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A judicialização na saúde suplementar e a teoria do ressarcimento oposto

Agenda 09/07/2021 às 17:29

Análise da possibilidade de repartição do ônus da judicialização da saúde entre as Operadoras de Planos de Saúde e o Sistema Único de Saúde, considerando como fio condutor o processo de ressarcimento ao SUS.

1. INTRODUÇÃO

A judicialização da saúde tem sido recorrentemente discutida considerando-se as inúmeras consequências havidas na saúde pública, na saúde privada e suplementar.

Certo é que referidas consequências nascem de um déficit na atenção universal primária, uma obrigação do Estado, e por isso devem ser analisadas separadamente possibilitando a condução obrigacional do ônus financeiro da garantia de saúde à quem deve por direito garantir a saúde do cidadão.


2. A GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE, O SUS E A SAÚDE SUPLEMENTAR

Ainda de forma introdutória é necessário destacar definições cristalizadas na Constituição Federal e que devem obrigatoriamente serem consideradas na estratificação e repartição dos ônus da judicialização da saúde.

O Art. 196 da Constituição Federal define que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”.

Noutro escopo o Constituinte permitiu que a assistência à saúde fosse livre à iniciativa privada, conforme definição do Art. 199 da Constituição Federal, sendo necessário apoiar-se na regra ali criada e extraída do § 1º deste citado artigo que diz o seguinte:

“As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”

Portanto, natural e lógico extrair-se do texto constitucional que o Estado é o garantidor universal da saúde do cidadão, promovendo políticas públicas neste sentido, cabendo à iniciativa privada participar de forma complementar. Nesta esteira de raciocínio extrai-se que ao SUS – Sistema Único de Saúde coube, na distribuição isonômica de recursos aos Estados e Municípios, propiciar a irrestrita e adequada prestação de serviço de saúde a todos os cidadãos brasileiros, conforme impõe, também, a carta de direito dos usuários da saúde, aprovada pelo CNS – Conselho nacional de saúde.

A regra imposta na Constituição Federal é de que a utilização dos serviços dispostos no SUS - Sistema Único de Saúde pelos cidadãos é irrestrita e engloba todo e qualquer procedimento médico e a Lei 8.080/90, que trata das definições de ações do SUS, caminha em consonância com a regra magna, pois estampa logo em seu Art. 2º que “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”.

O legislador bem definiu no Artigo 16, VI da Lei 9.656/98 que dos contratos de planos de saúde devem constar dispositivos que indiquem com clareza os eventos cobertos e excluídos, logo, restando claro que as coberturas oferecidas não são irrestritas. Conclui-se que ao contrário do Estado que deve prestar assistência irrestrita, a OPS – Operadora de Planos de Saúde poderá cobrir ou excluir determinados eventos, oferecendo ao consumidor com condições previamente estabelecidas as coberturas conforme os produtos que dispõe no Mercado.

Aguardar-se-ia do Estado, no exercício regulamentar, que balizasse a atuação da iniciativa privada, através da Agência Nacional de Saúde Suplementar, criada através da Lei nº 9.961 para regular o setor de saúde suplementar.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar, então, na sua atividade regulamentadora e normativa, considerando a imposição do § 4º do Art. 12 da Lei 9.656/98, passou a editar e atualizar a cada dois anos o chamado ROL de procedimentos obrigatórios nos contratos de planos de saúde regulamentados[i]. Referida norma é editada por resolução normativa da agência e obriga as Operadoras de Planos de Saúde garantirem minimamente as coberturas definidas na referida resolução[ii].

Persistiu durante certo tempo a discussão jurídica acerca da natureza jurídica do ROL da ANS, se taxativo ou exemplificativo. O entendimento acerca do tema deve considerar a natureza complementar de atuação das instituições privadas, conforme imposição magna, e, também, a natureza universal de garantia à saúde conferida ao Estado através do Sistema Único de Saúde, pois ao sopesar tais fundamentos poder-se-á definir a natureza do ROL de Procedimentos e Eventos em Saúde, já que este estabelece as coberturas assistenciais obrigatórias.

Portanto, estabelecidas tais premissas nos é confortável afirmar que o ROL editado pela ANS é taxativo quanto às coberturas mínimas a serem garantidas nos contratos privados de planos de saúde.

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A moderna jurisprudência, aliás, conduz seu entendimento sobre o tema no mesmo sentido aqui defendido, como pode-se extrair do julgamento do Recurso Especial n. 1.733.013/PR pela Egrégia Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça [iii], que sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão decidiu que o ROL é de fato taxativo. O Ministro Relator no bojo de seu voto afirmou que considerar esse rol meramente exemplificativo "representaria, na verdade, negar a própria existência do 'rol mínimo' e, reflexamente, negar acesso à saúde suplementar à mais ampla faixa da população"[iv].

