3.O Trabalho Escravo Contemporâneo sob a ótica dos Direitos Humanos
A luta contra o trabalho escravo e degradante é sobretudo uma luta da afirmação dos direitos humanos. Assim como as violações se transmutam no decorrer do tempo e espaço, os direitos humanos sofrem as ressignificações, a fim de identificar essas novas formas de violação e coibi-las. Daí, no dizer de Hanna Arendt, o “caráter de permanente construção e reconstrução dos direitos humanos” (ARENDT, 2013:9), na medida em que as relações sociais sofrem os dinamismos dos ciclos sociais (9) . Nesse contexto, os direitos humanos se inserem a favor do reconhecimento de que nenhum homem pode afirmar-se superior aos demais. E que, portanto, nenhum homem é legitimado a explorar o outro, elevando a máxima de que o todo indivíduo tem direito a não ser oprimido, preservar sua dignidade e de desfrutar autonomamente de suas liberdades individuais.
Realça Norberto Bobbio, que os direitos humanos são direitos históricos, ou seja, “nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas(10)” (BOBBIO, 2004: 8). Refletem uma monta de valores construída a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. Os direitos humanos compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Invocam, neste sentido, uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade humana (FLORES, 2002:8). Para Carlos Santiago Niño, os direitos humanos são uma construção consciente vocacionada a assegurar a dignidade humana e a evitar sofrimentos, em face da persistente brutalidade humana (NIÑO apud PIOVESAN, 2006:153). A justificativa desse princípio repousa na ideia sistemática de que a essência do ser humano é a mesma e uma só, embora coexistam a multiplicidade de diferenças, individuais e sociais, biológicas e culturais, na humanidade.
A exigência de condições sociais aptas a propiciar a realização de todas as virtualidades do ser humano é, assim, intensificada no tempo, e traduz-se, necessariamente, pela formulação de novos direitos humanos (COMPARATO, 2010:36). Daí a necessidade da reformulação conceitual da exploração escravizadora. Assim como as práticas humanas exploradoras se assentam às novas realidades, formando “novos” fenômenos mesmo que sejam a partir de práticas primitivas, os novos direitos humanos também se insurgem como forma de contrapor essas violações.
Na linha do tempo da historicidade dos direitos, destaca-se o marco da concepção contemporânea de direitos humanos, vindo a ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e posteriormente reiterada pela Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993.
Assim, os direitos humanos se colocam em oposição crítica e de repúdio à concepção positivista de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, presos ao mero formalismo jurídico — vez que, como prova histórica, o nazismo e o fascismo ascenderam ao poder dentro dos ditames da legalidade e agiram com o respaldo da lei ao promover a barbárie humana. Há, portanto, uma releitura do pensamento filosófico kantiano, principalmente no que diz respeito às ideias de moralidade e dignidade.
A afirmação por Kant do valor relativo das coisas, em contraposição ao valor absoluto da dignidade humana, já prenunciava a quarta etapa histórica na elaboração do conceito de pessoa, a saber, a descoberta do mundo dos valores, com a consequente transformação dos fundamentos da ética. O homem é o único ser, no mundo, dotado de vontade, isto é, da capacidade de agir livremente, sem ser conduzido pela inelutabilidade do instinto. (COMPARATO, 2010: 37). Para Kant as pessoas e, em geral qualquer espécie racional, devem existir como um fim em si mesmo e jamais como um meio, a ser arbitrariamente usado para este ou aquele propósito. Os objetos têm, por sua vez, um valor condicional, enquanto irracionais, por isso, são chamados “coisas”, substituíveis que são por outras equivalentes. Os seres racionais, ao revés, são chamados “pessoas”, porque constituem um fim em si mesmo, têm um valor intrínseco absoluto, são insubstituíveis e únicos, não devendo ser tomados meramente como meios. As pessoas são dotadas de dignidade, na medida em que têm um valor intrínseco. Deste modo, ressalta Kant, trate a humanidade, na pessoa de cada ser, sempre com um fim mesmo, nunca como um meio. Adiciona Kant que a autonomia é a base da dignidade humana e de qualquer criatura racional. Lembra que a ideia de liberdade é intimamente conectada com a concepção de autonomia, por meio de um princípio universal da moralidade, que, idealmente, é o fundamento de todas as ações de seres racionais. Para Kant, o imperativo categórico universal dispõe: “Aja apenas de forma a que a sua máxima possa converter-se ao mesmo tempo em uma lei universal (PIOVESAN, 2006: 154)
Todo esse esforço de retorno da dignidade humana ao centro do cenário pós-guerra, reconfigurou o direito internacional dos direitos humanos influenciando um novo movimento constitucionalista em cadeia, plural, com abertura a princípios e a valores que respeitam a primazia da dignidade humana, como é o caso da constituição brasileira de 1988, que tem como fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana.
