Sumário: Introdução; 1 Breve histórico: lineamentos sobre os escritos de João Marcello de Araújo Júnior; 2 Nova Defesa Social; 2.1 Movimentos de Lei e Ordem; 2.2 Política Criminal Alternativa; 3 Conceito de Política Criminal; 4 As relações entre a Criminologia e a Política Criminal; 5 Criminologia Interacionista: questionamentos sobre a rotulação social; 6 Vitimologia; Considerações finais; Referências.
Resumo: O presente artigo visa a demonstrar a importância da interdisciplinaridade no estudo do Direito Penal. Ressalta que esse estudo deve tomar por respaldo não só a dogmática penal, mas a Política Criminal, a Criminologia e a Vitimologia, áreas do saber jurídico que propiciam a abertura do debate à realidade social.
Palavras-chave: Política Criminal. Criminologia. Vitimologia.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo demonstrar as posições teóricas sobre Política Criminal, Criminologia e Vitimologia contemporâneas e os seus reflexos no Direito Penal. Além disso, visa a refletir sobre a questão da interdisciplinaridade entre estas áreas de conhecimento, enfoque hoje proclamado por grande parte dos penalistas e criminólogos, ao analisar criticamente o sistema de Justiça penal.
Outro aspecto a ser abordado com base na Política Criminal, Criminologia e Vitimologia é o questionamento a respeito da teoria positivista, principalmente, por não questionar as disposições legais, pois seus seguidores admitem que estas representam a vontade do povo, portanto, os interesses gerais. Os positivistas, de acordo com Antonio García-Pablos de Molina [01], entendem que as leis só consistem num problema de interpretação reservado ao juiz, de subsunção do caso ao pressuposto fático da norma. Desta forma, admite-se que o dogma da igualdade perante a lei priva de caráter conflitivo o referido processo de aplicação dos mandamentos legais. Assim, a abstração jurídica construída por alguns penalistas vê no crime um simples fato típico, quando, por outro lado, a Criminologia científica observa devidamente o crime como um problema social, tão antigo quanto a existência do homem.
Zaia Brandão [02], pesquisadora no programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ RJ), na sua obra intitulada Pesquisa em educação: conversas com pós-graduandos lança algumas discussões sobre temas relevantes no campo científico, como o problema da identidade e das fronteiras entre as disciplinas. A autora aborda com muito zelo a questão da interdisciplinaridade e a necessidade da reflexão sobre este tema, presente em todas as áreas de conhecimento.
A autora destaca que, hoje, o pesquisador de qualquer área tem a necessidade de buscar vários campos do saber. Essas práticas estão alterando os parâmetros que regiam o estatuto do conhecimento próprio às "áreas nobres", como as das ciências da natureza. Neste sentido, também lança questionamentos sobre a verdade no campo científico, sendo a verdade de hoje a dúvida de amanhã, vez que os "achados" científicos exigem, cada vez mais, um processo permanente de problematização e superação. Enfim, "a verdade perdeu o caráter permanente de outros tempos e é, com freqüência, operada no ângulo da verdade como processo". (Grifos da autora) [03].
Sobre o valor da interdisciplinaridade, a abordagem teórica estabelecida por Zaia Brandão deixa claro que hoje existe um processo de flexibilização das fronteiras das áreas de conhecimento e que este fato vem estimulando e intensificando valiosas experiências de pesquisas pluri e interdisciplinares [04].
A abalizada lição de Jorge de Figueiredo Dias demonstra que a interdisciplinaridade no âmbito da ciência penal é não só bem-vinda como necessária. Nas suas palavras:
A Política Criminal, a dogmática jurídico-penal e Criminologia são assim, do ponto de vista científico, três âmbitos autônomos, ligados, porém, em vista do integral processo da realização do Direito Penal, em uma unidade teleológico-funcional. É esta unidade que continua hoje justificadamente a convir o antigo conceito de v. Liszt de "ciência conjunta do Direito Penal" [05].
1 Breve histórico: lineamentos sobre os escritos de João Marcello de Araújo Júnior
O saudoso Professor João Marcello de Araújo Junior escreveu valioso artigo, publicado em duas coletâneas, no qual enfoca os grandes movimentos da política criminal de nosso tempo. João Marcello foi um brilhante pesquisador, professor dos cursos de graduação e mestrado em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Este merecido destaque quer demonstrar a contribuição e a luta deste ilustre docente – criminólogo, penalista e discípulo de Roberto Lyra – por um Direito Penal humanitário construído via um Estado Democrático de Direito, visando acima de tudo a garantir a dignidade da pessoa humana.
