações em que os tribunais firmam jurisprudência dominante sobre determinada matéria num sentido, que vem, posteriormente, a ser contrariada pelos pronunciamentos subsequentes das Cortes Maiores(11).
Essas preocupações, aliás, já se refletiram e foram dirimidas em pronunciamento da Corte Infraconstitucional que fez, a nosso ver, a melhor leitura do dispositivo processual:
"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO. IMPROCEDÊNCIA. INTELIGÊNCIA DO ART. 557 DO CPC. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
I - De acordo com o "novo" art. 557 do CPC, o relator pode julgar o mérito de recurso através de decisão singular devidamente fundamentada (art. 93, IX, da CF/88). Mas o recurso, tem que ser notoriamente infundado. Tem-se por manifestamente improcedente o recurso que impugna decisão judicial que está em consonância com precedentes de alguma das cortes superiores.
II - Tratando-se de decisão denegatória de recurso por manifesta improcedência, o relator deve indicar com precisão os precedentes que confirmam a tese adotada no decisum recorrido.
III - Recurso especial conhecido e provido." (STJ - 2ª Turma - REsp n. 178.885-SE - Rel. Min. Adhemar Maciel - DJ 19.10.98, p. 77 - os grifos não constam do original)
Seria salutar que tal orientação fosse seguida por nossos pretórios, para que se evitasse a ocorrência de situações de cerceamento ao direito de defesa das partes, bem como protelações desnecessárias nos feitos, decorrentes da ulterior anulação das decisões que lhe contrariam.
De outra parte, parece-nos fundamental que os magistrados integrantes das Cortes Regionais -com a nova redação do dispositivo- não pretendam exercitar competências exclusivas dos tribunais superiores, tais como a uniformização jurisprudencial sobre temas de interesse federal e o controle da legalidade/constitucionalidade das decisões. A propósito, antes da edição da reforma, o Superior Tribunal de Justiça reafirmava sua competência para dirimir questões concernentes à legislação infraconstitucional, nos seguintes termos:
"Processual Civil. Apelação e remessa oficial. Descabimento da invocação de jurisprudência iterativa não sumulada. Obrigação do conhecimento. Lei Complementar n. 35/79 (art. 90, §2º) - CPC, arts. 475, II, e 557.
1. Pela estrita viseira de iterativa jurisprudência constitui ilegalidade, revelando contrariedade ao duplo grau de jurisdição, a decisão do relator negando seguimento à remessa oficial e à apelação voluntária. Compete ao STJ, no concernente à legislação infraconstitucional, dizer da sua aplicação em âmbito nacional e não às instâncias ordinárias.
2. Multifários precedentes do STJ.
3. Recurso provido." (STJ - REsp 156.513-PB - Rel. Min. Milton Luiz Pereira - RSTJ, outubro/98, pp. 89 e seguintes - o grifo é nosso)
E, no corpo do voto, a lição do Ministro Relator, em que pese ter sido desconsiderada pela reforma, é magistral. Sustentava ele, à luz da legislação pretérita e, em especial, o art. 90, §2º, da LC 35/79, que:
"Como se vê, referido dispositivo legal se refere ao Tribunal Federal de Recursos e autorizava a seus Ministros negar seguimento a recurso que contrariasse as suas súmulas. Não dá, ele, nenhum apoio aos Juízes dos Tribunais Regionais Federais para fazer o mesmo e negar seguimento a recursos que contrariar as súmulas dos Tribunais Regionais Federais. O Tribunal Federal de Recursos era único e com jurisdição em todo o território nacional. Quando um de seus Ministros negava seguimento a um recurso por contrariar suas súmulas, sua decisão tinha eficácia em todo o Brasil. Com os Tribunais Regionais Federais a situação é diferente. Sendo vários os Tribunais, cada um tem ou pode ter súmulas diferentes ou mesmo opostas à de outro Regional. Como no caso concreto, outro Regional pode ter uma súmula em sentido oposto à Súmula n. 10 do Regional da 5ª Região e aí, nós teríamos decisões contraditórias. Num Regional, determinada lei é constitucional e noutro inconstitucional. O direito seria diferente num e noutro Tribunal. Se um Regional nega seguimento à apelação de sentença que considerou constitucional ou inconstitucional, impede seja a questão apreciada e decidida pelo Supremo Tribunal Federal que é o Tribunal competente para dar a última palavra em questões constitucionais. Com isto, estaria usurpando a competência da Excelsa Corte. O mesmo aconteceria com a matéria infraconstitucional, porque cabe ao STJ dizer o direito, no concernente à matéria legal, para todo o País e não aos Regionais. Entendo que estes não podem negar seguimento a recurso com base em suas súmulas, mesmo porque, quando o STF ou o STJ decidem em sentido diferente ao das Súmulas dos Regionais, ficam estas revogadas."
Somente respeitando-se tais parâmetros, a nosso ver, as inovações no procedimento recursal serão bem recebidas pela comunidade forense e estarão em harmonia com o sistema jurídico nacional.
3.2. Provimento ao Recurso. A principal novidade, no que diz respeito aos poderes do relator, foi a possibilidade de dar provimento ao recurso, desde logo, ao verificar que a decisão recorrida está em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior (art. 557, §1º-A). Por certo, tal providência já poderia ter sido tomada pelo legislador quando da reforma de 1994, conforme bem observado pelo mestre Athos Gusmão Carneiro(12).
Não há, sem dúvida, argumentos plausíveis para que se faça a defesa em contrário, tendo em vista a economia processual decorrente de tal providência. Entretanto, mais uma vez é imprescindível reforçar todas as preocupações recém expostas, que se aplicam inteiramente no ponto. Aliás, na espécie não há campo subjetivo para o relator incursionar, sendo sua atividade vinculada à existência de súmula nas Cortes Superiores.
Não podemos confundir a previsão com a implementação do sistema de súmulas vinculantes, instituto por alguns alguns defendido modernamente. Embora semelhantes, existem diferenças elementares entre o sistema que ora se adota e o "stare decisis" da "common law". Neste há dever funcional do juiz de seguir as decisões das Cortes Superiores; no processo brasileiro, o Relator, agora, tem a faculdade de adotar a súmula ou de submeter a questão ao colegiado, não havendo obrigatoriedade de seguir a orientação sumulada(13). Enfim, a súmula entre nós continua consubstanciando mera orientação jurisprudencial, sem qualquer força vinculativa.
Vale considerar, também, a menção positiva apenas à súmula e jurisprudência dominante das Cortes Superiores, o que veda ao relator a tomada de tal providência calcado em jurisprudência pacificada apenas no âmbito regional. Isso se coaduna com a adoção, entre nós, do princípio federativo e do conseqüente controle da uniformização jurisprudencial/legalidade/constitucionalidade das decisões pelas Cortes Superiores.
Por fim, vale referência o cabimento de agravo contra tais decisões, na forma do §1º do art. 557(14). A falta de técnica do legislador pode causar problemas de interpretação, tendo em vista que -a rigor- um parágrafo não poderia prever o cabimento de um recurso contra uma decisão prevista em parágrafo anterior, mas apenas em relação ao "caput" do artigo. Mas acreditamos que, a vista da evidente ausência de rigor na formulação do dispositivo, deve ser conferida a ele interpretação teleológica, permitindo-se o manejo do remédio tanto contra a decisão monocrática que negar seguimento ao recurso como em relação àquela que lhe der provimento.