3. A responsabilidade civil dos bancos por danos ecológicos causados por seus clientes em projetos por eles financiados
Uma das características da responsabilidade ambiental brasileira é o fato de que a mesma é solidária, o que implica dizer que concorrem todos aqueles que, de forma direta e indireta, colaboraram para com a atividade que resultou danosa. Ou seja, todos respondem, por ação ou omissão, uma vez que o legislador não limita o perfil do poluidor, estendendo-o ao invés, de tal modo que se fala em poluidor direto e poluidor indireto. Está assentado no artigo 3º, inc. IV, da Lei 6.938/81, quando da conceituação do poluidor, verbis:
Art. 3º. Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
...
IV – poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental;
A prevalência desse vínculo e das regras de solidariedade entre os empreendedores, a quem direta ou indiretamente aproveita a atividade econômica lesiva, é decorrência do sistema da responsabilidade objetiva adotada pelo legislador pátrio para reparação e indenização de danos provocados ao meio ambiente (MILARÉ, 2001, p. 435).
Isso permite à vítima a liberdade de processar todos ou apenas um poluidor, o mais solvente, por exemplo, ou aquele que mais lhe convier, para reparar-lhe o prejuízo causado. Não estará obrigado, assim, a apontar todos os responsáveis diretos ou indiretos que tenham causado os danos a serem reparados (MACHADO, 2000, p. 328). Claro está que, àquele que pagar pela integralidade do dano "caberá ação de regresso contra os outros co-responsáveis, pela via da responsabilização subjetiva, procedimento que permite discutir a parcela de responsabilidade de cada um" (MILARÉ, 2001, p. 436).
Pois bem, como se situam os bancos diante da possibilidade de co-responsabilidade por danos ambientais? A instituição que financia projetos e/ou atividades causadoras de lesão ao meio ambiente, estará a exercer atividade de cooperação ou mesmo de co-autoria, respondendo pela degradação ambiental provocada pelo responsável direto pelo empreendimento financiado, que, prima facie, provocou o dano ambiental. Como vimos alhures, essa co-responsabilidade já vem explícita na Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05, art. 2º, § 4º) e implícita na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81, art. 12), sendo evidente que esta é a tendência legislativa mais moderna: "considerar quem financia a degradação ambiental é co-responsável por ela" (SANTILLI, 2001, p. 138)
Presente a responsabilidade solidária, podem os litisconsortes ser acionados em litisconsórcio facultativo, o que significa dizer que, na processualística da ação civil pública por danos ambientais – ação própria para defesa dos interesses difusos e coletivos, instituída pela Lei 7.347/85 -, não se exige que o autor acione todos os responsáveis, ainda que o pudesse fazer (MAZZILLI, 2003, p. 140).
A solidariedade passiva é admitida em matéria de danos ambientais e danos aos consumidores, dada a comum dificuldade em delimitar os legitimados passivos. Hugo Nigro Mazzilli lista três motivos, a saber: 1) há solidariedade nas obrigações resultantes de ato ilícito (CC, art. 942); 2) os co-responsáveis, por via de regresso, poderão discutir posteriormente, entre si, distribuição mais eqüitativa da responsabilidade; 3) nas obrigações indivisíveis de vários devedores, cada um deles tem responsabilidade pela dívida toda (CC, arts. 259 e 260; CDC, arts. 7, § único e 22, § 1º) (MAZZILI, 2003, p. 308).
Fica claro que o instrumento processual Ação Civil Pública pode ser intentado não só contra o responsável direto, como também contra a instituição que o financiou, objetivando apurar a sua co-responsabilidade pelo dano ambiental (SANTILLI, 2001, p. 138). Isto é, os bancos têm responsabilidade pela concessão do crédito, respondendo solidariamente por eventual dano ambiental. A contaminação do lençol freático de veneno utilizado por agricultor que o adquiriu mediante financiamento do crédito rural para custeio de lavoura, através de um banco, torna este último responsável solidariamente pelo dano causado. O banco é partícipe da relação (MOTTA, 2000, p. 268) e esse liame de solidariedade passiva a que se vê emaranhado o agente financiador do empreendimento que degradou o meio ambiente, é que justifica o termo "poluidor indireto", por força da Lei 6.938/81, art. 3º, inciso IV (GRIZZI et al., 2003, p. 41).