O breve relato que se segue procurará sintetizar as idéias do autor sobre os movimentos denominados A Nova Defesa Social, Movimentos de Lei e Ordem e Política Criminal Alternativa.
2 Nova Defesa Social
Este movimento de política criminal surgiu após a Segunda Grande Guerra Mundial. Iniciado em 1945, graças aos esforços intelectuais e lutas de Fillipo Gramatica. A princípio, este movimento foi denominado Defesa Social, tendo, em 1954, recebido o novo nome de Nova Defesa Social, cujos fundamentos estão inseridos no livro de Marc Ancel [06], denominado La Defense Sociale Nouvelle. A propósito, Marc Ancel (apud João Marcello de Araújo Junior) considerava o movimento não como um simples programa, mas sim uma "tomada de consciência acerca de necessidades sociais e éticas novas, em face das antigas estruturas e de tradições obsoletas" [07].
As idéias principais da Nova Defesa Social estão inseridas no denominado Programa Mínimo, estabelecido pela Sociedade Internacional de Defesa Social, fundada em 1949. Tal programa foi elaborado por uma comissão formada por Ancel, Hurwitz e Stral, sendo aprovado em 1954, quando se realizou o III Congresso Internacional de Defesa Social mantendo-se inalterado até agosto de 1985, quando foi complementado por um adendo pela Assembléia Geral da Sociedade, reunida em Milão.
Nas palavras de João Marcello de Araújo Junior, "o programa, em sua versão original, representou a vitória do pensamento moderado sobre as idéias extremadas de Gramatica e seus seguidores, que pugnavam pela abolição do Direito Penal, que deveria ser substituído por outros meios não punitivos, de garantia da ordem social" [08].
Roberto Lyra (apud João Marcello Araújo Junior [09]), na sua obra Novíssimas Escolas Penais, publicada em 1956, denominava o movimento de Novíssima Defesa Social. As características fundamentais da Nova Defesa Social são:
a)o movimento é marcado pelo antidogmatismo, especialmente em relação ao neoclássico, que tentava restaurar a doutrina q. ue vai de Biding, na Alemanha, a Carrara, na Itália. Além disso, tem caráter multidisciplinar, pois englobava em suas linhas as mais variadas posições;
b)a segunda característica é a mutabilidade. Suas concepções variam no tempo, acompanhando as mudanças sociais. O movimento está voltado para a reforma das instituições jurídico-penais e da própria estrutura social;
c)o movimento tem caráter universal, pois está acima das peculiaridades das legislações nacionais.Os propósitos fundamentais gravitam em torno das concepções crítica, multidisciplinar e pluridimensional do fenômeno criminal.
São relacionados, a seguir, os postulados deste movimento:
d)realizar permanente exame crítico das instituições vigentes, objetivando atualizar, melhorar e humanizar a atividade punitiva, bem como reformar ou, até mesmo, abolir essas instituições. É, portanto, um movimento preterpenal;
e)outro ponto básico do movimento é adotar uma vinculação a todos os ramos do conhecimento humano, capazes de contribuir para uma visão total e completa do fenômeno criminal. Da visão multidisciplinar decorre sua aproximação com a Criminologia, entretanto, sem se confundir com ela. A Criminologia é, por assim dizer, uma preliminar da Defesa Social;
f)desses postulados decorre o terceiro, que arquiteta um sistema de política criminal, garantindo os direitos do homem e promovendo os valores essenciais da humanidade. Assim, rejeita o sistema neoclássico que adota uma postura punitivo-retributiva. Além disso, sustenta também a necessidade de um tratamento bifronte para a criminalidade: para os ilícitos de pequena monta, estabelece o caminho da descriminalização, enquanto que, para as novas e graves infrações à economia e contra os demais direitos difusos, bem como para a criminalidade estatal (abuso de poder, corrupção etc.), recomenda a via oposta, isto é, a da criminalização.
No Brasil, a legislação que trata a matéria é abundante: Lei nº 1.521/51 (crimes contra a economia popular); Lei nº 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária); Lei nº 7.492/86 (crimes contra o Sistema Financeiro Nacional); Lei nº 9.605/98 (crimes ambientais); 9.613/98 (lavagem de dinheiro); Lei nº 11.101/05 (crimes falimentares, recuperação judicial e extrajudicial) e outras Leis que regulam o Direito Penal Econômico.
