1. Introdução
O art. 32 da Lei nº 9.605/98 sofreu uma alteração bastante recente pelo diploma legal nº 14.064 de setembro de 2020. Tal modificação é digna de análise e reflexão em razão da atualidade e relevância jurídica que possui.
Inicialmente é importante mencionar que o crime de maus-tratos aos animais previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998, tem sido bastante rechaçado em razão da brandura das penas ali cominadas, que o classificavam, em todas as situações, como infração de menor potencial ofensivo (BRASIL, 1998).
Vale dizer que se observa um número considerável de casos de maus-tratos aos animais. A recorrência de tais práticas cruéis ensejou a criação da Lei 14.064/2020 com o intuito de criar uma forma qualificada da aludida infração penal que auxilie no combate à crueldade contra os animais. Tal dispositivo legal acrescentado prevê pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, além de multa e vedação da guarda de animais. O art. 32 da Lei de Crimes Ambientais passou a ter o §1-A desde 29 de setembro de 2020 (BRASIL, 2020).
O presente trabalho realizar-se-á por meio de pesquisa bibliográfica, preliminarmente voltada a uma investigação incipiente do novo dispositivo, apresentando uma sucinta exposição histórico-cultural e conceitual do assunto e, logo após, produzir-se-á uma análise da relação de tal modificação com alguns dos relevantes princípios do direito penal e do direito ambiental. Por fim, far-se-á uma revisão dos tópicos enunciados ao longo do texto e as respectivas considerações finais.
2. Sucinta Exposição Histórico-Cultural e Conceitual
Sabe-se que a prática de atos cruéis contra animais é vista como repugnante, contudo, na maioria das vezes, essa ideia está sustentada por um conceito antropocêntrico das relações entre humanos e animais, sem considerar a característica da sensibilidade desses seres vivos. Todavia, no decorrer histórico da visão do tema, tem sido, aos poucos, inserido um pensamento que também leva em conta a realidade de que os animais são seres capazes de sofrimento e prazer. Sem dúvida, é necessário promover um equilíbrio entre os extremos da zoologização do homem e da coisificação próxima à natureza inanimada dos animais (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
Atualmente, há um novo entendimento de que os animais não mais são considerados coisas, e sim sujeitos de direito. Nessa recente visão, tais seres passarão a ter maior destaque no campo jurídico (VIEIRA, S.P, 2021).
É válido mencionar que para a maior parte da doutrina, o Direito protege os animais apenas para proteger o homem. A corrente que defende a tutela dos animais sob um viés ecológico profundo é minoritária. Esse grupo considera os animais “seres vivos com personalidade sui generis, necessitando ser protegidos como sujeitos de direito, dotados de percepções e sensações” (RODRIGUES, 2003).
No Brasil, a primeira proteção legal contra a violência aos animais apareceu em 1924. Nesse momento, houve a proibição das corridas de touros, brigas de galo e canários. Em 1934, surgiu o Decreto 24.645 que especificou os maus-tratos como um crime e serviu como parâmetro para a caracterização de atos de abuso contra animais, conquanto já esteja revogada (SHEFFER, 2018).
Hoje, no Brasil, a lei que tutela os animais é a nº 9.605/98, que assemelha, em seu art. 32, os animais domésticos aos silvestres, nativos ou exóticos para fins de aplicação de penas relativas aos atos de maus-tratos (SHEFFER, 2018).
É relevante destacar que a conduta incriminada não tem por característica a obrigação de avaliar danos à função ecológica do ser vivo. O tipo penal do art.32 da Lei 9605/98 tutela os animais de modo geral, independentemente de sua inserção na função do equilíbrio ambiental (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
É possível dizer que foi a partir do processo de domesticação que os animais passaram a interagir de forma diferente com o homem, além disso começaram a ser incorporados como membros da família. Quando se observa a atual constituição dos lares, percebe-se o aumento de núcleos familiares que adotam seres de outras espécies, como cachorros, gatos, entre outros (VIEIRA, S.P, 2021).