Como condição de responsabilização civil por dano ambiental do banco financiador do empreendimento ou atividade degradante, parte da doutrina entende que cabe demonstrar que o financiamento foi imprescindível para que o evento danoso ocorresse, isto é, se não conseguisse o financiamento, o empreendedor não desenvolveria a atividade e, logo, não causaria danos ambientais (GRIZZI et al., 2003, p. 51).
Entendemos que há de ter uma espécie de "nexo de causalidade" entre o dinheiro injetado na atividade ou empreendimento e o dano decorrente de sua aplicação. Não poderíamos imaginar a co-responsabilidade de um banco financiador por poluição de mercúrio, causado por uma indústria química, no momento do financiamento, quando os recursos liberados pelo banco foram destinados à edificação das instalações da indústria, não sendo aportado para sua operacionalização... Não há no exemplo uma "conexão" dos fatos.
O direito ambiental no campo da responsabilidade civil não deve fazer distinção entre bancos públicos e privados, nacional ou estrangeiro. Responsabiliza-se o financiador, que aqui denominamos simplesmente banco, como sendo toda e qualquer organização de financiamento, pela reparação dos danos de forma objetiva e solidária. Essa é uma importante questão: a amplitude da responsabilidade que abrange todos os estabelecimentos financiadores (MACHADO, 2000, p. 312).
Seria isolar setores do sistema financeiro, o que é inadmissível, caso interpretássemos que apenas os bancos oficiais, por exemplo, se veriam obrigados a exigir o cumprimento da legislação ambiental no momento do financiamento a seus clientes. Uma necessária interpretação lógico-sistemática das disposições constitucionais ambientais e econômico-financeiras, além das disposições infraconstitucionais das normas ambientais apontam para a responsabilidade dos financiadores públicos e privados (GRIZZI et al., 2003, p. 44).
Outra importante questão é a duração dessa co-responsabilidade ambiental dos bancos. No caso, por exemplo, da Lei de Biossegurança, um eventual financiamento bancário sem que o financiado tenha obtido o CQB (Certificado de Qualidade em Biossegurança), os órgãos financiadores tornam-se co-responsáveis pelos eventuais danos ambientais decorrentes da atividade ilegal. O mesmo raciocínio seria financiar empreendimento ou atividade de significativo impacto ambiental sem a contra-apresentação do licenciamento ambiental, exigido por lei para sua instalação e operação. Enquanto existir a atividade/empreendimento, co-responsáveis pelos eventuais danos se fazem os bancos.
A responsabilidade limitada dos bancos só poderia ser invocada caso o mesmo der pleno cumprimento às disposições da legislação ambiental. Essa limitação diz respeito tanto no sentido quantitativo, quanto no temporal.
Para as autoras GRIZZI et al. (2003) o fato de o banco atuar injetando capital não o vincula ao empreendimento, devendo ser sua responsabilidade, por isso mesmo, limitada, isto é, circunscrita ao valor concedido e com vigência coincidente com o termo do contrato de financiamento. A tese é a de que o risco ambiental é risco financeiro diretamente propor-cional aos valores concedidos no financiamento. Reconhecem as autoras que inexiste norma jurídica expressa que determine a limitação da responsabilidade civil ambiental do poluidor, mas, por outro lado, fazem coro com os defensores da teoria do risco criado, alegando que também não há norma jurídica que sustente a teoria do risco integral da atividade, ainda que se considere o artigo 14, parágrafo 1º, da Lei 6.938/81. Para elas, a responsabilidade civil ambiental ilimitada só se consagraria caso o contrato de financiamento fosse celebrado em desacordo com os preceitos constitucionais.
Concordamos com a tese da limitação temporal da responsabilidade do financiador. Emperraríamos a geração de crédito no país caso co-obrigássemos os bancos, ad infinitum, por assim dizer, pelo projeto financiado. Somos conscientes de que os prazos de prescrição são lapsos de tempo fixados por lei que preservam a estabilidade das relações jurídicas, sem a qual não haverá certeza, paz e harmonia (CAVALIERI FILHO, 2002, p. 296).