João Marcello de Araújo Júnior destaca, entretanto, que os Estados não deverão recorrer às leis de emergência, que importem em terrorismo penal e que possam violar as conquistas do Direito Penal liberal, como por exemplo, o princípio da legalidade. A socialização dos condenados passa necessariamente pela colocação, à disposição do condenado, do maior número possível de condições que permitam a este, voluntariamente, não voltar a delinqüir [10].
Observa-se que a Nova Defesa Social ou Novíssima Defesa Social, como denominava Roberto Lyra, é um movimento com traços de uma política criminal humanista, na busca de um Direito Penal de caráter preventivo e protetor da dignidade humana.
2.1 Os Movimentos de Lei e Ordem
Em sentido diametralmente oposto ao da Defesa Social, existem os chamados Movimentos de Lei e Ordem, cuja ideologia estabelecida é a repressão, fulcrada no velho regime punitivo-retributivo, que recebeu o nome enganoso de Movimento de Lei e Ordem. Nas lições de João Marcello de Araújo Junior [11], os defensores deste movimento acreditam que:
os espetaculares atentados terroristas, o gangsterismo e a violência urbana somente poderão ser controlados através de leis severas, que imponham a pena de morte e longas penas privativas de liberdade. Estes seriam os únicos meios eficazes para intimidar e neutralizar os criminosos e, além disso, capazes de fazer justiça às vítimas e aos homens de bem, ou seja, aos que não delinqüem.
O clamor popular reclama sem muita racionalidade, busca solução imediata para o angustiante problema da segurança pública. Por outro lado, as estatísticas informam que os tratamentos de ressocialização não alcançam os resultados desejados, uma vez que os índices de reincidência a cada dia estão mais altos. Como afirma o mesmo autor [12], este fracasso da ideologia do tratamento deixou um espaço vazio que pode vir a ser ocupado pelos Movimentos de Lei e Ordem. A Política Criminal ditada por este movimento é assim descrita por João Marcello de Araújo Junior [13]:
a)a pena se justifica como castigo e retribuição, no velho sentido, não devendo a expressão ser confundida com o que hoje denominamos retribuição jurídica (grifo do autor);
b) os chamados crimes atrozes sejam punidos com penas severas e duradouras (morte e privação de liberdade de longa duração);
c)as penas privativas de liberdade impostas por crimes violentos sejam cumpridas em estabelecimentos penais de segurança máxima e o condenado deve ser submetido a um excepcional regime de severidade, diverso daquele destinados aos demais condenados;
d)a prisão provisória deve ser ampliada, de maneira a representar uma resposta imediata ao crime;
e)que haja diminuição dos poderes do juiz e menor controle judicial da execução, que deverá ficar a cargo, quase exclusivamente, das autoridades penitenciárias.
Os efeitos dos Movimentos de Lei e Ordem já se fazem sentir na esfera legislativa de diversos países. Exemplificando, há nos Estados Unidos o movimento Tolerância Zero, na Itália a Operação Mãos Limpas e, no Brasil servem de exemplo a Lei nº 8.072/90 (Crimes Hediondos), bem como a Lei nº 10.792/02 (Regime Disciplinar Diferenciado – RDD). Vale lembrar as palavras de Massimo Pavarini [14] sobre a Operação Mãos Limpas: "Na Itália, durante muito tempo e diferentemente do que se registrou em outras realidades nacionais, os sentimentos coletivos de insegurança puderam se manifestar como demanda política por mudança através de uma participação democrática mais intensa". Observa-se que a Itália retomou o sistema penal da época de Mussolini, no qual vigora um Direito Penal do horror que é aplaudido pela opinião pública.
García-Pablos de Molina [15] chama atenção para a política criminal do medo que está umbilicalmente ligada aos Movimentos de Lei e Ordem. O autor assinala que os poderosos estados de opinião têm grande relevância nas decisões dos poderes públicos. Trata-se do preocupante problema do medo do delito: altera os estilos de vida, gera comportamentos insolidários para outras vítimas, enfim, explica políticas criminais de inusitado rigor. (Grifos deste trabalho).
Com muita propriedade, o autor defende que a política criminal deve tomar por respaldo a razão, não a paixão, e que o medo só gera medo. O autor aponta que estudos empíricos sobre o medo têm demonstrado o seguinte: nem sempre as pessoas que mais temem o delito são, de fato, as mais vitimizadas, nem as pessoas mais temidas costumam ser as mais perigosas, nem os fatos mais temidos são os que acontecem. O jovem, por exemplo, que é associado à figura do delinqüente, é percentualmente muito mais vítima do delito que o adulto.