A judicialização no setor de saúde suplementar está intimamente ligada à definição de natureza do ROL da ANS, eis que ao compreender ser o ROL taxativo, o judiciário devolve ao setor privado a qualidade de participante complementar no sistema de saúde, conferindo-se ao Estado a obrigação de garantir de forma universal a saúde do cidadão.


3.O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DOS CONTRATOS E A SAÚDE SUPLEMENTAR

É regra que os contratos devem obedecer a sua função social sem, contudo, deixarem de conferir aos contratantes segurança jurídica, a fim de evitar-se o caos social, e daí decorre a máxima de que o contrato é a lei entre as partes. As normas contratuais têm força vinculante entre as partes.

A própria convicção dos contratantes acerca do cumprimento das cláusulas contratuais tais como negociadas ou aderidas conduz ao raciocínio de imutabilidade unilateral, confiando-se que o objeto do contrato, e a relação de prestação e contraprestação serão respeitados na vigência da avença.

Como já visto o Estado é o garantidor universal da saúde e permite que a iniciativa privada atue de forma complementar, seguindo as diretrizes legais e as normativas regulatórias. Por este motivo o prestígio às normas dos contratos de planos de saúde garante aos contratantes (Operadoras x Beneficiários) a higidez de seus direitos valorizando-se os interesses sociais.

Nesta esteira é importante repisar que o judiciário ao reconhecer a taxatividade do ROL de procedimentos em saúde editado pela ANS, prestigia os contratos de planos de saúde, restringindo as coberturas contratuais àquelas descritas no contrato, prevalecendo-se a imposição principiológica da obrigatoriedade dos contratos.

Ainda que se cogite a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, a fim de flexibilizar as obrigações contratadas supostamente em favor do hipossuficiente jurídico (e poderíamos dizer que neste particular falaríamos apenas dos contratos individuais), tem-se também por concreto o entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor não afasta a aplicação nas relações contratuais do princípio do pacta sunt servanda, desde que as cláusulas contidas no contrato não sejam abusivas, não afronte ato jurídico perfeito ou induza nulidade.

Repita-se que o reconhecimento da taxatividade do ROL de procedimentos em saúde editados pela ANS limita a cobertura e devolve à Operadora de Planos de Saúde o caráter de atuação complementar.


4. A OBRIGAÇÃO DE RESSARCIMENTO AO SUS

A Lei 9.656/98 em seu Art. 32 institui a obrigação das Operadoras de planos de Saúde de ressarcirem todos os atendimentos realizados na rede que integra o Sistema SUS, prestados a seus consumidores (titulares e dependentes).

O processo de ressarcimento ao SUS, assim instituído como uma obrigação legal, somente alcança a pretensão de ressarcimento daqueles atendimentos realizados aos beneficiários de planos privados que tenham cobertura no contrato do beneficiário.

Eis a importância da análise dos Artigos 196 e 199, § 1º da Constituição Federal combinados com a garantia de aplicação do Princípio da Obrigatoriedade dos Contratos e da definição de taxatividade do ROL de procedimentos em Saúde da ANS.

Isto porque vê-se que o próprio Poder Público, reconhecendo a qualidade de garantidor universal do Estado através das políticas do Sistema Único de Saúde e de complementaridade do sistema privado de saúde, impõe à Operadora, ainda que eventualmente um beneficiário de seu plano tenha sido atendido na rede SUS, o ressarcimento ao Sistema Público de Saúde somente dos valores gastos em procedimentos que estariam cobertos no respectivo contrato de plano de saúde do beneficiário identificado.

Conduz-se então para uma lógica e singular conclusão no sentido de que se ao Estado cabe o ressarcimento de gastos com beneficiários de planos privados de saúde, que a Operadora Privada deveria cobrir por força do contrato, às Operadoras de Planos de Saúde cabe igualmente o direito de serem ressarcidas de gastos com seus beneficiários (ainda que impostos por via judicial) de obrigações não cobertas no contrato e que em razão da norma constitucional deveriam ser garantidas pelo Estado.


5. A TEORIA DO RESSARCIMENTO OPOSTO

A isonomia aproveitada pelos jurisdicionados quanto à aplicação da norma pressupõe a garantia de direito e tratamento igualitários, ou seja, a norma em sua especificidade deve valer para todos que preencham as mesmas condições de aplicação.