Hoje há uma variedade de estudos a fim de compreender melhor a capacidade de sentimento dos animais, trata-se da faculdade que os mesmos têm de senciência, podendo sentir prazer e dor e, até mesmo, outras sensações. A senciência significa um bem-estar emocional, isto é, o interesse em permanecer vivo e em possuir qualidade de vida, conquanto os animais não apresentem a habilidade de pensar em quantos anos vão viver, é seu desejo a permanência de sua vida (LAGUNE, 2018).
Outrossim, o antropocentrismo defende que a dignidade é um valor intrínseco do humano, em razão da nossa espécie ser a única dotada da capacidade de pensar e agir conforme a razão. Segundo Menezes e Silva (2016), ela pode ser definida como uma manifestação do narcisismo humano, na qual o animal, objeto de proteção ambiental, possui valor instrumental para a preservação de acordo com as vantagens diretas ou indiretas que oportuniza às comunidades humanas (MENEZES apud BEHLING; CAPORLINGUA, 2019, p.1).
É válido destacar que a maior motivação humana no que tange à preservação dos animais era o seu uso e exploração em atividades humanas, entretanto esse motivo tem ficado cada vez mais distante quando se fala em senciência. O sentimento e a aproximação familiar com os humanos são progressivamente frequentes (VIEIRA, S.P, 2021).
Em relação à cronologia no Direito Penal, pode-se analisar inicialmente a antiga contravenção penal de Crueldade contra animais. Essa estava prevista no art.64 da Lei de Contravenções Penais. Tal dispositivo estava disposto no Capítulo VII da legislação em comento, cujo título é “Das contravenções relativas à polícia de costumes” (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
Evidencia-se uma preocupação voltada apenas para o sentimento humano no momento em que a legislação se limita a vetar como ilícitas as experiências científicas ou atividades didáticas cruéis em animais vivos, somente se forem realizadas em local “público ou exposto ao público” (§1º do art. 64, LCP). Isso enfatiza o fato de que a inquietação do legislador, na época, estava voltada só para a comoção de pudor humano diante dos atos de crueldade, pois caso realizado distante dos olhares suscetíveis de homens e mulheres, tais atitudes eram moral e legalmente toleradas, sem a menor consideração em relação aos sentimentos de outros seres vivos (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
Indubitavelmente, a alteração mais significativa realizada pela nova legislação ambiental acerca do tema foi a normatização mais abrangente em relação às restrições a experiências dolorosas ou cruéis com animais (art. 32, §1º, da Lei 9605/98). Atualmente, a vedação de práticas não se reduz àquelas desenvolvidas em público ou em local exposto ao público, como na antiga contravenção penal (art.64, §1, LCP). Esses procedimentos são proibidos e apenados sempre que praticados, seja em público, seja reservadamente. Ocorre que neste aspecto o legislador não desconsiderou totalmente os sentimentos dos animais, principalmente seu sofrimento físico e psíquico, para focar apenas nos pudores, moralidades e suscetibilidades humanos (BRASIL, 1998; CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
No campo de experiências científicas é evidente o conflito entre o interesse humano pelo desenvolvimento, particularmente de técnicas terapêuticas e medicamentos, e o bem-estar dos animais seguidamente utilizados como cobaias nessas atividades. Não resta dúvidas dos inúmeros avanços da ciência médica alcançados devido a experimentos com animais, muitas vezes, dolorosos ou letais (vacinas, insulina sintética, entre outros). Dessa maneira, o sacrifício de seres vivos, não humanos, tem salvado inúmeras vidas humanas, bem como a melhoria da qualidade de vida a cura de várias pessoas. Além disso, não se pode esquecer os avanços na área veterinária, que beneficiam diretamente os próprios animais (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
A legislação brasileira busca determinada prudência de valores, visto que não proíbe de forma absoluta essas experiências, no entanto, ficam sujeitas à circunstância de não existirem “recursos alternativos”. Trata-se de elemento normativo do tipo, isto é, um daqueles que para sua compreensão o intérprete não pode se restringir a apresentar uma atividade puramente cognitiva, mas deve proceder a uma interpretação valorativa (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020; DOTTI, R.A, 2001, p. 312-313).