Como corolário do princípio da dignidade humana está a proibição ao trabalho escravo. Os diplomas internacionais de proteção dos direitos humanos são incisivos em afirmar o trabalho escravo e degradante como grave forma de violação de direitos humanos. A proibição da escravidão e de práticas similares forma parte do Direito Internacional consuetudinário e do jus cogens. A proteção contra a escravidão é uma obrigação erga omnes e de cumprimento obrigatório por parte dos Estados, a qual emana das normas internacionais de direitos humanos. Por se tratar de um crime “lesa-humanidade”, possui caráter imprescritível.
O Brasil é signatário de vários instrumentos internacionais que tratam dos direitos humanos. Primeiramente, em 1926, no texto da Convenção sobre a Escravatura das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Presidencial nº 58.563, de 1º de junho de 1966, já havia previsão de que os países signatários deveriam abolir completamente a escravidão sob todas as suas formas.
Em 1969, foi promulgada a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, sendo ratificada pelo Brasil, somente vinte e três anos mais tarde, por meio do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, e encampou-se o compromisso do estado brasileiro em erradicar a escravidão e a servidão em todas as suas formas.
O Brasil é um dos 187 membros da OIT. A OIT é responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho (convenções e recomendações). As convenções, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a fazer parte de seu ordenamento jurídico. O Brasil está entre os membros fundadores da OIT e participa da Conferência Internacional do Trabalho desde sua primeira reunião.
Apenas no início dos anos 90, o Governo Brasileiro assumiu a existência do trabalho escravo no seu território, perante a comunidade internacional e a OIT. Tornou-se então uma das primeiras nações do mundo a reconhecer oficialmente a escravidão contemporânea. A partir de então, como uma resposta a esse reconhecimento, algumas importantes ações começaram a ser tomadas em 1995, com a edição em 27 de junho do Decreto n. 1.538, criando estruturas governamentais para o combate ao crime do trabalho escravo, com destaque para o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado – GERTRAF e o Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM (11), coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM, subordinado à Secretaria de Inspeção do Trabalho – SIT do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, foi criado e começou a atuar no resgate dos trabalhadores.
Em 2003, foi lançado o 1º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, o qual previa a implementação de várias ações em conjunto com as instituições governamentais e as organizações sociais, como parte da implementação da chamada “política anti-escravidão”, tendo sua segunda edição lançada em 2008.
4. Análise do tipo penal previsto no artigo 149 do código penal e suas formas de caracterização
A alteração pela Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, promoveu mudança significativa na redação do artigo 149 do Código Penal, antes lacônico. A redação original do art. 149 levava a diversas interpretações e dificuldades para a verificação da tipicidade do fato.
Uma das interpretações exigia que o agente realizasse condutas que, em seu conjunto, impusessem à vítima a modificação de seu estado de liberdade, alterando seu estado de liberdade natural de ser humano livre, de modo que se assemelhasse ao estado de fato de um verdadeiro escravo nos moldes do regime, sem o poder de decidir sobre seu destino.