Observa-se o clamor popular do "olho por olho" e a manipulação de uma opinião pública amedrontada com a total incapacidade do Estado no combate ao crime organizado que, hoje, faz parte do cotidiano. O resultado é a aprovação pela política do endurecimento das leis, encarceramento em massa, a indiferença com relação ao extermínio de jovens pertencentes a comunidades carentes. Jovens totalmente excluídos, principalmente, pela falta de escolaridade e desemprego. Importante frisar que, outros componentes, também, estão presentes no etiquetamento social: cor da pele, uso de gírias, presença nos arquivos policiais, uso de droga, corte de cabelo, tatuagens, freqüentar bailes funks etc.
Aliás, como afirma Álvaro Mayrink da Costa [16], o povo não tem plena consciência do papel das agências repressoras. Conseqüentemente, aceitam e aplaudem a invasão das favelas, a depredação de barracos miseráveis, a detenção ilegal dos pobres para averiguações, o espancamento dos presos no interior dos institutos penais, enfim, o desrespeito à dignidade humana em nome de uma vingança privada. Resta comungar com o referido autor, acrescentando ser o povo vítima sem consciência da vitimização. A opinião pública alienada é fortemente manipulada pela mídia que trabalha diariamente para informar fatos e dados, muitas vezes sem nenhuma reflexão crítica, sobre o problema da miséria e da opressão aos excluídos.
2.2 Política Criminal Alternativa
A terceira corrente político-criminal é a Política Criminal Alternativa, denominada Nova Criminologia. Nova Criminologia é a expressão genérica, na qual se subsumem denominações específicas, como Criminologia Crítica, Criminologia Radical, Criminologia da Reação Social, Economia Política do Delito (denominação proposta na Inglaterra) e outras, significando reação à Criminologia Tradicional fundada no positivismo criminológico.
A Nova Criminologia passou a ser conhecida a partir da obra intitulada The New Criminology (1973), uma coletânea escrita por Taylor, Walton e Young. Este livro, na opinião de Juarez Cirino dos Santos, que o traduziu, "foi um dos primeiros estudos sistemáticos de desenvolvimento da teoria criminológica sob o método dialético, aplicando categorias de materialismo histórico" [17]. Deve-se ressaltar que Juarez Cirino dos Santos foi um dos criminólogos pioneiros, ao pesquisar sobre a Criminologia Radical, título da sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1979 e, logo após, publicada pela Editora Forense. Também no Brasil, destaca-se Roberto Lyra Filho, que publicou livro intitulado Criminologia Dialética, tratando do mesmo assunto.
A Política Criminal Alternativa estabelece alguns princípios que merecem destaque, de acordo com João Marcello de Araújo Junior [18]:
a)abolição da pena privativa de liberdade
b)a criminalidade deve ser interpretada à luz dos conflitos que se instalam em razão da classe social de onde provém. A das classes proletárias será interpretada à luz dos conflitos que se instalam em razão do sistema capitalista; ao passo que a criminalidade proveniente das classes dominantes, como a criminalidade organizada, a corrupção política e administrativa, deverá receber tratamento diferenciado;
c)a Política Criminal Alternativa busca o processo de socialização alternativo, cujo objetivo é transferir do Estado para a comunidade a função de controle em relação às condutas desviadas de natureza leve;
d)o Movimento também recomenda a criminalização de comportamentos que importem dano ou ameaça aos fundamentais interesses das maiorias, tais como: a criminalidade ecológica, a econômica, as violações à qualidade de vida, as infrações à saúde pública, à segurança e higiene no trabalho, e outras do mesmo gênero. (Grifos deste trabalho);
e)todo esse trabalho deve ser acompanhado de maciça propaganda, não só para denunciar à opinião pública as desigualdades do sistema vigente, como para obter apoio popular. "Os mass media devem ser empregados no sentido inverso do atual".
Juarez Cirino dos Santos, prefaciando uma obra de Alessandro Baratta, destaca que a linha principal de uma política criminal alternativa tem por base a diferenciação da criminalidade pela posição social do autor. Nas lições do autor:
tal diferenciação fundamentaria posições divergentes: por um lado, redução do sistema punitivo mediante despenalização da criminalidade comum e substituição de sanções penais por controles sociais não-estigmatizantes; por outro lado, ampliação do sistema punitivo para proteger interesses individuais e comunitários em áreas de saúde, ecologia e segurança de trabalho, revigorando a repressão da criminalidade econômica, do poder político e do crime organizado. [19]
Para Juarez Cirino dos Santos [20], este movimento prega a reeducação do marginal voltada para a transformação de reações individuais e egoístas em consciência e ação política coletiva.