É importante mencionar que, boa parte das vezes, é possível equilibrar os interesses humanos e a consideração dos sentimentos dos animais. Um exemplo disso é o dispositivo do art.32, §1º, da Lei Ambiental Brasileira, que sem submeter os seres humanos a qualquer degradação, não deixa de considerar e contestar o sofrimento desnecessário imposto aos animais (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
A partir dessa análise histórico-cultural e conceitual, compreende-se melhor o processo de consideração e preservação dos seres vivos não humanos ao longo do tempo e os avanços legislativos na temática concernente aos maus tratos aos animais. Nesse contexto, o surgimento da Lei 14.064/2020 aparece como mais uma investida de melhoria da tutela dos animais no que tange ao respeito a sua condição de seres sencientes (BRASIL, 2020; CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
3. Análise da Modificação do art.32 e a Relação com Alguns Princípios Fundamentais do Direito Penal e do Direito Ambiental
É importante dizer que a Lei 14.064/2020 criou uma proteção diferenciada para “cães e gatos” em prejuízo de todos os demais animais. Tanto a pena mais grave quanto a proibição de guarda são aplicáveis apenas quando forem objeto de maus-tratos “cães ou gatos”. Em relação a outros animais, a pena não sofreu alterações (BRASIL, 2020; CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
Observa-se um grave equívoco no âmbito jurídico acerca da tutela protetiva distinta para certos animais em detrimento de outros. Sabe-se que não há uma razão admissível para um tratamento diferente no que diz respeito aos maus-tratos de cães e gatos, já que para os demais animais não se aplica a Lei 14.064/2020 (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
Percebe-se que a supracitada Lei criou uma qualificadora para os casos de maus-tratos de cães e gatos assegurando um aumento significativo da pena “in abstrato”, somente poderá ter aplicação a partir de seu vigor, sem possibilidade de retroagir (CABETTE, E.L.S; CABETTE, B.P.S, 2020).
Acredita-se que seja relevante apresentar alguns princípios importantes do Direito Penal e examinar a relação estabelecida com a Lei 14.064/2020. Deve-se destacar em tal exame os princípios: da ofensividade; da adequação social; da proporcionalidade e da intervenção mínima.
O princípio da ofensividade é de grande relevância no exame da mencionada Lei. Tal postulado do Direito Penal tem a pretensão de que seus efeitos apresentem reflexos em dois planos: servir de orientação à atividade legiferante e servir de critério interpretativo (BITENCOURT, 2019, p.67).
Diante do exposto, observa-se que o princípio da ofensividade ou da lesividade exerce dupla função no Direito Penal em um Estado Democrático de Direito: função político-criminal, com caráter preventivo-informativo, visto que se manifesta nos momentos que antecedem a elaboração dos diplomas legislativo-criminais; e função interpretativa ou dogmática, com manifestação posterior, ou seja, quando surge a oportunidade de operacionalizar-se o Direito Penal no momento em que se deve aplicar, in concreto, a norma penal elaborada (BITTENCOURT, 2019, p.67).
De acordo com tal princípio, não haverá crime quando não ocorrer lesão ou exposição a perigo de lesão de um bem jurídico tutelado pela norma penal. Nesse sentido, é preciso apontar que não existirá lesão a bem jurídico sem conduta. O Direito Penal ao tutelar bens jurídicos exige que as normas incriminadoras sejam legítimas e legais (COÊLHO, 2015, p.30).
A modificação trazida pela Lei 14064/2020 é tida como consoante com o postulado da ofensividade, pois a conduta de maus-tratos a cães e gatos é claramente lesiva à vida de tais animais. O novo ordenamento jurídico passou a aplicar pena de reclusão de dois a cinco anos, além de multa e vedação de guarda aos que incorrerem em tal crime (BRASIL,2020).