Esclarece Brito Filho (2013), amparado nas indicações de Bitencourt, que existe uma grande diferença entre o tipo penal do artigo 149 e o crime de plágio, dos romanos. Explica esse último delito da seguinte forma: quando o Direito Romano proibia a condução da vítima, indevidamente, ao estado de escravidão, cujo nomen iuris era plagium, o bem jurídico tutelado não era propriamente a liberdade do indivíduo, mas o direito de domínio que alguém poderia ter ou perder por meio dessa escravidão indevida (BITENCOURT apud BRITO FILHO, 2013). Ainda a respeito do plágio, Pierangeli afirma que “A palavra plagium, etimologicamente, vem do verbo plagiare, que na Roma antiga significava a compra de um homem livre sabendo que o era, e retê-lo em servidão ou utilizá-lo como próprio servo (PIRANGELI apud BRITO FILHO, 2013:38). Essa é a explicação etimológica que se casa com a escravidão contemporânea, onde os homens são “livres” e, ainda assim, sujeitos a condições análogas de escravidão, pois perderam a capacidade de dispor sobre a sua força de trabalho, e consequentemente sobre a sua própria existência.
Retomando à análise do tipo penal descrito no artigo 149, essa “nova velha” forma de interpretar o dispositivo, ampliada e considerando como bem jurídico maior a ser protegido a dignidade humana, não significa diminuir ou relativizar o conceito de liberdade, mas realocá- lo como uma espécie de violação desta, sem perder de vista que o próprio preceito primário é descritivo e cumula as outras formas de caracterização desse tipo penal, sendo a privação de liberdade uma das formas de caracterização do delito e não o núcleo essencial do tipo.
Dessa forma, a alteração feita é eloquente e deixa claro que não há o crime de redução à condição análoga à de escravo somente quando a liberdade da pessoa é, diretamente, estritamente suprimida. Pelo contrário, há hipóteses em que não se discute de forma direta, e talvez se deva dizer de forma principal a supressão da liberdade do ser humano, como na jornada exaustiva e nas condições degradantes de trabalho, pois há bem maior a proteger, nesses casos, que a liberdade.
A conduta descrita no tipo penal “fere, acima de tudo, o princípio da dignidade humana, despojando-o de todos os seus valores ético-sociais, transformando-o em res, no sentido concebido pelos romanos” (BITENCOURT apud BRITO FILHO, 2013:36). É o que temos defendido, desde há algum tempo, no sentido de que a alteração do artigo 149 do Código Penal produziu mudança significativa a respeito do bem jurídico principalmente protegido, que passou da liberdade para o atributo maior do homem, que é a sua dignidade, na versão contemporânea, e que é baseada na visão e fundamentação que lhe emprestou Kant(12) (BRITO FILHO, 2013:36).
4.1 Trabalho forçado
A Organização Internacional do Trabalho, na convenção 29, ratificada pelo Brasil, denomina o trabalho forçado também de trabalho obrigatório. Portanto, “trabalho forçado ou obrigatório” designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade. Aqui, a tônica é então, a liberdade, mas não exclusivamente a liberdade de locomoção.
A proteção se dirige à liberdade pessoal, na qual se inclui a liberdade de autodeterminação, em que a pessoa tem a faculdade de decidir o que fazer, como, quando e onde fazer (HADDAD, 2013: 83). Quando o trabalhador não pode decidir, espontaneamente, pela aceitação do trabalho, ou então, a qualquer tempo, em relação à sua permanência no trabalho, há trabalho forçado (BRITO FILHO, 2008:12).
No tocante à “ameaça de uma pena”, esta pode consistir, entre outros, na presença real e iminente de intimidação, que pode assumir formas e graduações heterogêneas, das quais as mais extremas são aquelas que representam coação, violência física, isolamento ou confinamento, bem como a ameaça de morte dirigida à vítima ou a seus familiares (…). Já no que se refere à “falta de vontade para realizar o trabalho ou serviço”, este consiste na ausência de consentimento ou de livre escolha no momento do começo ou continuidade da situação de trabalho forçado. Esta situação pode ocorrer por distintas causas, tais como a privação ilegal da liberdade, o engano ou a coação psicológica (CIDH, 2016: 77-78).