A invocação de referido princípio não se demonstra em espectro, pelo contrário, em análise de dados do ano de 2020. O Dr. Clenio Jair Schulze[v] relata em artigo denominado Judicialização da Saúde em Números[vi] a existência de mais de 135.000 (cento e trinta e cinco mil) novos casos de judicialização envolvendo planos de saúde, denunciando que a prática da judicialização é crescente e está incorporada ao sistema jurídico e sanitário.

A judicialização pelos beneficiários de planos de saúde ocorre inexoravelmente pela pretensão de extensão das coberturas contratadas que são negadas aos beneficiários dos planos de saúde, obviamente, por ausência de previsão contratual. Ao considerarmos as citadas negativas podemos entender que elas atendem não só o contrato, em sua estrutura e princípios, mas também a Lei.

Portanto a pretensão de extensão das coberturas contratuais pelos beneficiários de planos de saúde é injustificada, sendo certo concluir que inexistindo cobertura contratual a obrigação de prover a saúde do cidadão é do Estado através do Sistema Único de Saúde.

Veja-se então que apoiando-se na premissa de que a Agência Nacional de Saúde Suplementar nos processos de ressarcimento ao SUS reconhece a obrigação das Operadoras de ressarcirem procedimentos com cobertura no contrato mas realizados na rede pública, assim como se afasta da obrigação de ressarcimento os procedimentos realizados pelos beneficiários de planos de saúde na rede pública mas que não encontram cobertura contratual, aquelas obrigações impostas (por via judicial) às Operadoras de custeio de procedimentos não cobertos, devem ser igualmente objeto de ressarcimento, o Ressarcimento Oposto.

O Ressarcimento Oposto, então, deve ser pensado como a forma do Estado ressarcir as Operadoras de Planos de Saúde daqueles procedimentos, exames ou quaisquer tipos de atendimentos que se deram foram da cobertura contratual por imposição ilegítima do Poder Judiciário ou mesmo por questões circunstanciais.

Valerá para outro momento o estudo e dissertação dos aspectos processuais da pretensão de Ressarcimento Oposto, sendo necessário que o Direito não esteja perecido, por, salvo melhor juízo, impossibilidade de rescisão do julgado que impuser a cobertura não contratualizada à Operadora de Plano de Saúde.

De uma forma geral é de se ter em pauta que a estratificação do prejuízo com a judicialização, apurada em critérios objetivos, ou seja, restringindo-se apenas aos atendimentos de procedimentos não cobertos no contrato e não previstos no ROL de coberturas obrigatórias editado pela ANS, poderia ser compensada nos valores devidos por cada Operadora de Saúde nas ações de Ressarcimento ao SUS, no limite de seus prejuízos, o que também desafia um novo estudo de impacto e razoabilidade dos argumentos, mas nos parece ser possível a regulamentação.


6. CONCLUSÃO

Conclui-se com a ideia de Ressarcimento Oposto que o mercado Operador de Planos de Saúde deva ter o mesmo tratamento que é conferido ao Sistema Único de Saúde, eis que enquanto este segundo tem a obrigação de cobertura universal, às Operadoras de Planos de Saúde é garantido, ou deveria ser, o cumprimento integral dos contratos, garantindo-se exclusivamente a cobertura dos procedimentos médico-hospitalares com previsão contratual e no ROL editado e publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar.


NOTAS

[i] https://www.ans.gov.br/aans/index.php?option=com_centraldeatendimento&view=pergunta&resposta=46&historico=29749538

[ii] O rol de procedimentos vigente atualmente é o descrito na RN Nº 465/21 (https://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=NDAzMw)

[iii] https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%201733013

[iv] O Dr. Luis Felipe Salomão é um magistrado brasileiro, atual ministro do Superior Tribunal de Justiça e foi relator do Recurso Especial nº 1.733.013 - PR (2018/0074061-5). (https://www.google.com/search?q=Luis+Felipe+Salom%C3%A3º&oq=Luis+Felipe+Salom%C3%A3º&aqs=chrome..69i57j46j0l8.752j0j15&sourceid=chrome&ie=UTF-8)

[v] CLENIO JAIR SCHULZE – Doutor e Mestre em Ciência Jurídica (Univali). Pós Graduado em Justiça Constitucional pela Universidade de Pisa/IT. Autor do livro “Judicialização da Saúde no Século XXI” (2018) e coautor do livro “Direito à Saúde” (2019, 2ed.). Juiz federal.

[vi] https://blog.abramge.com.br/saude-suplementar/judicializacao-da-saude-em-numeros/

Sobre o autor
Thiago Santos Alves de Sousa

Gerente Jurídico Contencioso na Saúde Suplementar Master in Business Administration in Gestão de Planos de Saúde

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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