O supracitado princípio define que somente pode ser considerada merecedora de tutela penal a conduta capaz de expor a risco ou causar dano a bem jurídico penalmente relevante. Uma norma penal deve proteger um interesse jurídico fundamental contra lesões ou risco de lesões. Assim, veda-se o estabelecimento de delitos que sejam meras infrações de obrigações ou de deveres, o que representa uma excessiva intervenção estatal, que não pode ser aceita (JAPIASSÚ; SOUZA, 2020, p.49).
Outro princípio que merece comentários é o da adequação social. Sabe-se que a lei não pode coibir comportamentos úteis para o corpo social. O legislador não deve agir de modo arbitrário, incriminando toda e qualquer conduta, sem critério algum. Por esse motivo, a tipificação de fato socialmente adequado necessita ser repudiado e, dada sua incompatibilidade com o princípio da dignidade da pessoa humana, tida por inconstitucional (ESTEFAM, 2020, p.156).
É possível dizer que o supracitado princípio possui relação com a alteração trazida pela Lei 14.064/2020, pois a prática de maus-tratos a cães e gatos é considerada uma conduta repugnante e passível de criminalização. Diante do exposto, pode-se dizer que é socialmente adequado punir quem agride cães e gatos, já que esses são animais domésticos e quase sempre vistos como membros da família.
Tal princípio constitui a regra geral de interpretação das normas incriminadoras e concretiza a ideia de que o tipo penal foi criado para viabilizar a vida social e não como forma de transgredi-la. É possível dizer que, com a evolução social, um determinado comportamento, antes tido como antijurídico, passa a ser socialmente aceito. Logo, não se justifica mais a intervenção penal, incidindo, assim, o princípio sob consideração (JAPIASSÚ; SOUZA, 2020, p.53).
Além dos princípios já citados, é válido mencionar acerca da importância do princípio da proporcionalidade. Tal postulado pode ser visto como uma consagração do constitucionalismo moderno, sendo recepcionado pela Constituição Federal Brasileira em diversos dispositivos, tais como: exigência da individualização da pena; proibição de determinadas modalidades de sanções penais e admissão de maior rigor para infrações mais graves (BITTENCOURT, 2019, p. 71).
É possível dizer que o elencado princípio pode ser definido como o justo equilíbrio entre o resultado do delito e a pena, bem como entre a gravidade do fato ilícito e a sanção penal cominada. Trata-se da relação entre a expressividade da lesão ao bem jurídico e a reprimenda a ser aplicada (WILLEMANN, 2005, p.1).
Na mesma linha, pode-se argumentar que tal princípio visa uma equitativa correlação entre a gravidade do fato praticado e a sanção penal correspondente. Dessa forma, a proporcionalidade deve ser obedecida tanto na elaboração, como na aplicação e na execução da lei penal. Por conseguinte, o princípio estará descumprido quando o legislador criar ou majorar determinada fia delitiva, fixando, desproporcionalmente, uma reprimenda penal elevada (JAPIASSÚ; SOUZA, 2020, p. 52).
É relevante dizer que o princípio da proporcionalidade pode ser violado tanto pelo excesso da intervenção penal como pela insuficiência da regulação penal. Em síntese, tal princípio se desdobra nos princípios da vedação da proibição do excesso e da vedação da proteção insuficiente ou deficiente dos bens jurídicos (JAPIASSÚ; SOUZA, 2020, p. 52).
Acredita-se que seja necessário analisar o caso concreto para a aplicação do supracitado princípio, visto que a gravidade da conduta praticada, o contexto em que ela ocorreu e a motivação para a realização do delito devem ser levados em conta no momento de utilizar tal postulado, pois a pena deve ser proporcional ao crime cometido.