O trabalho forçado pode decorrer por coação moral, como anteriormente demonstrado, psicológica ou física. Acresce-se a isso o entendimento de que o fato de receber algum pagamento em troca dos serviços não impede que estes sejam qualificados como servidão ou trabalho forçado.
4.2 Sujeição alheia à jornada exaustiva
A jornada exaustiva é considerada o período de trabalho diário que foge às regras da legislação trabalhista, exaurindo o trabalhador, independente do pagamento de horas extras ou qualquer outro tipo de compensação. A Constituição Federal brasileira prevê expressamente que a jornada diária se estenda, no máximo, por oito horas, e a semanal, por quarenta e quatro horas. Ao labor excedente à jornada indicada, a Constituição determina remuneração com, no mínimo, cinqüenta por cento de acréscimo.
A legislação infraconstitucional determina que, em qualquer hipótese, a jornada não exceda ao período de duas horas extras por dia, admitindo exceções previstas na CLT, intervalor inter e intrajornada e ainda sob extrema fiscalização. Acresce-se ainda que, jornada exaustiva, segundo Wilson Ramos Filho (2008) estaria configurada, não apenas em relação à carga horária de trabalho (quantitativa), mas também à intensidade (qualitativa) superiores a força humana a que são submetidos os trabalhadores(13).
Portanto, jornada exaustiva é a jornada de trabalho imposta a alguém, por outrem, em relação de trabalho, além dos limites legais extraordinários estabelecidos na legislação de regência, e/ou capaz de causar prejuízos à sua saúde física e mental, e decorrente de uma situação de sujeição que se estabelece entre ambos, de maneira forçada ou por circunstâncias que anulem a vontade do primeiro (BRITO FILHO, 2013: 44).
4.3 Trabalho em condições degradantes
Luis Camargo (2003) conceitua como aquele em que se pode identificar péssimas condições de trabalho e de remuneração. Pode-se dizer que trabalho em condições degradantes é aquele em que há a falta de garantias mínimas de saúde e segurança, além da falta de condições mínimas de trabalho, de moradia, higiene, respeito e alimentação. Desse modo, tudo devendo ser garantido de forma conjunta. Havendo, em contrário, a falta de um desses elementos, impõese o reconhecimento do trabalho em condições degradantes.
Degradação significa rebaixamento, indignidade ou aviltamento de algo. O tipo penal é aberto e cabe ao magistrado aferir o que seriam condições degradantes de trabalho, é, pois, elemento normativo cheio de significados. O Norte mais seguro a ser seguido é o recurso a legislação trabalhista, que disciplina as condições mínimas apropriadas ao trabalho humano (HADDAD, 2013). A recorribilidade às normas trabalhistas mostra-se indispensável porque, Segundo Haddad (2013), o crime atenta também contra a organização do trabalho, genericamente considerada, a despeito de ser classificado entre aqueles que violam a liberdade individual (HADDAD, 2013: 86).
Cumpre esclarecer, não é qualquer constrangimento gerado por irregularidades nas relações laborais que determina a incidência do dispositivo. Por condições degradantes entendem-se as aviltantes ou humilhantes, não apenas em geral consideradas, mas também, em face das condições pessoais da vítima, que afrontem a sua dignidade. Trabalho degradante apresenta conceito negativo, pois é aquele a que faltam condições mínimas de saúde e segurança, moradia e higiene, respeito e alimentação, como já apresentado acima por Luis Camargo. Nessas circunstâncias, negam-se direitos básicos ao trabalhador, que é transformado em coisa e a quem se atribui preço, sempre o menor possível. Trabalho degradante é aquele que priva o trabalhador de dignidade, que o desconsidera como sujeito de direitos, que o rebaixa e prejudica, e, em face de condições adversas, deteriora sua saúde.