Parece-nos lógico que a responsabilidade do financiador que cuidou em atender as exigências legais e normativas ambientais, exigíveis quando da concessão do crédito, e que observou, com a responsabilidade que lhe cabe observar, a boa e correta aplicação de seus créditos, mediante fiscalização ou auditoria ambiental, cesse no momento em que cessa o financiamento.
Paulo Afonso Leme Machado sintetiza o exposto: "Quem financia tem a obrigação de averiguar se o financiado está cumprindo a legislação ambiental, no momento do financiamento" (MACHADO, 2000, p. 312). Despiciendo dizer que a legalidade do financiamento não exime agente empreendedor ou o banco cedente do crédito da responsabilidade civil de reparar o dano ambiental eventualmente causado, porque já nos é cediço que a responsabilidade ambiental é objetiva, não se indagando sobre a licitude da atividade. A responsabilidade pela reparação não será, portanto, excluída pelo fato da existência de licença ambiental ou da observância dos limites de emissão de poluentes, bem como de outras autorizações administrativas. Está pacificada a assertiva de que não se concebe o direito adquirido de poluir, tanto que as licenças ambientais são periodicamente renovadas (MACHADO, 2000, p. 46; STEIGLEDER, 2004, p. 209).
Mas não concordamos que o custo da reparação do dano ambiental por parte do banco seja proporcional ao valor financiado. Entendemos que, em face da responsabilidade objetiva na reparação do dos danos ambientais, e respaldado pela teoria do risco integral, o financiador deve obrigar-se à reparação integral do dano, solidariamente com o poluidor direto e eventuais co-responsáveis para depois, aí sim, em sede de direito regressivo, discutir a limitação quantitativa com base no montante financiado.
Financiar atividade ou empreendimento sem a observância das prescrições legais é financiar ilegalidade, assumindo o financiador o papel de co-autor com o poluidor-cliente por todos os atos lesivos ao meio ambiente que este último praticar. Em poucas palavras: se o banco aloca recursos para atividades ambientalmente lícitas, caso haja dano ao meio ambiente durante o financiamento, responde ele integralmente pela reparação do mesmo em situação de poluidor indireto. Se essa alocação de recursos por parte do financiador é realizada sem a observância das prescrições legais, beneficiando empreendimentos/atividades não licenciadas, por exemplo, responde ele integralmente pela reparação do dano ambiental, em situação de co-autoria, sem limitação temporal, isto é, ad infinitum.
Se o poluidor direto responde ilimitadamente nos dois sentidos aqui tratados, quais sejam, quantitativo e temporal, de forma objetiva e solidária, o banco financiador de sua atividade, de seu empreendimento, que ao fazê-lo o fez sem as cautelas devidas, em nada se diferencia dele, não podendo pretender seja limitada sua responsabilidade civil pelo dano ambiental. Não o é, porque o financiador é também poluidor; porque inadequada é a atividade financiada aos normativos ambientais vigentes; porque o contrato é, perante o direito ambiental, ilegal, por desobediência ao art. 225, § 3º, da Constituição Federal (SOUZA, 2005, p. 28).
Mas no caso contrário, quando da adequação do projeto financiado às exigências ambientais, quando da observância por parte dos bancos das restrições e dos cuidados preventivos exigidos pelo arcabouço normativo para a concessão de seus créditos, quando, em suma, financiar atividade ambientalmente lícita, nessas condições, entendemos como os autores aqui mencionados – GRIZZI et al. (2003) e SOUZA (2005) – que a responsabilidade deve ser limitada temporalmente até a adimplência do contrato pelo financiado, por se entender que, ao se liquidar a dívida do financiamento, extingue-se o nexo causal entre o ato do financiador e eventual dano ambiental superveniente (SOUZA, 2005, p. 29). O nexo de causalidade, todavia, eis o nosso posicionamento, garante à natureza e a terceiros a indenização e a reparação integral do dano pelo financiador, independentemente do quantum de dinheiro injetado no projeto.
No campo processual, a legitimidade passiva dos bancos para responder a ações de reparação por danos ambientais, em solidariedade com o seu cliente tomador do crédito e causador direto do prejuízo à natureza, ainda é, como visto, objeto de discussão doutrinária, em face dos diversos ângulos com que se pode mirar a questão da responsabilidade civil ambiental. Os nossos tribunais foram poucas vezes provocados a se manifestar em relação a casos concretos de bancos no pólo passivo, como co-responsáveis, juntamente com os seus clientes poluidores diretos.