Mais um princípio de Direito Penal que merece ser destacado é o da intervenção mínima. É possível dizer que tal princípio diferencia um bem jurídico penal do bem jurídico em sentido geral. O bem jurídico lato sensu é todo e qualquer valor importante para a sociedade, cuja proteção venha a ser definida por força de lei ou por força de ato administrativo. Os bens jurídicos penais são os valores essenciais que devem constituir o núcleo central do Estado Democrático de Direito. O citado princípio possui duas faces: nega a possibilidade de o direito penal proteger bens jurídicos que não são fundamentais, mas, por outro lado, determina que tal ramo do direito proteja os bens jurídicos essenciais (JAPIASSÚ; SOUZA, 2020, p.50).
Pode-se mencionar que caso a intervenção penal seja mínima, conforme uma valoração racional quanto à importância e à necessidade de tutela penal de determinados bens jurídicos, é preciso, então, que o universo das incriminações apenas incida de modo fragmentário, ou seja, apenas sobre alguns daqueles bens jurídicos (CALLEGARI; PACELLI, 2020, p.82).
É válido mencionar que, no âmbito do Estado de Direito, não há nenhuma razão para que a intervenção penal fique alheia às novas formas de ações lesivas e danosas. A progressão de proteção dos direitos fundamentais pode encontrar novas alternativas, incluindo o direito penal, desde que essas se mostrem mais eficazes que outras formas de controle. Em suma, a eventual ampliação do espectro das incriminações, como ocorreu com os crimes ambientais, não significa, necessariamente, o fim da intervenção mínima, mas a modulação de seu alcance, justificado no tempo e no espaço de nosso direito penal (CALLEGARI; PACELLI, 2020, p.83).
Também é essencial conhecer alguns dos princípios do Direito Ambiental que possuem relevância no estudo da Lei 14.064/2020. O art. 225 da Constituição Federal de 1988 elenca os princípios da Política Nacional do Meio Ambiente: princípio do desenvolvimento sustentável; princípio da prevenção; princípio da precaução; princípio do poluidor-pagador e o princípio da participação comunitária (BRASIL, 1988).
Devido à autonomia e peculiaridades, o Direito Ambiental possui princípios próprios, que norteiam tanto os intérpretes quanto os executores das normas ambientais. O primeiro princípio que deve ser mencionado é o do desenvolvimento sustentável. Tal postulado reconhece que o desenvolvimento precisa considerar o uso equitativo dos recursos naturais, em atenção às necessidades tanto da presente quanto das futuras gerações (OLIVEIRA, 2017, p.103).
Quando se faz uma análise do princípio do desenvolvimento sustentável, é necessário conjugar o art. 170 com o art. 225, ambos da Constituição Federal. Contudo, há uma constante tensão entre as atividades econômicas e as normas protetivas do meio ambiente. Na impossibilidade de compatibilizá-los, há de se questionar acerca da prevalência das atividades econômicas ou do meio ambiente. A resposta é que, pela sistemática constitucional, as atividades econômicas não podem ser exercidas em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente. A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais, nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica (OLIVEIRA, 2017, p.103).
O próximo princípio que precisa ser conceituado é o da prevenção, o qual aplica-se a impactos ambientais já conhecidos e dos quais se possa, com segurança, estabelecer um conjunto de nexos de causalidade, suficientes para a identificação dos impactos futuros mais prováveis. Embora seja próximo ao princípio da precaução, não são sinônimos (ANTUNES, 2015, p.29).
O princípio da prevenção é aplicável ao risco conhecido, que pode ser identificado por meio de pesquisas, dados e informações ambientais, ou ainda porque os impactos são conhecidos em decorrência de resultados de intervenções anteriores, como, por exemplo, a degradação ambiental causada pela mineração, em que as consequências para o meio ambiente são de conhecimento geral. É a partir do risco conhecido que se busca adotar medidas antecipatórias de minimização dos possíveis impactos ambientais. Pode-se citar como exemplos da aplicação do citado princípio o estudo prévio de impacto ambiental (EIA), o licenciamento ambiental e as auditorias ambientais. Esses são relevantes instrumentos de estudo, controle e fiscalização de presumíveis impactos ambientais (OLIVEIRA, 2017, p.108).