Assim, se o trabalhador presta serviços exposto à falta de segurança e com riscos à sua saúde, em jornada desarrazoada, que lhe ampute o descanso e o convívio social, há trabalho em condições degradantes. Se, para prestar o trabalho, o trabalhador tem limitações na sua alimentação, na sua higiene e/ou na sua moradia, caracteriza-se o trabalho em condições degradantes. Se o trabalhador não recebe o devido respeito que merece como ser humano, sendo, por exemplo, assediado moral ou sexualmente, também aí, está configurado o trabalho em condições degradantes (COELHO & SOUZA, 2016:21)
4.4 Restrição, por qualquer meio, da locomoção alheia em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto
Esse dispositivo retrata de forma clara a escravidão por dívida. Primeiramente, a restrição em razão de dívidas, conduta conhecida como servidão por dívidas ou truck system, é uma das características do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. É instituto há muito conhecido na história da humanidade e largamente utilizado nas diversas épocas da história do nosso país (COELHO & SOUZA, 2016: 24).
A legislação trabalhista, no art. 462, §§2º e 3º, da CLT, cuidou de proteger o trabalhador dessa prática, regulamentando e fazendo a previsão da proibição do empregador “que mantiver armazém para venda de mercadorias aos empregados ou serviços estimados a proporcionar-lhes prestações in natura, exercer qualquer coação ou induzimento no sentido de que os empregados se utilizem do armazém ou dos serviços”, além de prever que “a autoridade competente pode determinar o acesso dos empregados a armazéns ou serviços, não mantidos pelo empregador, a preços razoáveis, sem intuito de lucro e sempre em benefício dos empregados”.
No mesmo sentindo, o Precedente Normativo nº 68 do TST autoriza o chefe de família, se empregado rural, a faltar ao serviço um dia por mês ou meio dia por quinzena para efetuar compras, sem remuneração ou mediante compensação de horário, mas sem prejuízo do repouso. O referido precedente é uma medida de proteção ao salário e contribui para que o trabalhador não fique obrigado a fazer suas compras no próprio armazém do empregador.
Principalmente nesse ponto do preceito primário, o intérprete do dispositivo penal também deve se aprofundar na seara trabalhista, para que haja uma melhor contextualização do tipo penal, e mais ainda, entender o fenômeno sociológico que está posto. Não por acaso, destrinchamos no capitulo 2 como ocorre a manifestação de trabalho escravo na região amazônica, onde além da reunião de características já apontadas, uma das mais latentes é a servidão por dívida.
A servidão por dívida afronta várias normas de proteção ao trabalho, tais como a intangibilidade do salário (art. 462, caput, da CLT), da irredutibilidade do salário (art. 7º, inciso VI, da Constituição Federal) e, principalmente, a vedação à prática do truck system (§§ 2º e 3º do art. 462 da CLT) e a determinação do pagamento da prestação em espécie do salário em moeda corrente do país (art. 463 da CLT).
No caso específico da escravização no meio rural, há ainda violação aos dispositivos da Lei nº 5.889/73 (estatuto do trabalhador rural), que também reverberam, consagram os mesmos princípios da legislação consolidada. A conduta viola, ainda, os preceitos da Convenção nº 96 da OIT, sobre a proteção ao salário, ratificada pelo Brasil.
Não se admite mais a prisão por dívida em nosso ordenamento. Quanto mais a autorização do particular para exercer esse tipo de conduta contra outro particular. A servidão por dívida é um dos tipos de exploração mais arcaicos no mundo, e, por muito tempo, foi expurgada do nosso ordenamento. Além da servidão por dívidas, o termo “por qualquer outro meio” pode se desdobrar em várias outras hipóteses, a exemplo do isolamento geográfico do trabalhador, sem fornecimento de transporte público ou locomoção por parte do empregador, restringindo o ir e vir do obreiro.