Temos conhecimento de um aresto do TRF da 1ª Região, delimitando essa legitimidade passiva, vale dizer, essa co-responsabilidade civil ambiental da instituição financeira, no caso o BNDES, em ação de reparação por dano ambiental, causado por empresa extrativista mineral em uma propriedade particular vizinha a lavra, que resultou em "crateras (dolinas) e morte de animais por contaminação da água". Eis a parte que nos interessa do aresto em tela:
[...]6. Quanto ao BNDES, o simples fato de ser ele a instituição financeira incumbida de financiar a atividade mineradora da CMM, em princípio, por si só, não o legitima para figurar no pólo passivo da demanda. Todavia, se vier a ficar comprovado, no curso da ação ordinária, que a referida empresa pública, mesmo ciente da ocorrência dos danos ambientais que se mostram sérios e graves e que refletem significativa degradação do meio ambiente, ou ciente do início da ocorrência deles, houver liberado parcelas intermediárias ou finais dos recursos para o projeto de exploração minerária da dita empresa, aí, sim, caber-lhe-á responder solidariamente com as demais entidades-rés pelos danos ocasionados no imóvel de que se trata, por força da norma inscrita no art. 225, caput, § 1º, e respectivos incisos, notadamente os incisos IV, V e VII, da Lei Maior. [Agravo de Instrumento 200201000363291/MG. Relator: Des. Fed. Fagundes de Deus. DJU 19.dez.2003 – seção II].
Como se vê, o entendimento acordado é de que para legitimação passiva do banco, faz-se mister comprovar que a liberação das parcelas dos recursos financeiros tenha ocorrido com o conhecimento – e a aceitação dano – por parte do financiador. Salvo melhor juízo, parece-nos que estamos aqui incorrendo perigosamente no campo da culpabilidade em matéria ambiental, já afastada pelo direito ambiental brasileiro.
Oportuno reproduzir aqui as palavras do professor Álvaro Luiz Valery Mirra:
Limitar a reparação dos danos ambientais em virtude da menor culpa ou da ausência de culpa do degradador, significaria, no final das contas, reinserir na responsabilidade objetiva a discussão da culpa, agora não mais para a definição da responsabilidade em si mesma, mas para a definição do montante reparatório, o que a Constituição de 1988 e a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente pretenderam precisamente afastar (MIRRA, 2003, p. 75)
Um outro registro jurisprudencial que não diz respeito diretamente à responsabilidade civil ambiental, mas que merece ser trazida à colação, refere-se a uma sentença prolatada nos autos de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado do Mato Grosso, tendo como réu o Banco do Brasil S.A., com trâmite na Vara Especializada do Meio Ambiente, uma das poucas varas especializadas do país, na Comarca de Cuiabá. O Parquet Estadual objetivava – e logrou no 1º grau – compelir aquela Instituição Financeira a se abster de conceder, dentro da Unidade Federativa do Mato Grosso, qualquer financiamento agropecuário em favor de proprietários de imóveis rurais com área igual ou superior a 100 (cem) hectares, sem que os mesmos apresentassem a comprovação de cumprimento das exigências contidas no artigo 44 da Lei 4.771/65 (Código Florestal) ou do artigo 99 da Lei 8.171/91 (Política Agrícola).
As exigências dizem respeito à recomposição da reserva florestal mediante plantio, regeneração natural ou compensação ambiental, em cumprimento aos percentuais estabelecidos no artigo 16 da Lei 4.771/65, a título de Reserva Legal, e sua compulsória averbação à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente.
O Juízo a quo reconheceu razão à ré – Banco do Brasil S.A. – na alegação de que cabe ao Poder Público atuar na defesa do meio ambiente e que ao IBAMA compete a fiscalização da flora. Mas – entendeu o Juízo -, ainda que o banco seja pessoa jurídica de direito privado, exerce atividade de interesse público e que, portanto, deve atuar em conformidade com os propósitos e objetivos que constituem a política ambiental do país (Processo 008/99 – Cuiabá-MT – J. 10.05.2000 – Juiz de Direito José Zuquim Nogueira).