Outro impotante princípio do Direito Ambiental é o da precaução, que está relacionado à incerteza científica. O que se configura aqui é a ausência de informações ou pesquisas científicas conclusivas acerca da potencialidade e dos efeitos de determinada interferência sobre o meio ambiente e a saúde humana (OLIVEIRA, 2017, p.109).
Tal princípio tem sido cada vez mais prestigiado pelos tribunais brasileiros, servindo de base para um significativo número de decisões judiciais. Certamente, o postulado, quando aplicado aos casos concretos, evita alguns riscos, e não outros. As maiores ou menores medidas de precaução são adotadas em razão da hipótese de os danos realmente acontecerem (ANTUNES, 2015, p.24).
O próximo princípio que deve ser mencionado é o do poluidor-pagador. Ele possui natureza econômica, cautelar e preventiva, que compreende a internalização dos custos ambientais e que devem ser suportados pelo empreendedor, afastando-os da coletividade (OLIVEIRA, 2017, p.112).
Conforme Derani (2008, p. 142) apud Oliveira (2017, p. 12), o princípio do poluidor-pagador busca a internalização dos custos relativos externos da deterioração ambiental. Por meio da aplicação desse princípio, o sujeito (produtor, consumidor, transportador) que causar um problema ambiental deve arcar com os custos da diminuição ou afastamento do dano.
Segundo Fiorillo (2010, p. 88) apud Oliveira (2017, p. 113), o princípio do poluidor-pagador possui duas configurações: o caráter preventivo, que busca evitar a ocorrência de danos ambientais; e a natureza repressiva, pois, com a ocorrência do dano, é necessária a reparação. Em suma, é válido ressaltar que o empreendedor é responsável pelos custos da prevenção e da reparação dos impactos ambientais de sua atividade econômica, sem, no entanto, representar que, por pagar, pode poluir.
Outro princípio relevante é o da participação comunitária. No momento em que se fala de participação, pensa-se no agir em conjunto. Tal princípio constitui um dos elementos do Estado Social de Direito (CORIOLANO, 2013, p.22). A participação na tomada de decisões ambientais é um dever jurídico, conforme expressa o art. 225 da Constituição Federal de 1988, ao impor ao Poder Público e à coletividade a obrigação de proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. O supracitado princípio se divide em três aspectos: esfera administrativa, que se manifesta por meio de audiências e consultas públicas; esfera legislativa, onde aplicam-se os instrumentos clássicos elencados no art. 14 da Constituição Federal; e esfera judicial, que ocorre por meio de ações constitucionais (OLIVEIRA, 2017, p.119).
Verifica-se a importância de analisar e aplicar de forma cautelosa os supracitados princípios de direito penal e de direito ambiental na Lei 14.064/2020. A ofensividade da conduta é essencial para a definição de uma determinada pena ao caso concreto. A lesão ou exposição de perigo a lesão é necessária para que haja crime (COÊLHO, 2015, p.30).
É relevante considerar a modificação do artigo 32 da Lei 9.605/1998 pela Lei 14.064/2020 à luz da bioética e do biodireito. A bioética é a disciplina que realiza o estudo dos aspectos éticos das práticas médicas e biológicas considerando suas implicações na sociedade e as relações entre os homens e entre esses e outros seres vivos, apontando o rumo das condutas a serem adotadas intencionando o respeito à dignidade humana (MALUF, 2020, p. 26-27).
No que tange ao biodireito, pode-se dizer que esse é o ramo do estudo jurídico, resultado do encontro entre a bioética e o biodireito. Estuda as relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos ligados à medicina e à biotecnologia. Para a preservação da dignidade humana, é indispensável estabelecer limites ético-jurídicos (MALUF, 2020, p.29-30).